segunda-feira, 2 de maio de 2011

Capítulo 14


Noites Sem Dormir






            Os dias foram passando e a minha rotina estava a melhorar… mas lentamente.
            Tinha-se passado uma semana desde o incidente entre Kalissa e Sophie, e eu estava a conseguir aguentar a demónia presa dentro da minha cabeça, afastada de qualquer oportunidade para magoar as pessoas de quem eu gostava.
            Voltei a ir a todas as aulas e os professores estavam contentes com o meu desempenho. E embora me sentisse sempre super cansada, não queria desistir. Eu ia recuperar da queda que Kalissa me obrigara a cometer. Ia erguer-me do fundo do poço e recuperar a minha vida de antes.
            Os meus dias agora eram preenchidos pela escola, pelo estudo - na semana que se seguiu à luta tivemos teste de Geografia e Filosofia, e nesta segunda semana teríamos de Matemática e Espanhol - e pelos trabalhos de casa, que eram cada vez mais. Todos os minutos livres eram ocupados a estudar. Eu reunia-me com o meu grupo na Sala de Convívio, à hora de almoço ou depois do jantar, e estudávamos juntos, embora estivéssemos todos tão fartos daquilo que nem nos apetecia ver os livros à frente.
            Chris andava super orgulhoso por mim. Estava a adorar ver a minha recuperação, embora ela fosse muito lenta, e todos os dias dizia que eu ia ficar boa, e que depois disso seríamos os dois muito felizes. E eu queria mesmo acreditar nisso.
            Mas na quarta-feira dessa semana, dia 9 de Janeiro, algo veio alterar os meus planos… drasticamente.
            Eu tinha-me deitado há menos de meia hora, mas estava tão cansada que tinha adormecido assim que a minha cabeça se aninhara na almofada. Mas de repente, a minha mente começou a encher-se de uma névoa cinzenta ameaçadora. E depois, uma cena realmente estranha começou a desenrolar-se diante dos meus olhos.
            Eu estava no quarto de Brand, sentada na cama dele, e Allan e Drake estavam nas respectivas camas. Ao que tudo indicava, estávamos a injectar-nos todos com a mesma seringa. Brand entrou no quarto nesse momento e sorriu-me, sentando-se ao meu lado. Eu olhei para ele e senti um desejo enorme de o beijar para nunca mais parar. Tirei a seringa do braço e entreguei-a ao Drake. Pressionei a zona interior do cotovelo para estancar a pequena hemorragia e torci-me para beijar Brand. A sensação de calor derivada da droga correu-me nas veias e fez-me sentir maravilhosamente. Brand envolveu o meu corpo nos seus braços fortes e musculados e deitou-se sobre mim, beijando-me apaixonadamente.

           
            Acordei aos gritos, esperneando e esbracejando sem parar, enquanto tentava fugir àquela imagem aterradora. Abri os olhos de repente, pestanejando para focar a visão, e finalmente a imagem de Brand dissolveu-se da minha cabeça. Lancei-me rapidamente para a frente, ficando sentada na cama, e olhei à minha volta, demasiado ansiosa e assustada para respirar em condições normais.
            Estava no meu quarto. Niza acendeu a luz do candeeiro de mesa-de-cabeceira nesse momento e saltou da sua cama para fora, correndo até à minha e sentando-se ao meu lado. O seu rosto estava contorcido por uma máscara de desespero.
            - Kiara?! Pára! Está tudo bem!
            Puxou-me para os seus braços e tentou acalmar-me enquanto me embalava. Eu tinha de manter os olhos abertos. Não suportava fechá-los e voltar àquele cenário horroroso.
            Sophie juntou-se a nós, tão preocupada como Niza, e passou-me a mão pelos cabelos, murmurando-me palavras apaziguadoras para tentar que eu parasse de tremer como varas verdes.
            - O que é que aconteceu?! - Perguntou Sophie.
            Eu ainda não conseguia falar. A minha cabeça estalava de tanta confusão.
            Era o segundo pesadelo daquele género que eu tinha com Brand. E não fazia a mínima ideia do porquê. Mas não podia ser coincidência. Tinha de haver algo mais por trás. Os meus olhos encheram-se de lágrimas. O que é que me estava a acontecer?! Os pesadelos representariam os meus maiores medos? Sim, devia ser isso. Fazia todo o sentido.
            No entanto… eu não me sentia como se fosse assim.
            - Kiara, fala connosco!
            Afastei-me para olhar Niza nos olhos e entendi que elas mereciam saber. Mesmo que fossem chatear-se comigo e achar que eu estava louca, eu não tornaria a mentir-lhes. Tencionava cumprir a promessa que lhes fizera.
            - Deixa-a acalmar-se Niza, ela já fala connosco. - Murmurou Sophie.
            Aquiesci com a cabeça e escondi o rosto entre as mãos trémulas.
            O que se andava a passar comigo?!
            - Foi só um pesadelo. - Respondi entre soluços.
            - O que é que viste? - Quis saber Niza.
            - Oh por favor, não me obriguem a recordar…
            Sophie e Niza entreolharam-se, indecisas entre a curiosidade e a vontade de respeitar o meu pedido. Mas no fim, acabaram por concordar em não me fazer falar, o que me deixou mais satisfeita. Tudo o que menos queria naquele momento era que as minhas amigas achassem que eu estava maluca.
            - Kiara, quando quiseres contar-nos o que viste, estás à vontade.
            - Obrigada…
            - Eu acho que devíamos deixá-la dormir. Está demasiado pálida… sentes-te bem?
            Se me sentia bem? Não. Sentia-me terrivelmente mal. E tinha uma enorme vontade de gritar.
            - Estou, a sério, não se preocupem. - Menti.
            Mesmo ao fim de todo aquele tempo, Niza e Sophie continuavam a ser incrivelmente fáceis de persuadir. Suspirei quando elas me abraçaram uma última vez e depois se levantaram, dando-se por vencidas.
            - Volta a dormir, precisas de descansar. - Aconselhou Niza.
            Elas deitaram-se e apagaram a luz do candeeiro. Quando o quarto ficou mergulhado na escuridão, eu fechei os olhos e tentei voltar a adormecer, mas passados menos de cinco minutos, o rosto de Brand surgiu por detrás dos meus olhos, sorrindo diabolicamente, e eu tornei a acordar, arfando para conseguir respirar. Virei-me de barriga para cima na cama e desisti de tentar dormir. Não valia a pena.
