domingo, 23 de janeiro de 2011

Capítulo 3


Ódio


    Senti-me a tomar controlo do meu corpo, pelo que foi mais fácil recuperar os sentidos. Depois, lentamente, abri os olhos e vi o que me rodeava.
         Estava caída no chão do que me pareceu ser a Sala de Convívio. À minha volta encontrava-se Brand e também… o antigo grupo de pacóvios amiguinhos da Kiara. O que é que eles faziam ali? Eu tinha-os afastado suficientemente bem para que não lhes passasse pela cabeça a ideia de recompor a amizade com a parasita que habitava o meu corpo. O que é que eles queriam agora?
         - Kiara? Estás a ouvir-me?
         Ah, era aquele parvo do ex-namorado da Kiara, esse tal de Chris. Estendeu-me a mão e eu só me apoiei nela porque precisava de me levantar. Sentia-me fraca, mais ainda do que quando estava sem tomar comprimidos há muito tempo. Consegui pôr-me de pé e depois olhei para Brand inquisitoriamente.
         - O que é que se passa afinal?
         Ele pestanejou, confuso. Eu já não estava a gostar nada daquela história toda. Coloquei as mãos na cintura e depois olhei para Niza e Sophie, as amigas de Kiara, que pareciam estupefactas por me verem acordar outra vez.
         - O que é que vocês estão aqui a fazer?
         - Ah! Kalissa!
         Brand abraçou-me fortemente, mas eu estava demasiado chocada para conseguir falar, a minha voz pareceu congelar dentro de mim.
         Kalissa?!
         Como raio é que ele descobrira o meu verdadeiro nome? Depois olhei para os seus olhos cintilantes de entusiasmo. Oh não… e os olhos de Chris estavam semicerrados de desgosto.
         A raiva atingiu-me no peito com tanta força que eu senti as mãos a cerrar-se em punhos, os dentes a rangerem com a fúria.
         Como… é que… a Kiara… se atrevera… a contar-lhes… o segredo?!
         Rugi bem alto, deixando que o meu grito ensurdecedor fizesse Chris e Peter recuarem. Brand ficou espantado por me ver reagir assim.
         - O que é que se passou?! O que é que a Kiara vos disse?! - Berrei, sentindo uma vontade enorme de bater em Chris e nos outros todos, vontade que consegui controlar a grande custo.
         - Ela contou-nos toda a verdade. Sobre… as vossas trocas de personalidade. - Respondeu Sophie.
         Olhei furiosamente para ela. Kiara ia arrepender-se de ter posto o meu disfarce a descoberto. Eu ia arranjar uma maneira de a fazer pagar por aquilo, desse por onde desse.
         - Quem mais é que sabe disto? - Rosnei-lhes.
         - O padrinho da Kiara, Mr. Clarckson. - Respondeu Peter.
         Ah pois, mas esse já sabia. Revirei os olhos e recuei até ter as costas junto ao peito de Brand, que envolveu a minha cintura com os seus braços musculados.
         - Estou tão contente por teres voltado!
         O olhar ameaçador que Chris lhe lançou fez-me sorrir.
         - Ela vai arrepender-se de vos ter contado. - Sibilei.
         - Kalissa, pára. Agora que sabemos de tudo… não vale a pena tentares mudar a situação! - Implorou Niza.
         - Ai não? Quem é que ela julga que é, para fazer o que quer com o meu corpo?!
         - O corpo é dela. Tu é que o ocupaste, como uma parasita. - Respondeu Sophie, de olhos semicerrados.
         Rugi novamente, libertei-me dos braços de Brand e lancei-me para ela, dando-lhe um estalo com tanta força que ela recuou alguns passos, agarrando-se à face e choramingando com o choque.
         - KALISSA! - Berrou Chris, pondo-se entre mim e Sophie.
         Rosnei-lhe também e bati-lhe. Mas Chris era mais forte que a parva da Sophie e conseguiu agarrar-me nos pulsos, erguendo-os no ar e impedindo-me de o atingir. Esbracejei o mais que pude mas ele não me soltou.
         - Solta-a Chris. - Interveio Brand.
         Chris demorou algum tempo até ceder e me libertar. Mas antes que eu pudesse bater-lhe outra vez, Brand prendeu-me na jaula que os seus braços formavam e puxou-me para trás, enquanto eu fazia força para me libertar.
         - Acalma-te Kalissa… não gastes as tuas forças com eles… - Disse Brand, recuando comigo presa a si.
         Respirei fundo para me acalmar, para conter a minha raiva. Realmente, sentia-me demasiado cansada para continuar a lutar. Deixei que Brand me abraçasse contra o seu peito musculado e aninhei-me nele.
         - Eu vou levá-la comigo. Quando a Kiara voltar… logo se vê o que acontece. - Respondeu ele, acariciando-me os cabelos molhados.
         - Não a podes levar! Ainda temos de falar com ela! - Resmungou Ryan, aproximando-se.
         - Deixa-os ir. Ela vai ter de voltar mais tarde ou mais cedo. - Disse Chris, de sobrolho franzido.
         Pelo menos daquela vez ele tomou a atitude certa. Brand rebocou-me consigo para fora da Sala de Convívio, arrastando-me pelo refeitório até chegarmos ao hall de entrada, com as duas grandes escadarias. Subimos a que dava acesso aos dormitórios masculinos. Durante todo o caminho ele não disse uma única palavra e eu também não, deixando-me recuperar forças em silêncio.
         Mais tarde trataria de Chris e dos outros.
         Quando chegámos ao quarto de Brand, que ele dividia com Allan e com Drake, Brand fez-me sentar em cima da sua cama e foi ao seu roupeiro buscar algo. Voltou com dois comprimidos pequenos nas mãos e foi à casa de banho buscar um copo de água para me ajudar a engoli-los. Passou-me a droga e a água e eu tomei os dois comprimidos com uma sofreguidão enorme. Precisava mesmo de forças extra.
         Brand sentou-se à minha frente na cama, olhando para mim como se visse um extraterrestre amoroso. Revirei os olhos e pousei o copo da água em cima da mesa-de-cabeceira dele.
         - O que foi agora? - Perguntei.
         - Bem… eu estou confuso com esta história toda das trocas entre ti e a Kiara… só quero que me expliques por que é que nunca me contaste a verdade.
         - Oh Brand… não é algo fácil, OK?! Além de que ela ia arranjar uma mentira qualquer para encobrir a verdade, como faz sempre.
         Ele revirou os olhos.
         - Eu sou o teu namorado. Era normal que confiasses em mim.
         - E confio.
         Arrastei-me até aos seus braços e aconcheguei-me neles.
         - És a única pessoa em quem confio aqui dentro.
         Ele sorriu e acariciou-me os cabelos. Eu fechei os olhos e sorri. Era mentira, claro. Eu só gostava de estar com ele. Mas confiar? Jamais.   
         - Eu fico mais descansado por saber que agora és tu.
         - Vou ser. A Kiara não vai tornar a soltar-se, pelo menos daqui a pouco tempo. - Murmurei.
         Depois pus-me de joelhos à sua frente para o beijar melhor. Agarrei o seu rosto entre as minhas mãos e puxei-o para o meu. E foi o suficiente para silenciar Brand. Ele envolveu o meu corpo nos seus braços e deitou-se sobre mim. Continuei a beijá-lo, esquecendo-me do que tinha acontecido durante uns momentos.
         Tinha todo o tempo do mundo para tratar de Chris e dos outros parvos. Agora só queria aproveitar enquanto tinha Brand a curtir comigo.


         Suspirei. Não podíamos ficar ali para sempre.
         Levantei-me e atravessei o quarto até chegar à porta que dava para a casa de banho do dormitório. Depois vi-me ao espelho de rosto, que estava colocado acima do lavatório.
         Eu estava igual. Aquele aspecto não era assim tão mau. Era como se eu estivesse toda tatuada. Passei a ponta do dedo indicador pelo padrão de veias azuis do meu braço e sorri. Eu era especial.         
         Depois peguei na minha escova e lavei os dentes. Quando acabei bocejei bem com água e voltei para o quarto. Devia estar quase na hora do jantar mas eu não tinha fome nenhuma. Aliás, a única coisa que eu queria naquele momento era dar uma coça no Chris. Enquanto ia ao roupeiro escolher o conjunto e me vestia, fui pensando numa maneira de Kiara se arrepender pelo que tinha feito.
         - Brand. - Chamei.
         Ele virou-se na cama e olhou para mim, sorrindo.
         - Sim?
         - Vou sair. Ficas por aqui?
         - Sim, tenho de arrumar as coisas antes que o Drake e o Allan cheguem. Eles foram buscar mais droga lá fora.
         Assenti com a cabeça e saltei para cima da cama para o beijar uma última vez. Depois levantei-me e saí do quarto, atravessei o corredor até chegar ao meu antigo dormitório e entrei, sem sequer bater à porta.
         Sophie estava sentada na cadeira em frente à secretária, e parecia estar a estudar. Nisa estava deitada na sua cama a ler qualquer coisa. Ambas olharam para mim assim que entrei.
         - Vocês as duas. - Fechei a porta com força e estalei os dedos com pressa. - Temos assuntos a ajustar.
         Nisa pousou o livro na mesa-de-cabeceira e levantou-se, olhando-me com raiva bem visível. Afinal ela não era tão santinha quanto parecia. Também conseguia sentir raiva.
         - Ainda bem que pensas assim, porque nós também queremos falar contigo. - Disse ela.
         Sophie levantou-se e colocou-se ao lado dela. Inspirei fundo, controlando-me. Se explodisse já a gritar com elas não seria capaz de me manter forte o suficiente para deixar Kiara encurralada no poço escuro.
         - A vossa amiga já vos deve ter contado a versão dela da história. Ou seja… mais uma mentira.
         Niza semicerrou os olhos ameaçadoramente.
         - Desta vez ela disse a verdade.
         - Quem vos garante isso? - Perguntei calmamente.
         Ela perdeu o ar ofensivo e pareceu ficar a ponderar na minha pergunta. Comecei a andar de um lado para o outro no quarto, enquanto pensava numa maneira de lhes dar a volta.   
         - Então, se o que ela disse é mentira… queres ser tu a contar a verdade? - Vociferou Sophie.
         Sorri. Já estávamos a chegar onde eu queria, finalmente.