            Passei a mão pela testa para tirar as gotas de suor que se tinham acumulado lá. Depois mordi o lábio inferior para controlar a vontade de chorar que me consumiu nesse instante. Eu dava tudo para não tornar a ter pesadelos daqueles.
            Eu ia descobrir o que se andava a passar comigo, mais cedo ou mais tarde ia encontrar as respostas a todas as minhas perguntas.


            No dia 12 de Janeiro, tive outro pesadelo com ele.
            Desta vez, quando o treino da Claque terminava, ele vinha ter comigo e beijava-me calorosamente, antes de eu seguir com as restantes Raparigas da Claque para o balneário feminino, para trocar de roupa, e depois voltava para junto dele e íamos para o seu quarto, para tomarmos uma nova dose de droga. Não foi tão mau como o anterior, mas mesmo assim fez-me acordar a meio da noite aos gritos, debatendo-me contra as ilusões que a minha cabeça criava.
            - Calma Kiara! Está tudo bem!
            Mas mesmo que Niza e Sophie dissessem aquilo vezes sem conta, eu não conseguia dormir em condições depois de ter aqueles pesadelos.
            E claro que isto as deixava profundamente desconfiadas.
            Na noite de 15 de Janeiro, tive outro pesadelo. Desta vez, eu estava com Brand no quarto dele, e estávamos a discutir sobre a Mariah. Ela estava a tentar voltar para o Brand, mesmo sabendo que ele já não queria saber dela. E Brand continuava a teimar que eu não me devia importar com isso porque ele só queria saber de mim.
            Claro que eu acordei sobressaltada, a tremer dos pés à cabeça, e tapei a cabeça com a almofada para abafar os gritos de choque.
            O mais estranho em todos aqueles pesadelos é que eu… não dizia aquilo que, supostamente, devia dizer. Ou seja, era como se a minha personagem nos pesadelos agisse de um modo que eu nunca agiria na vida real. E Brand também parecia sempre demasiado carinhoso comigo.
            Depois do terceiro pesadelo, Niza e Sophie acharam que já era de mais e chegaram à mesma conclusão que eu: havia ali algo de errado.
            Por isso, na manhã seguinte - estava uma manhã de terça-feira fria e chuvosa e a neve no exterior do castelo ainda nem tinha começado a derreter - depois de nos termos arranjado para as aulas da tarde, as minhas duas protectoras obrigaram-me a seguir com elas até ao salão de refeições para falarmos com Peter, Ryan e Chris sobre os meus pesadelos.
            Eu bem tentei detê-las, implorar para que não contassem a Chris que eu não andava a dormir bem, mas elas estavam demasiado assustadas com os meus berros nocturnos para deixarem a situação arrastar-se durante mais tempo. Por isso, eu preparei-me mentalmente para o que aí vinha.
            Desci com elas até ao refeitório e sentámo-nos na mesa onde costumávamos ficar, esperando pelos rapazes. As minhas mãos tremiam imenso e eu não sabia o que dizer ao meu namorado.
            Como é que eu podia explicar-lhe que andava a ter pesadelos com Brand, o namorado de Kalissa, ou seja, o namorado da demónia que habitava no meu corpo?! Suspirei. Só a mim é que aconteciam coisas daquelas.
            Chris, Ryan e Peter passaram pelas portas de entrada do salão, assemelhando-se a três príncipes que percorriam os corredores do seu palácio encantado, e dirigiram-se para a zona onde eu, Niza e Sophie estávamos sentadas. O meu estômago contraiu-se quando Chris me dirigiu o meu sorriso preferido, tão belo que se tornava impossível de descrever.
            Ele contornou a mesa para se aproximar de mim. Levantei-me e lancei os braços em volta do seu pescoço, abraçando-me a ele com todas as minhas forças. Pelo canto do olho, vi Ryan aproximar os lábios do ouvido de Sophie para lhe perguntar o que se passava comigo. Assim que os lábios suaves de Chris pousaram na minha testa, um arrepio subiu-me pela coluna.
            - Kia? Estás bem?
            Afastei-me um pouco para fixar o olhar no seu. Não demorou mais de três segundos até Chris entender que eu tinha algo para lhe contar. Sentou-se, ainda abraçado a mim, e olhou para Niza e Sophie. As sobrancelhas de ambas estavam contraídas em expressões de ansiedade.
            - O que é que ela tem? - Perguntou Chris, com a voz a soar persuasiva o suficiente para fazer as minhas amigas confessar tudo.
            Niza e Sophie entreolharam-se. Pareciam ter-se arrependido de me ter arrastado para aquela situação. E realmente, eu não merecia estar nela. Mas agora era tarde para voltar atrás.
            - Tem-se andando a passar algo que vocês não sabem… e eu acho que está na hora de tirarmos as dúvidas todas. - Começou Niza.
            Eu engoli em seco.
            A ideia de que Chris ia chatear-se comigo, mesmo a sério, entranhou-se na minha cabeça, alastrando o pânico a todas as células do meu corpo e fazendo-me tremer como varas verdes. Eu tinha de arranjar uma maneira de o impedir de saber o que se andava a passar. Só que não havia tempo para pensar numa maneira e eu não conseguiria calar Sophie quando ela começasse a explicar-lhes acerca dos meus pesadelos.
            No entanto, o meu corpo sabia melhor como agir do que eu. O que fiz no segundo seguinte deixou-me tão chocada que não fui capaz de lutar sequer contra a sensação.
            A minha mente… fechou-se.
            Fechou-se, simplesmente, a tudo o que me rodeava. A minha boca fechou-se bruscamente e eu perdi os sentidos tão depressa como se desligasse um interruptor de parede. Fui sugada para o poço escuro tão depressa que nem me apercebi ao início do que estava a acontecer. A barreira de tijolos dentro da minha cabeça partiu-se em mil pedaços e a demónia soltou-se, afastando-me do controlo.


            Eu não fazia ideia do porquê, mas de repente era como se Kiara tivesse perdido todas as forças. Como se a fonte de energia que a mantinha controlada tivesse sido apagada repentinamente. E eu fui lançada para a frente, ao contrário do que costumava acontecer. Os meus sentidos voltaram de um segundo para o outro, e quando abri os olhos, reconheci imediatamente quem se encontrava à minha frente.