         - Com muito prazer.
         Parei em frente delas e suspirei.
         - Para começar, os pais dela não estão divorciados.
         - Ai não? Então? - Perguntou Niza, espantada.
         - Estão mortos.
         Elas entreolharam-se, perplexas, mas a partir desse momento passaram a acreditar em tudo o que lhes disse.
         - O pai da Kiara chamava-se Gregory Williams e morreu antes de ela chegar a nascer. A mãe dela, Ellen, morreu poucos dias depois de a filha nascer. Por isso ela nunca os conheceu.
         - Qual foi a necessidade dela… de nos mentir sobre isso?! - Disse Niza, magoada.
         - Ora, será que ainda não perceberam que ela tem estado a mentir-vos desde sempre? Cada palavra, cada argumento que ela usou, cada promessa que fez… tudo mentiras atrás de mentiras - Murmurei.
         Eu estava a conseguir convencê-las. Sentia a sua confusão a dar-me força para continuar, e sorri mais ainda.
         - Ela não vos quis contar a verdade porque aconteceu algo de mal com os tios dela.
         - Os tios?
         - Sim. Uma vez que os pais dela foram mortos quando ela ainda era bebé, a Kiara ficou a viver com os tios em Auburn. Só que acabou por fazer com que eles também fossem mortos. - Ri-me.
         Sophie parecia chocada com a minha revelação e com o tom desprovido de emoções que eu usava. Mas nem valia a pena tentar explicar-lhe que eu não tinha nada a ver com a família da parasita nem me preocupava minimamente com eles.
         - Ela não fez com que eles tivessem sido mortos, de certeza! - Gaguejou Niza.
         - Não me contradigas! Eu sei a história, vocês não. Os assassinos dos pais da Kiara foram à casa dos tios dela procurá-la para a matarem, mas como ela foi cobarde e fugiu, deixou os tios para trás e eles foram mortos. E ela foi-se embora com o dinheiro deles, deixando os corpos à mercê dos vizinhos.
         Niza tinha os olhos marejados de lágrimas. Claro, elas não faziam ideia da maldade de Kiara, de todas as mentiras que ela inventara. Até naquele simples pormenor, no qual ela não tinha de mentir, escolheu enganar as amigas. Então muito bem, tinha chegado a hora de eu fazer de justiceira e dizer a verdade.
         - Meu deus… não pode ser…
         - Foi isso mesmo que aconteceu. Depois John, o padrinho dela, trouxe-a para aqui e ficou a tomar conta dos bens dela. E eu tenho de lidar com tudo isto e aceitar todas as ordens que me dão.
         - Tu é que entraste no corpo da Kiara. Ela não tem culpa pelo que aconteceu! - Choramingou Niza.
         - Tem sim. Este corpo já era meu. Ela é que veio para cá.
         Mais uma vez, elas trocaram olhares amedrontados.
         - Como é que podes saber isso? Como é que sabemos quem é que está a dizer a verdade sobre este assunto?       
         - Eu estou a contar-vos toda a verdade para que não haja mais segredos injustos e vocês continuam a não confiar em mim. - Murmurei, imitando um ar muito ofendido.
         - Depois de tudo o que fizeste como queres que confiemos em ti?! - Zangou-se Sophie.
         - Eu só fiz aquilo porque tentei arranjar uma maneira de ter vida própria! Há dezasseis anos que tenho de arcar com as responsabilidades das escolhas da Kiara!
         Niza sentou-se na sua cama e escondeu o rosto entre as mãos, a tremer imenso. Ela era tão estupidamente sensível que me enervava sobremaneira.
         - Não há maneira de te libertares? Para ficares com um corpo só teu? - Perguntou Sophie, esperançada.
         - Não. Eu não sou uma espécie de doença contagiosa, OK? - Gritei.
         Ela estava a falar de mais. Como podia insinuar que eu me soltaria, que libertaria este corpo, o deixaria à vontade de Kiara? Este corpo é meu.
         - Calma…
         - Ela é que tem de ir embora. Mas eu já tentei tirá-la cá de dentro por muitas maneiras e nunca consegui.
         - Então… vocês vão ficar assim para sempre?
         - Pelo que parece…
         Suspirei.
         - Até que ambas morramos.
         - O quê? - Guinchou Niza, atarantada.
         - Se ela morrer eu morro também. Calma, não estou a pensar em nenhuma tentativa de suicídio. Ainda tenho muito para viver e muitas coisas a fazer antes de ir para o Céu.
         Sophie revirou os olhos com uma expressão que dizia claramente "tu não vais para o Céu, vais para o Inferno". Mas eu ignorei-a.
         - Eu só vim cá para vos explicar isto. Não tenho de seguir tudo o que a Kiara segue. Nós somos pessoas muito diferentes. E eu gosto do Brand, logo, vou ficar com ele contra tudo e contra todos, estão a entender?
         - Mas e o Chris?
         Mordi o lábio inferior para me controlar e não gritar com ela.
         - O Chris não me diz nada. Eu não sou dele nem quero ser. Quando a Kiara recuperar o controlo, se isso chegar a acontecer outra vez, ela pode voltar para os braços dele. Mas enquanto este corpo for meu… é à minha vontade.
         Depois virei-me e fui embora. Não conseguia aturá-las durante mais tempo. Tantas perguntas, tanta defesa à Kiara… elas julgavam que eram muito amiguinhas? Que de um momento para o outro Kiara passaria a contar-lhes tudo?
         Estavam muito enganadas.
         Segui até à Sala de Convívio. Era quase hora do jantar mas ainda dava tempo para estar um pouco com o meu grupo. Pensei em contar-lhes a verdade, mas depois apercebi-me que quanto mais gente soubesse da verdade, mais difícil seria manter a minha posição elevada.
         Por isso afastei esses pensamentos da minha cabeça e encaminhei-me rapidamente para junto dos Desportistas, sentados num grupo de sofás em volta da lareira, cujo fogo ardia calmamente, aquecendo o ambiente em redor. Sorri e aproximei-me. Os rostos viraram-se todos para mim, exibindo as expressões que eu também gostaria de ver em Niza, Sophie, Ryan, Peter… e talvez até em Chris: adoração, respeito, servidão… e medo. Medo porque todos eles sabiam que eu era poderosa e que nada podiam contra mim.
         - Olá malta. - Sorri.
         Sentei-me ao lado de Drake e sorri-lhe. O meu companheiro de quarto - uma vez que eu dormia com Brand no quarto deles, Drake e Allan também eram meus colegas de dormitório - passou o braço em volta dos meus ombros e sorriu provocadoramente.
         - Então, Kiara… queres explicar-nos que cena foi aquela há bocado? O que te deu para ires falar com o grupo de pacóvios?
         - Hum… é uma história complicada… e prefiro não falar nela.
         Drake encolheu os ombros e voltou a olhar para a televisão, onde passava um filme de acção qualquer. No momento em que eu olhei, a cabeça de um dos actores saltou-lhe fora do corpo. Revirei os olhos. Carnificina barata não me seduzia mesmo nada.
         - Kiara! Quando é o próximo ensaio da Claque? - Perguntou Lauren.
         - Talvez amanhã, mas temos de ir para o pavilhão do colégio. Parece que a neve vai continuar a cair durante mais algum tempo.
         - Claro, não há problema. - Concordou Meredith. Penny e Terry assentiram, concordando também.
         - Então e logo à noite, vêm ao nosso quarto? - Convidou Zack.
         - Talvez, logo se vê. - Respondeu Lauren.
         - Também queres vir, Kiara? - Perguntou-me Zack, com os olhos a brilhar de entusiasmo.
         Ri-me da expressão no seu rosto.
         - É claro que não. Eu tenho mais que fazer do que fumar no teu quarto. Sabes… no meu faz-se coisas melhores. - Sussurrei, piscando-lhe o olho.
         Drake e Allan riram-se à gargalhada. Depois olhei por cima do ombro de Terry, que tinha juntado a sua gargalhada à dos rapazes, e vi Brand aparecer lá ao fundo, já vestido mas com um ar abatido. Inspirei fundo, preparando-me para fazer o papel de namorada super preocupada, e levantei-me, correndo até ele.
         - O que se passa? - Perguntei.
         - Não me estou a sentir muito bem. Tenho de tomar outra dose mas as minhas reservas já acabaram e o porteiro não me deixa sair.
         Aquele era outro problema. O porteiro colocava-nos muitas vezes em situações complicadas. Talvez eu tivesse de ir aos aposentos do padrinho da Kiara lembrá-lo do nosso mais recente acordo, para ver se ele lembrava o porteiro de quem mandava ali dentro.
         - Brand, eu tenho uma aqui, queres? - Sugeriu Omar.
         - Claro meu, estou mesmo a precisar.
         Brand seguiu comigo até um dos sofás que não estava ocupado e sentámo-nos lá. Meredith levantou-se, pois já sabia qual era a sua missão, e foi à cozinha buscar um copo de água para Brand enquanto Omar tirava dois comprimidos azuis da embalagem que tinha no bolso do casaco. Quando Meredith voltou, Brand pegou no copo e tomou os dois comprimidos rapidamente.
         - Pronto. Agora vai correr melhor. - Sorriu ele.
         Soltei uma gargalhada alegre e beijei-o. Era tudo muito mais fácil quando Brand cooperava. E de seguida ficámos com o grupo a ver o tal filme chato que dava na televisão. Mas claro que Meredith, Terry e Penny se emocionaram muito com as cabeças cortadas e as tripas a serem arrancadas do corpo e de vez em quando gritavam. Enfim, eram tão infantis…
         - Vamos jantar? A comida já deve estar servida. - Alertou Omar, levantando-se.
         Levantei-me e toda a gente imitou o meu movimento, seguindo-me para fora da Sala de Convívio. Chegados ao salão de refeições, sentámo-nos nas posições habituais: eu e Brand ao lado de Omar e Penny, Terry e Zack, e as raparigas e os rapazes que não tinham namorado ou namorada do outro lado, a rodear-nos como a corte faz aos reis.
         Eu sentia-me completa quando estava com eles. O meu plano tinha corrido lindamente: eu ocupava na perfeição o papel de Mariah. Já ninguém falava nela, essa Barbie enfadonha deixara de ser importante e agora era eu a rainha do 11º ano. E era essa a posição para a qual eu tinha nascido: reinar.