         Niza, Sophie, Peter, Ryan e Chris, todos a fitarem-me como se não acreditassem no que acabara de acontecer e achassem que, de repente, eu tinha endoidecido.
         - Kiara?! - Arriscou Chris, sem saber com quem estava a falar.
         Eu também não sabia o que tinha acontecido. Kiara teria… perdido as forças? Concentrando-se de tal modo em algo que se esquecera de me manter afastada do controlo? Fechei os olhos por uns segundos, tentando encontrá-la no poço escuro para o qual a costumava lançar e com muito esforço consegui localizá-la. Estava encolhida no fundo do poço, uma sombra trémula e assustada que nunca ousaria testar o meu poder naquele instante. Tornei a abrir os olhos.
         O que é que teria acontecido que deixasse Kiara assim?
         - A Kalissa voltou. - Vociferou Sophie, descontente.
         Aaah… eu não me esquecera dela, nem do que tinha acontecido da última vez que eu estivera a controlar. Semicerrei os olhos em jeito ameaçador e ela ficou espantada com a minha reacção.
         - Eu não me esqueci do que aconteceu entre nós, sua cabra nojenta. Vais pagá-las, mais cedo ou mais tarde.
         E depois levantei-me, antes que os amigos dela pensassem sequer em deter-me, e afastei-me até à zona onde os Desportistas e as Raparigas da Claque estavam sentados. Apesar de não saber o porquê de Kiara me ter deixado aceder ao poder de tão boa vontade, não me quis preocupar mais com o assunto.
         Assim que me aproximei o suficiente, Brand viu-me e os seus lábios carnudos distenderam-se num sorriso adorável.
         - Kali!
         Levantou-se e abraçou-me com força, rodopiando comigo nos seus braços. Agarrei o rosto dele entre as minhas mãos e beijei-o apaixonadamente.
         - Kalissa! É bom ter-te de volta! - Disse Allan.
         - Obrigada malta. Então? Alguém me conta quanto tempo passou?
         Sentei-me com Brand ao meu lado e Meredith, Terry e Penny começaram logo a pôr-me ao corrente do que Kiara tinha andando a fazer. Brand ia opinando de vez em quando, mas pareceu-me que ele estava mais interessado em lançar olhares provocadores para Chris do que em contar-me o que tinha acontecido. Mas também, eu não me importava. Ele podia chatear o namorado de Kiara o quanto quisesse.
         Depois da hora de almoço terminar, eu já sabia tudo o que ela tinha andando a fazer. E embora me apetecesse ir tratar de Sophie e dar-lhe a lição que ela tanto merecia aprender, percebi que era melhor deixar a poeira assentar mais um pouco. Quando ela achasse que já estava tudo bem na sua vida, eu seria capaz de me vingar.
         Quando se ouviu o sino a tocar para a entrada das aulas, eu soube que estava na altura de ir com os meus colegas de turma. Talvez me fizesse bem ir a uma aula ou duas, só para fugir da monotonia em que a minha vida se tinha tornado.
         Fui para a aula de Biologia e Geologia. E durante a hora seguinte estive realmente concentrada em estudar as diferenças entre as células. Não era uma matéria muito interessante, mas sempre era melhor que ficar a tarde toda fechada dentro do quarto a olhar para o tecto e a fingir que era um vegetal.
         Sophie e Niza passaram a tarde inteira a lançar-me olhares furtivos. Estavam admiradas por eu ter vindo às aulas e por estar a seguir os passos de Kiara. Como se eu alguma vez fizesse isso… mas eu não me quis preocupar com elas. Havia mais com que me importar naquele momento.
         Quando chegámos ao fim da aula de Geografia, subi até ao quarto de Brand - que continuava a ser o meu quarto sempre que eu recuperava o controlo - para tomar um duche rápido e trocar de roupa antes do jantar. Quando estava a acabar de me arranjar, o meu namorado entrou no quarto. Fechou a porta e aproximou-se lentamente de mim.
         - Sim? - Perguntei, enquanto tentava apertar o fecho de encaixe do meu colar.
         - Deixa, eu faço isso por ti.
         Ele tirou-me gentilmente o colar das mãos e afastou o meu cabelo do pescoço para poder colocar melhor a jóia. Depois as suas mãos permaneceram pousadas nos meus ombros por algum tempo, deixando-me com a sensação de que se passava algo, que ele não me estava a contar tudo. Virei-me de frente para ele e cravei o meu olhar no seu.
         - O que é que se passa?
         - Nada… porquê?
         - Porque tu estás estranho.
         Brand abanou a cabeça em negação e os cantos da sua boca elevaram-se numa amostra de sorriso.
         - Está tudo bem. Estava apenas com saudades tuas.
         - Não. Nem penses que me enganas. Eu já estive ausente durante muito mais tempo e tu não agias assim.
         Ele desviou o olhar do meu, o que me deixou irritada.
         - Brand… quero que me digas a verdade.
         - Tu é que pediste. - Ele expirou prolongadamente. - Eu acho que devíamos parar com a droga.
         Fiquei sem saber o que lhe responder. Os meus olhos arregalaram-se de espanto.
         - Tu… o quê?!
         - É só que, se parássemos de nos drogar, o padrinho da Kiara não nos dificultava tanto a vida. Tu não sabes o que ele tem andando a fazer. Quer expulsar-nos porque vê que não largamos a droga.
         - Ele não te vai expulsar. Eu trato dele caso faça isso.
         - Tu és só uma rapariga, e ele é o director deste colégio.
         Cerrei as mãos em punhos. O que raio estava a acontecer com o meu Brand? Por que é que de repente ele virara tão santinho?!
         - Tens falado muito com a Kiara ultimamente, não tens? - Rugi-lhe.
         A fúria preenchia-me a mente, afastava-me de qualquer fonte de controlo. Brand recuou ao ver o brilho furioso nos meus olhos.
         - Não…
         - Eu sei que é isso. Como é que me podes fazer isto Brand?!
         E depois, de um momento para o outro, deixei de conseguir falar.
         Oh não… lá vou eu outra vez…


         Agarrei-me à réstia de força que ainda tinha dentro de mim para afastar Kalissa. Espantei-me com a facilidade com que o fiz. Ela devia estar descontrolada nesse momento, a pensar em algo que não a deixava manter a parede de tijolos forte o suficiente para me prender. Por isso eu recuperei os sentidos tão depressa. Abri os olhos, ofegando para conseguir respirar, e deparei-me com Brand, parado à minha frente, a fitar-me como se achasse que eu tinha enlouquecido.
            - Brand… - Balbuciei.
            A minha voz saía embargada e eu ainda estava fraca. Ele amparou-me nos seus braços para me impedir de me estatelar no chão. Ajudou-me a recuperar o equilíbrio e foi quando eu olhei para ele que me lembrei de todos os pesadelos. Engoli em seco.
            - Kiara? És tu? O que fizeste à Kalissa?
            - Desculpa… quer dizer, teve de ser…
            O seu rosto cerrou-se numa expressão descontente.
            - Nós estávamos a falar, sua intrometida!
            - Eu tenho de tentar mantê-la presa! Peço desculpa se interrompi o momento romântico! - Vociferei.
            Libertei-me dos seus braços e tirei o cabelo do rosto, penteando-o apenas com as mãos. Brand continuava a olhar para mim, desconfiado.
            - Estás bem? - Perguntou, por fim.
            - Estou. Vamos jantar? Esquece que a Kalissa aqui esteve.
            Ele revirou os olhos e seguiu comigo para fora do quarto. Seguimos até ao salão de refeições e assim que lá chegámos, separei-me dele, correndo até à mesa do meu grupo, e sentei-me junto de Chris. Ele semicerrou os olhos para mim numa expressão ameaçadora, que me deixou tão atónita que não fui capaz de dizer nada.
            - Calma Chris, é a Kiara. - Murmurou Ryan.
            Olhei para cada um deles e entendi logo que Kalissa os tinha ofendido outra vez. Suspirei, sentindo que talvez aquele ciclo nunca tivesse fim. Mas depois Sophie levantou-se, contornou a mesa e veio sentar-se ao meu lado, sorrindo abertamente.
            - Ela foi-se abaixo ou tu venceste-a mesmo?
            - Acho que é a segunda opção…
            Não tinha bem a certeza. Podia ser qualquer uma. Mas eu queria acreditar que a tinha vencido, só daquela vez.
            - Óptimo. Agora vem jantar, ainda nem começámos.
            Sorri-lhe, agradecida por ela não insistir em contar aos rapazes sobre os meus pesadelos. Fui com eles buscar o jantar e depois voltámos para a mesa. Durante toda a refeição não voltámos a tocar no assunto e o resto do serão foi passado na Sala de Convívio a ver um filme que passava na televisão. Fiquei aninhada nos braços de Chris sem querer pensar em mais nada. Mas tornava-se um pouco difícil.
            Eu ainda estava a pensar no porquê de, ao ter sentido aquela necessidade tão grande de escapar à conversa sobre os pesadelos, a minha mente me expulsara do controlo. Não fora um acto premeditado. Simplesmente… Kalissa aproveitara-se dessa situação para assumir o controlo. E se isso tornasse a acontecer mais vezes? E se eu estivesse a mudar ao longo do tempo e as trocas se fizessem cada vez com maior facilidade? Isso podia tornar-se num problema.
            - Kia? Adormeceste querida?
            Abri os olhos e pestanejei para focar a visão. Estava tão perdida nos meus pensamentos que até fechara os olhos, apesar de não estar realmente a dormir. Estava apenas cansada. Doía-me um bocado a cabeça.
            - Não, desculpa. - Respondi, levantando os olhos para os cravar nos do meu namorado, que parecia preocupado com o meu estado.
            - Anda, eu vou-te levar ao quarto, estás exausta.
            Não quis negar a sua oferta. Deixei que ele me ajudasse a levantar e depois de me ter despedido de Niza, Sophie, Ryan e Peter, segui com Chris até ao meu quarto. Precisava de tomar uma dose de droga o mais depressa possível. Chris rodeou a minha cintura com o seu braço musculado para suportar melhor o peso enquanto atravessávamos os largos corredores do castelo. Quando acabámos o caminho até ao meu dormitório, Chris abriu a porta e ajudou-me a entrar.
            O quarto estava mergulhado na escuridão. A janela estava entreaberta e os cortinados agitavam-se com o vento forte. Chris sentou-me na minha cama, fechou a porta e foi trancar a janela.
            - Precisas de tomar algum comprimido? - Disse ele, baixinho.
            - Sim, estão aí nessa caixa.
            Ele trouxe-a para junto de mim, assim como um copo de água, e sentou-se à minha frente, olhando intensamente para mim, enquanto eu escolhia os comprimidos e os tomava. Quando acabei, fui colocar a caixa da droga e o copo vazio em cima da secretária. Depois dirigi-me ao roupeiro.
            - Vou trocar de roupa, OK?
            - Sim. Eu abro-te a cama.
            Enquanto eu me despia e vestia o pijama, para depois ir à casa de banho escovar os dentes e pentear-me, Chris abriu a minha cama para eu me deitar. Quando voltei ao quarto, estava tudo pronto. Ele virou-se de frente para mim, sorrindo apaixonadamente, e eu encaminhei-me para os seus braços abertos. Chris abraçou-me fortemente e depois pegou-me ao colo, levando-me até à cama, deitando-me lá com cuidado e tapando-me para eu não ter frio. Curvou-se para me beijar na testa com carinho e ia afastar-se quando eu prendi a sua camisola entre os meus dedos.
            - Não.
            Ele ficou a olhar para mim, surpreendido. Eu mesma não sabia se aquilo era uma boa ideia. Mas queria ter Chris junto a mim, não queria que ele fosse embora e me deixasse sozinha naquele quarto escuro.
            - Fica comigo esta noite. - Murmurei.
            Ele hesitou por uns momentos, o que me fez pensar em muita coisa. Aqueles cinco segundos em que ele ponderou no meu pedido fizeram-me sentir esquisita. Desejar, acima de tudo, que ele não tivesse medo de estar comigo, porque era isso mesmo que eu via nos seus olhos, receio de estar comigo. O meu coração apertou-se quando tomei noção que ele podia nunca mais deixar aquele pensamento. Que eu era perigosa. Os meus olhos encheram-se de lágrimas mesmo que eu não quisesse.