         E Brand era um rei perfeito: o rapaz mais giro da escola, o atleta mais importante, o capitão da equipa, etc. E claro que ele só podia ser meu. Eu não deixaria que mais nenhuma rapariga se apoderasse dele.
         Levantei-me para ir buscar a minha habitual Coca-Cola. Todos os dias eu bebia apenas um copo ao jantar, mais nada. A droga tirava-me a fome e era por isso que eu conseguia manter-me assim, magra e elegante: não comia mais nada.
         Mas enquanto me dirigia à mesa do buffet para ir buscar a bebida, deparei-me com os olhos de Chris cravados nos meus. Senti a minha testa a franzir-se de irritação. Eu não queria que ele olhasse assim para mim. Preferia as coisas como estavam antes de Kiara dar numa de santinha e contar o segredo a toda a gente. Era muito mais fácil quando o grupo de parvos amiguinhos dela me ignorava. Eles não eram nada para mim.
         Virei costas ao olhar preocupado de Chris e tornei a sentar-me ao lado de Brand, que passou o braço em volta da minha cintura. E durante o resto da refeição, ignorei as presenças de Chris, Niza, Sophie, Ryan e Peter, lá ao fundo.
         Eles eram apenas escumalha.
         

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Capítulo 2


Explicações



     Era estranho, porque eu sentia-me a acordar mas não conseguia encontrar o meu corpo. Que coisa mais bizarra. Porque era como se o meu corpo fosse feito de pedra.
            Ao fim de algum tempo consegui abrir os olhos e pestanejar. À minha volta era tudo branco e celestial. Onde é que eu estava? E parecia-me que estava a flutuar… a flutuar no vazio? Não. Havia algo extremamente quente junto ao meu corpo. Algo que se mexia, como se estivesse em andamento…
            Estava a correr. E a zona quente era onde o braço do meu melhor amigo se enrolava no meu corpo. Levantei o olhar e fixei-o em Ryan, estupefacta. O que é que ele fazia ali? Por que é que me estava a levar ao colo?
            Depois arrepiei-me com uma rajada de vento mais forte.    
            - Kiara! - Exclamou ele, parecendo muito mais aliviado.
            Voltei a olhar para lá dele. Estávamos no bosque nevado. Provavelmente ele ia a correr em direcção ao castelo. Mas o que tinha acontecido? E depois a dor atingiu-me nos pulmões e descobri que não era apenas aí que sentia ardor, mas no corpo todo. Ofeguei para conseguir respirar em condições.
            - Pregaste-nos um susto enorme! Onde é que tinhas a cabeça para fazeres isto?! - Ralhou.
            Mas eu não conseguia ligar às resmunguices dele. Sentia demasiado frio. Aconcheguei-me melhor nos braços quentes de Ryan e tornei a fechar os olhos. Ele levava-me ao colo com uma facilidade quase inacreditável.
            - Não feches os olhos. Não quero que desmaies outra vez. - Murmurou ele, em voz muito baixa.
            Esforcei-me por obedecer ao seu pedido. Os meus dentes tremiam sem parar. Sentia-me a descongelar, tudo à minha volta era extremamente frio, excepto Ryan.
            Quando chegámos à escadaria de basalto que dava acesso às portas de entrada do castelo, ouvi-o a dizer aos dois guardas que nos deixassem passar, e o ar tornou-se subitamente mais quente. A diferença de ambiente foi tão brusca que me fez estremecer. Ele continuou a correr comigo até ao salão de refeições, e daí passou para a Sala de Convívio. Eu via tudo à roda e não conseguia pensar em condições.
            - Sophie, Niza! Encontrei-a! - Gritou Ryan.
            As vozes alvoraçadas das minhas duas amigas despertaram-me a atenção, por parecerem tão preocupadas comigo.
            - Onde é que ela estava?
            - Bastante longe do castelo, numa pequena clareira com uma árvore no meio…
            - Ah, sim, claro! Como é que não me lembrei logo? Essa clareira é o lugar preferido dela aqui no colégio! - Suspirou Niza.
            Ryan pousou-me cuidadosamente no sofá, deitando-me ao comprido, e depois Sophie correu para me ir buscar umas mantas, enquanto eu tentava parar de tremer como varas verdes.
            - Onde é que se enfiou o Chris? - Perguntou Niza, acocorando-se ao meu lado e tirando-me o cabelo da testa.
            - Não sei, mas agora não vou sair daqui enquanto ela não melhorar. - Teimou Ryan com convicção.
            - Está bem… Kiara, estás a ouvir-me? - A voz de Nisa voltara a ficar apreensiva.
            - Estou. - Balbuciei.
            - Por que é que foste para tão longe? Estava demasiado frio!
            - Eu tinha… de falar… com o Chris… - Gaguejei.
            - Pois, mas não tinha de ser ali! Sinceramente…
            Agarrou nas minhas mãos e friccionou-as junto às suas para que estas aquecessem. Eu fechei os olhos. Sentia-me cansada e queria mesmo muito dormir outra vez. Não queria ter de encarar todos os problemas à minha volta.
            - Ela estava desmaiada e quase completamente coberta de neve quando a encontrei. - Explicou Ryan, sentando-se na poltrona ao lado do sofá onde eu estava deitada.
            - Oh meu deus… o Chris vai ouvir das boas! - Vociferou Niza.
            Sophie chegou nesse momento com três mantas de lã que colocou sobre mim. Niza ajudou-me a enrolar-me melhor nelas e comecei a sentir os dedos dos pés e das mãos a recuperarem o movimento. Estava a descongelar, ainda que muito lentamente.
            - Ela está melhor? - Perguntou Sophie ansiosamente.           
            - Acho que sim… mas seria melhor beber um chocolate quente, e depressa. - Sugeriu Ryan.
            Niza levantou-se rapidamente.
            - Vou buscar um. Fica aqui com ela. - Acrescentou para Sophie.
            Sophie tomou o lugar de Niza quando esta se lançou numa corrida apressada para fora da Sala de Convívio, em direcção ao refeitório. Mantive os olhos fechados enquanto abria e fechava os dedos para que estes descongelassem.
            - Pareces uma princesa de gelo, sabias? - Sorriu Sophie.
            - Isso é suposto ser um elogio?
            - Claro que é!
            - Então obrigada. - Murmurei, esforçando-me por sorrir.
            Ela pousou as mãos quentes nos meus ombros e o calor do seu corpo foi passado para o meu em pequenas quantidades. Niza voltou com uma caneca cheia de chocolate quente. Acocorou-se ao lado de Sophie e passou-ma, sempre com um ar de mãe atormentada pelo estado da filha.
            - Toma, bebe isto, vai ajudar.
            Fiz um esforço descomunal para me sentar no sofá - todos os meus músculos estavam doridos e protestavam com o movimento - e peguei na caneca, embora as minhas mãos tremessem imenso. Levei o líquido quente à boca e queimei a língua, arrepiando-me logo de seguida.
            - Vá lá Kiara, isso vai ajudar a descongelar-te.
            Assenti perante o conselho de Ryan e fui dando pequenos golinhos no chocolate quente. Os meus três amigos ficaram ali comigo, em silêncio, enquanto eu recuperava a cor rosada e o movimento do corpo. Quando já me sentia mais forte, fui capaz de falar em condições.
            - O Peter?
            Sophie e Niza entreolharam-se com preocupação.
            - Nós contámos-lhe o que se tinha passado. Ele não está nada contente com a situação, claro, mas acho que quando te vir e falar contigo vai perdoar-te. Pelo menos nós esperamos por isso.
            - O Chris não me perdoou. - Murmurei.
            E ao lembrar-me do que tinha acontecido senti vontade de chorar, mas os meus canais lacrimais deviam ter ficado demasiado enregelados e já nem produziam lágrimas.
            - Queres que o vamos chamar? - Sugeriu Ryan.
            - Sim… por favor…
            Sophie desapareceu de pé de mim em poucos segundos, movendo-se quase tão depressa como um fantasma enquanto corria para fora da Sala de Convívio a fim de encontrar Chris. E eu nem sabia se ele me queria ver à frente, mas tentei não pensar nisso.
            - O chocolate quente está bom? - Perguntou Niza.
            - Está… obrigada…
            Acabei de beber o conteúdo da caneca no momento exacto em que Sophie voltava com Chris ao seu lado e se aproximavam do sofá onde eu estava sentada. Nem ousei olhar directamente para Chris; tinha medo de ainda ver vestígios de raiva nos seus olhos.
            Mas o que ele fez surpreendeu-me.
            Chris sentou-se ao meu lado no sofá e compôs as mantas em meu redor para que eu descongelasse mais depressa. Depois enrolou os braços em volta do meu corpo e apertou-me contra o seu peito quente, aquecendo-me. Eu suspirei de alívio e fechei os olhos.
            Foi mais fácil libertar-me com ele junto a mim.
            Durante os primeiros minutos ninguém disse o que quer que fosse e um silêncio sepulcral parecia ter-se instalado na Sala de Convívio. Mas depois Sophie tirou-me a caneca vazia das mãos e levantou-se do outro sofá.
            - Vou devolver isto.
            E correu para fora da sala. Ryan sentou-se mais confortavelmente na poltrona e Niza ocupou o sofá ao lado do meu, enquanto Chris me embalava lentamente e me aquecia.
            - Onde está o Peter? - Perguntou Niza ao Chris.
            - Deve estar no quarto. Eu não lhe disse que vinha para aqui.
            - Vocês os dois não conseguem ver o mal que lhe estão a fazer? - Resmungou Niza, inclinando a cabeça na minha direcção.
            - E tu não consegues lembrar-te do que ela já fez?
            Aquilo atingiu-me como uma facada no peito mas esforcei-me por continuar a respirar.
            - Não foi ela! Foi a Kalissa. E é contra essa demónia que temos de nos unir neste momento. - Replicou Sophie, que estava de volta.
            Sorri ao ouvi-la usar o mesmo nome que eu quando queria chamar Kalissa. Demónia. Era realmente apropriado.
            Chris deixou-me encostar a cabeça à curva entre o seu ombro e o seu pescoço, que estava bastante quente, e eu senti-me melhor ali.
            Ficámos em silêncio, enquanto eu ouvia o coração do meu amor a bater calmamente. Senti-me a entrar num estado de dormência e os meus olhos tornaram a fechar-se. Ia mesmo adormecer quando uma nova voz chegou até aos meus ouvidos.