            Kalissa ia conseguir estragar o que nos unia.
            - Achas seguro eu ficar contigo? - Sussurrou ele.
            Assenti com a cabeça, embora por dentro não achasse isso. Claro que não era seguro. Bastava que me descontrolasse por um só momento e Kalissa seria capaz de se soltar. Se apanhasse Chris deitado ao meu lado, ia magoá-lo, eu tinha a certeza disso.
            Além de que… havia outra razão para eu não achar seguro que ele ficasse ali.
            E se eu tivesse outro pesadelo com Brand? Eu nem queria pôr essa hipótese. Nem queria imaginar como seria sonhar com ele e depois acordar e ver Chris em pânico, tentando entender o que estava a acontecer. Não queria colocá-lo nessa situação, pois de seguida teria de lhe explicar o que andava a acontecer. Suspirei.
            - Fica apenas se quiseres.
            Ele tornou a hesitar. Desta vez ele não sabia se devia ficar ali comigo ou ir embora, por um lado queria manter-se a salvo e por outro queria estar comigo, dormir ao meu lado, ajudar-me em tudo quanto pudesse. Eu podia ver isso nos seus olhos.
            - Eu fico aqui contigo. Não vai haver problema.
            Tentei sorrir mas sentia-me demasiado desesperada por dentro para fazer isso. E apesar de Chris se ter deitado em cima dos cobertores, em vez de se tapar com eles, eu senti-me melhor com ele ali. Deixou-me aninhar nos seus braços e fechei os olhos quando ele começou a fazer-me festas no cabelo.
            Se ao menos eu fosse mais forte para o proteger da maldade da Kalissa… para a impedir de o magoar cada vez mais… Chris era a pessoa mais importante da minha vida e era ele quem eu mais temia perder.
            - Eu amo-te. Nunca te esqueças disso. A Kalissa não vai conseguir separar-nos. - Murmurou ele ao meu ouvido.
            Eu queria tanto acreditar nisso, dizer-lhe que sim, que íamos conseguir. Mas não podia, porque estaria a mentir-lhe. No entanto, não tinha forças suficientes para revelar os meus pensamentos. Mantive-me no silêncio e acabei por cair no sono, enquanto os dedos suaves do meu amor me faziam festinhas no cabelo, adormecendo-me lentamente.
            No dia seguinte, acordei com o despertador de Niza a tocar muito alto. Virei-me na cama, tentando manter-me a dormir. Ainda me sentia demasiado cansada para acordar, mas o tal aparelho não me dava tréguas. Suspirei e estiquei a mão para carregar no botão de silêncio. Apercebi-me que havia muito espaço à minha volta na cama. Abri os olhos, pestanejando para focar a visão, e descobri que Chris já não estava ao meu lado.
            Mesmo que eu não quisesse, o meu organismo já estava preparado para reagir naquele tipo de situações.
            O frenesim que se iniciou dentro de mim era completamente involuntário. Eu paralisei completamente, todas as minhas forças se concentravam em tentar perceber se a sensação de dominação da Kalissa chegava ou não. A minha mente estava alerta, tentando dar-me a informação se ela estivera a dominar-me ou não. Eu esperei cinco minutos e não senti nada de mal. Não devia ter passado tempo nenhum. Mas então por que é que Chris não estava ao meu lado?
            Lentamente, as minhas pernas, braços e mãos foram voltando à actividade e pude levantar-me, sair da cama e aproximar-me da janela, para olhar para o exterior. O campus do colégio continuava coberto de neve. Revirei os olhos. Quando é que a Primavera daria os seus primeiros sinais?
            - Kiara?
            Virei-me bruscamente ao ouvir chamarem-me. Nem dera pela presença de Niza e Sophie, deitadas nas suas camas. Quando a minha melhor amiga falou eu dirigi-lhe um sorriso de bons-dias.
            - Estás bem? - Perguntou ela, parecendo preocupada.
            - Estou… sim, acho que sim. - Murmurei.
            Fui sentar-me ao seu lado na cama. Eram muitas as manhãs em que eu acordava e ia para junto de Niza, e ficávamos a conversar. Eu adorava aqueles momentos. Ela torceu-se para conseguir olhar melhor para mim, apoiando o rosto na palma da mão e o cotovelo na cama, e sorriu-me.
            - Ainda bem.
            - Na verdade… estou a precisar de tomar uns comprimidos.
            A testa de Niza enrugou-se de apreensão.
            - Dói-te a cabeça?
            - Estou com os sintomas de falta de droga, é apenas isso. É que estes comprimidos que o meu padrinho me arranjou não actuam tão bem como o haxixe e a cocaína, por isso sinto mais necessidade de os tomar em intervalos de tempo cada vez mais pequenos.
            - É pena… mas eu acredito que vais conseguir habituar-te à situação.
            - É… eu também espero isso…
            - Ontem quando eu e a Sophie chegámos ao quarto tu e o Chris já estavam a dormir profundamente. Nem tivemos coragem para vos acordar.
            - Obrigada por não o teres feito.
            - Pode ser apenas impressão minha… mas tu dormes melhor com ele ao teu lado, não é?
            - Sim, tens toda a razão. Nem tive pesadelos nem nada…
            Os olhos dela adquiriram um brilho de curiosidade.
            - Achas que o Chris actua como um "espanta pesadelos"?
            Ri-me baixinho da expressão que ela usara, mas abanei a cabeça em negação.
            - Não. Ou talvez até seja isso, mas nunca pensei dessa maneira. Quer dizer… a presença dele acalma-me, já te expliquei aquilo dos amuletos.
            - Sim, mas nunca pensei que funcionasse durante o sono.
            - Eu também não tinha a certeza se funcionava ou não… mas parece que agora está provado.
            - Então talvez devas passar a dormir com ele todos os dias.
            Hesitei antes de lhe responder.
            - Não sei se é seguro fazer isso…
            - Por causa da Kalissa? Achas que ela se soltaria mais facilmente nessas alturas?
            Assenti com a cabeça. Aquela era uma das coisas que eu adorava em Niza: ela apanhava sempre a minha linha de raciocínio, sabia sempre o que dizer em cada situação e percebia sempre as minhas dúvidas.