            - O que é que se passa aqui?
            Queria abrir os olhos para responder a Peter mas não tive forças para isso, pelo que foi Niza a explicar-lhe.
            - A Kiara e o Chris foram lá para fora, para o bosque, falar e devem ter discutido e o teu amigo deixou-a sozinha a congelar caída na neve!
            Eu podia imaginar o olhar enervado que Niza deitou a Chris, mas ele não lhe respondeu mal.
            - Ela estava de pé quando eu a deixei. - Respondeu, encolhendo os ombros como se não fosse nada com ele.
            - E depois elas pediram-me que fosse procurar a Kiara porque estava a ficar tarde e ela nunca mais voltava. E eu encontrei-a, muito longe daqui, desmaiada e coberta de neve. Havias de a ter visto, Peter… agora estamos aqui a ver se ela descongela. - Resumiu Ryan.
            Suspirei e abri finalmente os olhos. Peter parecia dividido nos seus sentimentos: por um lado queria perdoar-me e sentar-se ao lado de Niza enquanto esperava que eu recuperasse. Por outro lado, queria dar a imagem de macho forte que nunca dá o braço a torcer, por isso continuaria chateado comigo.
            - Peter… desculpa. - Murmurei.
            Ele assentiu com a cabeça e foi sentar-se ao lado de Niza, fazendo-me sorrir. Estava a conseguir ganhar a confiança deles, novamente, e isso era o melhor que me podiam dar naquele momento.
            Mas claro que algo tinha de interromper o momento de reconciliação com o meu grupo.
            Eu estava prestes a começar a explicar o meu segredo a Peter quando uma voz mais forte e agressiva me chegou aos ouvidos, vinda de trás do sofá.
            - Kiara?!
            Eu reconhecia aquela voz. Por isso fiz um esforço para rodar a cabeça e olhar para Brand, que estava pasmado ao ver-me nos braços de Chris.
            - Brand… espera… - Sussurrei.
            A minha voz saía terrivelmente mal. Apoiei-me no ombro de Chris para me conseguir levantar, e ao ver-me cambalear para a frente, Brand correu até mim e suportou o peso do meu corpo dos seus braços. Só que Chris também me estava a agarrar por trás e ficámos os três ali, sem jeito nenhum, enquanto eles decidiam se haviam de se matar já ou não.
            - Brand, eu tenho de te explicar uma coisa. - Sussurrei ao ouvido dele.
            Brand arrancou-me dos braços de Chris e afastou-se alguns passos comigo presa nos seus braços. Não que me apetecesse estar lá. Não queria mesmo. Mas também não queria nada que ele se passasse e que começasse a lutar com Chris.
            - O que é que te deu? Por que é que estás assim? - Perguntou Brand, enervado.
            - Desmaiei lá fora no bosque. E estou a descongelar, tem calma.
            Ele abraçou-me com força, o que não deixou Chris nada contente. Eu era capaz de o ouvir a expirar furiosamente atrás de mim.
            - Tem calma. O Brand ainda não sabe o que se passa. - Disse Niza.
            - Não sei o quê?
            - Aquilo que te vou explicar. Senta-te aqui comigo, por favor. - Pedi baixinho, puxando-o comigo até um dos sofás do grupo.
            Brand sentou-se lá comigo e eu encostei-me a ele, pois estava suficientemente quente para que eu não precisasse de cobertores.
            - Brand… eu disse-te que algo estava errado, esta manhã, quando saí do quarto, certo?
            - Sim.
            - Então eu vou explicar-te o que aconteceu.
            - Começa a falar, já não estou a gostar nada desta situação.
            Suspirei e depois resumi-lhe a história da trapalhada toda de Kalissa, tal como tinha feito para os meus amigos. No fim, Brand ficou a olhar para mim com o ar mais aparvalhado do mundo, sem querer acreditar.
            - Estás a gozar comigo?!
            - Antes estivesse…
            - Como é que tiveste coragem de esconder isto?
            - Eu já te expliquei que estava a tentar proteger-vos.
            - Eu sei defender-me sozinho! - Rugiu ele, furioso.
            - Tem lá calma! Ela não está bem. Não grites com ela. - Interpôs-se Ryan, levantando-se da poltrona com ar ameaçador.
            - Não gritem, vá lá. Dói-me imenso a cabeça. - Implorei.
            Ryan sentou-se novamente e a calma voltou, mais ou menos. Brand embalou-me para me aquecer e eu senti que já estava quase totalmente recuperada.
            - Então isso quer dizer… que eu não gosto de ti, mas sim da Kalissa?
            - Sim… é basicamente isso. Mas tu gostas mesmo dela?
            - Caramba, sim! Eu deixei a Mariah por causa dela!
            Assenti. Essa era outra com quem eu teria de lidar mais tarde.
            Há três semanas atrás, Brand e Mariah eram o casal mais importante do 11º ano, como se fossem os "Reis". Ele era o atleta mais importante e ela a Chefe da Claque. Só que Kalissa não podia ver ninguém feliz e arranjara logo maneira de separar aqueles dois. Acabara por ficar com Brand e ainda destruíra a alegria de Mariah. Eu nem queria imaginar o ódio que ela me teria neste momento…
            - Como é que está a Mariah? Lamento pelo que a Kalissa lhe fez…
            - Eu não quero saber da Mariah. Ela já não é ninguém. - Brand encolheu os ombros despreocupadamente.
            Apeteceu-me dar-lhe um estalo. Só porque acabava o namoro com ela achava que a rapariga passara a ser ninguém? Brand era o típico desportista de colégio: convencido, autoritário e capaz de ser mais insensível ainda do que aparenta.
            - Como assim? - Perguntei.
            - Então, a Kalissa agora é a nova Chefe da Claque, e a Mariah nem sequer faz parte da Claque neste momento. As amigas dela já nem lhe ligam nenhuma. Acho que ela está meia maluca neste momento.
            Oh não…
            Então Kalissa sempre tinha atingido o seu objectivo. E eu sabia que ela tinha um plano qualquer para acabar com a felicidade de Mariah, só nunca pensei que chegasse àquele ponto.
            - A Mariah deve odiar-me. - Murmurei.
            - Não te preocupes com ela. Está apenas a provar do seu veneno. Ela nunca foi boa para ninguém, Kiara! É a paga por tudo o que tem andando a fazer durante estes anos. - Disse Sophie.
            - Mesmo assim! Isto é tudo culpa da Kalissa!
            - Não te preocupes com ela neste momento. Tens situações bem mais importantes entre mãos. - Lembrou Ryan.
            Pois. E uma delas era fazer com que Brand me libertasse e me deixasse voltar para os braços de Chris.
            - Por isso, como podes entender, tu não estás a lidar com a tua namorada neste momento. Agora eu sou a Kiara.
            - Quando é que a Kalissa volta? - Perguntou Brand, ansioso.
            Revirei os olhos mas Niza foi menos calma a responder.
            - "Quando é que ela volta"?! Ouve lá, ela não devia voltar nunca, entendes? Essa Kalissa só existe para trazer a desgraça à vida de toda a gente à sua volta! Não sei como podes gostar dela!
            - Calma Niza. Não gastes a tua saliva com ele. - Respondeu Sophie, com ar superior, lançando o cabelo para trás do ombro.
            Brand calou-se e voltou a fixar o olhar em mim.
            - Ela vem ter comigo quando… conseguir voltar ao controlo?
            - Muito provavelmente.
            - Hum…
            - Mas Brand, eu se fosse a ti afastava-me dela. A Kalissa também vai arranjar uma maneira de te complicar a vida, tenho a certeza.
            - Ela gosta de mim. - Respondeu ele de modo autoritário.
            - Oh sim, como se ela tivesse capacidade para gostar de alguém. - Rosnou Chris, furioso.
            Eu estava farta daquilo tudo, de todas as rivalidades. Sentia-me doente e a dor de cabeça era tão forte que nem me deixava pensar em condições. Precisava de tomar um comprimido e bem depressa.
            Comprimidos…
            Lembrei-me subitamente que Kalissa se drogava. Talvez o meu corpo estivesse a pedir uma nova dose e eu não me tinha apercebido disso.
            - Brand… a Kalissa droga-se, não é? - Perguntei baixinho.
            - Sim, comigo e com o Allan e os outros.
            - Pois. Eu acho que… estou a precisar de um comprimido qualquer…
            Nem acredito que disse aquilo. Não queria tê-lo dito, por isso nem tive coragem para olhar para as caras aterrorizadas dos meus amigos, e principalmente de Chris, que deveria estar muito chocado comigo naquele momento.
            - OK, queres que te vá buscar um? Os efeitos já devem estar a passar.
            - Quando é que te drogaste a última vez? - Perguntou Niza, de olhos arregalados.
            - Esta manhã, antes de sair do quarto do Brand.
            - Pois… eu não percebo muito do assunto, mas acho que o teu corpo já chegou à fase da dependência da droga e por isso precisas de tomar qualquer coisa, e bem depressa.
            - Não. 
            O rugido furioso de Chris fez-me finalmente olhar para ele. Chris tinha-se levantado e as suas mãos estavam cerradas em punhos, o seu rosto contraído pela exaltação.
            - Ela não se vai drogar mais! Tens de parar com isso!
            - Ela não pode parar com a droga de um momento para o outro, ou vai ficar mesmo doente. - Explicou Peter.
            - Não quero saber, vamos arranjar ajuda, mas ela vai sair da droga!
            Brand levantou-se e encarou Chris.
            - Acho que ela é que tem de decidir isso.
            E eu senti que eles estavam prestes a atirar-se um ao outro, senti uma necessidade louca de impedir que isso acontecesse. Usei as minhas últimas forças para me pôr de pé e colocar entre eles os dois.
            - Parem com isso. Não posso contar só com a minha opinião. Eu nunca posso pensar só por mim. Kalissa também tem algo a dizer sobre este assunto. E ela vai fazer o que quiser quando despertar.
            E isso parecia ir acontecer naquele preciso momento.
            As minhas pernas falharam e eu senti-me a cair. Nem Chris nem Brand foram suficientemente rápidos para me ampararem quando eu caí ao chão, batendo com a cabeça no tapete. E perdi os sentidos nesse momento.