            - E realmente tu não podes concentrar-te nela enquanto dormes…
            - Estás a ver? É por isso que eu tenho medo de dormir com o Chris mais vezes. Só a ideia de ela o magoar…
            Arrepiei-me quando essa sensação me passou pela cabeça.
            - Sabes… eu ando cá com uma teoria, mas acho que não vais gostar muito dela.
            Cravei o meu olhar no seu, e vi Niza corar imenso.
            - Uma teoria?
            - Sim. Uma daquelas minhas ideias fantásticas. - Riu-se ela.
            - Hum… e o que é desta vez?
            - Bem… eu acho que o desejo que tu sentes pelo Chris… atrai a Kalissa.
            O meu queixo descaiu-se de surpresa. Eu não estava à espera daquilo. Niza esperou que o choque passasse e depois continuou a explicar a sua teoria antes que eu tivesse um ataque cardíaco.
            - Quer dizer, se reparares bem, quando tu estás muito envolvida com ele esqueceste-te das coisas à tua volta, desconcentras-te, a parede de tijolos na tua cabeça rompe-se e a Kalissa toma o controlo. É como se ela aproveitasse as situações em que tu estás demasiado alucinada para pensares nela.
            - Tu tens razão… - Balbuciei.
            Agora eu estava a entender o que ela queria dizer. Sim, ela tinha razão, por pior que fosse a teoria dela. Quando eu estava muito próxima de Chris, tão envolvida nas suas carícias que me afastava de qualquer pensamento coerente, Kalissa ganhava força. O meu coração falhou uma batida tão perceber, finalmente, que quanto menos eu e Chris nos tocássemos, beijássemos e tudo o resto, mais difícil seria para Kalissa soltar-se.
            - Kiara? Estás a sentir-te bem?
            A voz preocupada de Niza parecia vir do fundo de um túnel muito longo, porque a minha consciência já não estava ali no quarto ao lado dela. Eu vagueava pelas minhas lembranças e pensamentos antigos. Como eu fora estúpida por nunca ter pensado naquilo.
            A solução para manter Kalissa longe durante mais tempo era tão simples quanto impossível: bastava afastar-me radicalmente de Chris.
            Eu jamais suportaria isso. Amava-o com todas as minhas forças, com toda a minha alma, nunca seria capaz de acabar o namoro com ele. Olhei para Niza e vi a preocupação no seu olhar cintilante. Eu também gostava muito dela, a minha melhor amiga super adorável. E faria qualquer coisa para a proteger. Mas… e se para a proteger… tivesse de me afastar do meu amor? Eu seria capaz de fazer isso?
            - OK, agora estás a assustar-me. Reage! - Disse ela, nervosa.
            - Desculpa.
            Não me lembrei de nada melhor para dizer. Estava demasiado atónita de desespero para conseguir pensar em algo melhor para lhe responder, e mesmo assim, Niza compreendia sempre.
            - Foi algo que eu disse? Eu já sabia que não devia ter-te contado a teoria! Quando é que eu aprendo a estar calada?!
            - Não… tu não tens culpa. - Murmurei.
            O meu coração estava tão apertado nesse momento que eu sentia uma necessidade quase louca de correr para os braços de Chris. E depois apercebi-me que, mesmo que tentasse manter-me longe dele, não ia conseguir. Só a ideia já me fazia sentir saudades dele. Revirei os olhos. Era impossível, pura e simplesmente.
            - Vou tomar banho. - Respondi, tentando escapar-me ao olhar ansioso da minha melhor amiga.
            Levantei-me e dirigi-me à casa de banho. Entrei, e enquanto me despia para entrar para a banheira, tentei afastar da cabeça os pensamentos sobre ficar longe de Chris. Tinha de me preparar para mais um dia de aulas. A minha vida ainda não podia parar. Mais um dia pela frente, mais uma prova. Tinha de manter Kalissa à distância custasse o que custasse.


            Os dias foram passando. A semana seguinte até correu bem. Consegui manter-me concentrada o suficiente para não deixar que Kalissa se soltasse. Para satisfação do meu padrinho e dos professores, consegui acompanhar as aulas, fazia sempre os trabalhos de casa e os testes correram bem. Os comprimidos para ajudarem na desintoxicação a longo prazo também estavam a resultar. Eu começava a tomar doses cada vez mais pequenas. O meu medo era que Kalissa, quando voltasse, deitasse todo o meu esforço por água abaixo.
            Na noite de 23 de Janeiro, as coisas alteraram-se.
            Parecia uma noite como qualquer outra. E quando eu me deitei, depois de me despedir dos meus amigos, não podia imaginar que teria outro pesadelo com Brand. Nós nem tínhamos falado muito durante esses últimos dias. Mas naquela noite, eu vi-o claramente na minha cabeça. Ele estava a jogar basebol com a equipa e eu estava a assistir. Dentro de mim, pulsava um desejo enorme de o ver vencer. Era algo sem explicação, e de cada vez que ele olhava para mim, eu não era capaz de deixar de sorrir.
            Acordei sobressaltada, e virei-me de barriga para baixo na cama para poder enterrar a cabeça na almofada e abafar os gritos. Abri os olhos para afastar aquelas imagens da minha cabeça. Não podia continuar a pensar nelas, senão daria em louca. Quando consegui parar de tremer como varas verdes virei-me para cima e respirei fundo para me acalmar. Tinha a cabeça a andar à roda. Suspirei e deixei-me ficar a olhar para o tecto durante muito tempo.
            Eu tinha de arranjar maneira de parar com aquilo. Já era de mais.
            Levantei-me da cama sem fazer barulho. Felizmente não tinha acordado Niza nem Sophie. Nem queria imaginar a cena dramática que elas fariam se eu as acordasse outra vez por causa de um pesadelo. Enfiei os chinelos nos pés e saí do quarto sem fazer barulho.
            Eu sabia com quem precisava de falar naquele momento.
            Niza e Sophie estariam ao meu lado sempre que precisasse delas. Eu sabia isso. Mas naquele momento exacto, eu precisava de desabafar com a única pessoa capaz de me ouvir sem me julgar, a única pessoa com poderes suficientes para me acalmar e eliminar aquela vontade que eu tinha de chorar de dentro do meu peito.
            Ryan.
            Eu já sabia que não devia andar pelos corredores do colégio durante a noite. Mas, estranhamente, era como se essa regra nunca tivesse existido para mim. Eu saía sempre que queria e John nunca me castigava, eu nunca era apanhada. Um sorriso desenhou-se nos meus lábios. Ao menos nisso Kalissa ajudava-me: ela ganhou uma reputação tão ameaçadora que nenhum aluno se atreveria a denunciá-la ao director se a visse a andar pelos corredores durante a noite.
            Segui cautelosamente até ao quarto dos rapazes. O castelo durante a noite era mesmo assustador. As sombras causavam-me arrepios, aquele silêncio sufocante fazia-me quase desatar a correr até ao destino, para não ter de passar mais tempo naquela imensidão negra.
            Quando cheguei à porta do dormitório de Ryan, abri-a devagar e entrei, tentando não fazer o mínimo barulho. Os três rapazes estavam a dormir, e o quarto completamente às escuras. Mas eu já ali estivera montes de vezes e era capaz de me orientar. Segui até à cama de Ryan pé ante pé e quando lá cheguei, debrucei-me para conseguir segredar no seu ouvido.      
            - Ryan… acorda.
            Ele resfolegou por momentos e depois abriu os olhos, pestanejando para focar a visão, e espantou-se por me ver ali.
            - Kiara? O que fazes aqui? - Sussurrou, com a voz embargada pelo sono.
            - Preciso de falar contigo.
            Ele hesitou por uns segundos, mas depois acabou por encolher os ombros e levantar-se. Dei-lhe espaço para sair da cama e enfiar os chinelos nos pés. Depois vestiu um dos seus casacos de andar no dia-a-dia e saiu comigo do quarto, sem fazer barulho. Tinha trazido consigo a lanterna pequena e acendeu-a para iluminar o percurso.
            - Vamos. - Disse ele baixinho.
            Segui junto a ele sem dizer nada. Percorremos o corredor dos dormitórios masculinos até alcançarmos as escadas. Descemo-las e passámos pela porta que dava acesso às restantes escadarias. Eu olhava para todo o lado, sempre à espera de ver surgir alguém, mas tudo parecia estar a nosso favor.
            Finalmente, Ryan parou junto à porta de uma das salas de aula, que por alguma razão que eu desconhecia, nunca eram fechadas à chave ali no castelo. Entrámos e depois o meu amigo tornou a fechá-la.
            Estava tão escuro que eu sentia um verdadeiro receio de continuar em frente. Ainda podia bater numa cadeira ou mesa e provocar um enorme ruído.
            - Kiara, anda para aqui.
            Ryan pegou na minha mão e puxou-me consigo até ao fundo da sala, onde nos sentámos no chão de pernas cruzadas. Enrolei os braços à volta da barriga para tentar controlar os tremores. Estava um frio de rachar. Ryan direccionou a luz da lanterna para a parede de modo a conseguir olhar directamente para mim.
            - Que belo lugar que tu foste escolher. - Gaguejei, sarcasticamente.
            - Aqui não vamos ser apanhados. Agora, queres explicar-me a razão para me teres ido acordar a meio da noite?
            Suspirei. Sim, estava na hora de contar a verdade. Cravei o meu olhar no seu e tenho a certeza que Ryan entendeu que eu não estava bem, que precisava dele e da sua compreensão.
            - O que é que aconteceu? - Perguntou, parecendo mais preocupado.
            - Ryan… eu podia ter falado com a Niza ou a Sophie… mas eu preciso mesmo de ti neste momento.
            Ele assentiu com a cabeça e aproximou-se mais de mim. Estendi-lhe a minha mão e ele colocou a sua sobre a minha. Com um aceno leve de cabeça, incitou-me a começar a falar.
            - Eu tenho… um problema…
            - Mais um?
            - Pois…outro… - Revirei os olhos. Ele tinha razão: na minha vida eram só problemas atrás de problemas.
            - O que se passa agora?
            Inspirei fundo. Como iria ele reagir?
            - Eu tenho tido pesadelos… com o Brand.
            Os seus olhos arregalaram-se de espanto.
            - Com… o Brand?!
            - Sim.
            - Mas… isso começou quando? - Ele estava mesmo chocado.
            - No dia em que tu me salvaste de me afogar.
            Ele baixou o olhar, parecendo constrangido.
            - Não fazia ideia.
            - Pois, eu esforcei-me por esconder. É que… não queria nada assustar-vos com isto. Já chega tudo o que têm de aturar por causa da Kalissa.
            - Mas será que tu não entendes mesmo? - Disse ele, a testa enrugada de irritação. - Quanto mais coisas nos esconderes, mais difícil será perceber-te e ajudar-te.
            - Eu sei mas…
            - Podias tentar entender esse ponto.
            - Ryan… eu apenas não quero preocupar-vos.
            Ele revirou os olhos com ironia.
            - És minha amiga, é mais que natural que me preocupe contigo, não achas?
            - Sim…
            Os seus olhos tornaram a fixar-se nos meus, desta vez com uma intensidade redobrada.
            - Promete que, daqui para a frente, me vais contar tudo o que te aconteça. Que tenha a ver com isto, claro, e com a Kalissa e tudo o mais de transcendente.
            - Mas…
            - Promete.
            Eu não vi maneira de fugir. E também… eu já tinha prometido aquilo antes. Quando dissera que nunca mais lhes esconderia algo… isto estava incluído nessa promessa. Por isso tossiquei para aclarar a voz e suspirei.
            - Eu prometo.
            - Óptimo. Agora conta-me o que acontecia nos pesadelos.
            Essa era a parte que eu queria evitar. Ryan ia ficar enervado comigo, eu até podia prever a sua reacção… mas agora era tarde para voltar atrás e me acobardar.
            - Bem, começou tudo nessa tarde. E daí para a frente têm vindo a piorar…
            E contei-lhe pormenorizadamente todos os pesadelos que tivera até essa noite. Quando acabei, Ryan estava sem palavras. Olhava para mim mas era como se nem me visse, como se estivesse completamente perdido nos seus pensamentos. Esperei que o choque passasse, mas como isso não parecia ser possível, pousei a mão no antebraço dele e imediatamente ele olhou para mim, pestanejando para focar a visão.
            - Desculpa…
            - Não faz mal. Eu já esperava que ficasses assim.        
            - É que… não estava à espera disto.
            - Eu sei. Ryan… eu sinto-me muito melhor por ter falado contigo.
            E era verdade. Sentia-me como se tivesse tirado um peso de cima dos ombros. O meu melhor amigo podia estar um bocado atónito de mais para me aconselhar naquele momento, mas pelo menos não tinha começado a gritar comigo nem a dizer que eu era louca.
            - Kiara… tu tens de contar isto ao Chris!
            - Não… - Balbuciei, horrorizada com a sua ideia.
            - Por que não?
            - Porque… Ryan, vá lá, ele ia passar-se comigo!
            Ele não resmungou, por isso continuei, antes que mudasse de ideias.
            - Não vês o porquê de ter vindo falar contigo? De só querer contar-te, mesmo a meio da noite? Arrisquei-me a ir ao teu quarto e a pedir-te que viesses comigo, quando me bastava ir para a cama da Sophie e desabafar com ela.
            - E por que não o fizeste?
            - Porque… - Pensei numa boa maneira de explicar aquilo mas acabei por dizer o que tinha em mente naquele preciso momento. - Porque és o meu melhor amigo. Porque sei que se te pedir que tornes isto segredo, tu não falarás dele a ninguém. A Sophie… ia contar-te imediatamente, claro.
            - Mas eu acho que ela devia saber. Ela é tua amiga, vai ficar muito magoada contigo quando souber que me contaste e não o fizeste a ela!
            Ryan tinha razão. Mas naquele momento eu ainda não me sentia preparada para lhe contar que aquilo continuava, precisamente agora que ela achava que essa fase já tinha acabado.
            - Por favor… estou a implorar-te. Não contes a ninguém. Pode ser que isto passe e que nunca mais tenha de me preocupar com algo parecido.
            - Não sei o que te diga…
            - Promete apenas o que te pedi. - Interrompi-o.
            Durante uns segundos, permanecemos em silêncio a olhar um para o outro, mas por fim ele acabou por suspirar e assentir com a cabeça.
            - OK… eu faço-te a vontade.
            - Obrigada. Isso é muito importante para mim.
            - Mas sabes que isto não vai ser fácil, não sabes? Elas vão desconfiar.
            - Elas já sabem mais ou menos… - Baixei o olhar, sentindo-me a corar.
            - Como assim?
            - Eu acordo-as imensas vezes com os meus gritos. Eu fico tão assustada com os pesadelos que acordo a berrar e elas vêm ter comigo, tentar acalmar-me. Se achas que não me custa estar a esconder-lhes isto, estás enganado. Daria tudo para não ter segredos com elas. Mas… não é algo fácil de revelar.
            - Realmente… sonhares que estás a curtir com o namorado da Kalissa, que mora no mesmo corpo que tu, é… no mínimo… esquisito.
            - É horrível… - Murmurei, escondendo o rosto entre as mãos.
            Só me apetecia chorar. Não podia acreditar que aquilo me estivesse a acontecer. Nem Ryan me conseguia ajudar. E Chris ia passar-se quando descobrisse.
            - Hei, tem calma, vai correr tudo bem.
            Ryan puxou-me para si e abraçou-me fortemente, deixando-me encostar a cabeça à curva entre o seu ombro e o seu pescoço. Enrolei os braços em volta do pescoço dele e deixei-me ficar neles. E, tal como normalmente acontecia com ele, o seu efeito calmante foi passando para mim, e depois de poucos minutos eu já me sentia melhor e parara de chorar.
            - Eu vou ajudar-te. Ainda não sei bem como, mas havemos de encontrar uma maneira de travar isto. - Segredou ele ao meu ouvido.
            - Obrigada.
            - Não te preocupes. Eu… vou estar aqui para ti sempre que precisares de mim.
            Um sorriso desenhou-se nos meus lábios. Era por isto que eu o adorava. Porque ele era capaz de ser assim, fantástico comigo, sem haver qualquer química romântica entre nós. Porque eu era toda do Chris e ele era todo da Sophie. Afastei-me um pouco e limpei as lágrimas dos olhos.
            - Eu vou conseguir parar com isto. É uma fase má, só pode…
            - Sim, tenta não pensar nele antes de adormeceres. Concentra-te noutra coisa, pode ser que ajude.
            - Espero bem que sim…
            - Estás melhor?
            - Sim, obrigada. Realmente… tu és um talismã muito forte.
            - Um talismã? - Ele espantou-se com as minhas palavras.
            - Sim. Quando estou ao pé de ti sinto-me muito melhor, mais calma… é como se tivesses poderes paranormais.
            Ryan riu-se baixinho.
            - Só mesmo tu para quereres tornar a tua vida ainda mais estranha do que já é.
            - Pois…
            - Mas sinto-me orgulhoso de pensares isso de mim.
            Senti-me a corar. Ryan pegou na lanterna e levantou-se.
            - Vamos. Tu precisas de ir para a cama e eu quero continuar a dormir. Caso contrário, amanhã não consigo levantar-me da cama.
            Estendeu-me a mão e eu peguei nela, levantando-me também. Seguimos em silêncio para fora da sala, e percorremos o mesmo caminho de volta até ao corredor dos dormitórios. Quando chegámos junto à porta do meu quarto - Ryan insistira em levar-me até lá - parámos.
            - Desculpa por te ter ido incomodar.
            - Não faz mal. Agora tenta dormir está bem? Vais ver que os pesadelos acabam mais tarde ou mais cedo. - Aconselhou-me.
            - Sim, eu realmente espero isso.
            Ryan sorriu-me uma última vez antes de se virar e ir embora. Suspirei fundo e entrei no quarto. Já esperava que Niza ou Sophie tivessem acordado e dado pela minha falta, mas por algum milagre, estavam ambas a dormir profundamente. Dirigi-me à cama, descalcei os chinelos e entrei, tapando-me até ao pescoço.
            Sentia-me muito melhor. Capaz de aguentar o resto da noite. A conversa com Ryan tinha-me ajudado imenso. Fechei os olhos e preparei-me para dormir.

1 comentário:

  1. bom! muito bom! eu adoro a kiara. to muito feliz ao ler!vc é uma boa escritora portuguesinha!

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