domingo, 2 de janeiro de 2011

Capítulo 1


Revelação
  

          


             Eu não sabia o que fazer.
            Quando saí dos aposentos do meu padrinho, John Clarckson, sentia o coração a bater tão depressa que parecia ir-me saltar do peito a qualquer momento. As mãos também tremiam imenso. Inspirei fundo - isso fez-me doer os pulmões - e olhei para a minha esquerda. Ao meu lado seguia Niza, a minha melhor amiga (ou pelo menos eu ainda a encarava assim) com um ar muito preocupado e contrariado. O sorriso de há pouco tempo tinha desaparecido do seu belo rosto. Ela estava apreensiva com a situação.
            Claro! Quem não estaria?
            Olhei para a minha direita. Sophie e Ryan, os meus outros dois amigos, seguiam de mão dada, a olhar para a frente, ambos ainda mais enervados que Niza, como se nem quisessem olhar para mim. Suspirei.
            Era como se, há meia hora atrás, eu tivesse despertado de um pesadelo demasiado mau, mas infelizmente percebi que era real de mais. E agora ali estava eu, a percorrer os corredores da Blackstone Private School, o colégio interno onde eu estudava, ao lado dos meus três melhores amigos que nem podiam ver-me à frente. E para piorar ainda mais um pouco a situação: ia falar com o meu namorado - na verdade já tinha passado ao estatuto de ex-namorado, mesmo que não tivesse sido eu a acabar com ele - que me devia odiar mais que qualquer outra pessoa, e que de certeza não quereria falar comigo.
            Meu deus… por que é que eu não continuei a dormir hoje?!
            - Kiara… também tens de falar com o Peter. - Alertou Niza, sem sequer olhar para mim, e a sua voz apresentava um tom que condizia na perfeição com a expressão do seu rosto.
            - Eu sei. Achas que devo falar primeiro com ele ou com o Chris?
            Chris era a minha prioridade naquele momento. O meu ex-namorado que eu tinha de recuperar o mais depressa possível, porque o meu coração não se manteria a bater durante muito mais tempo se eu não fizesse as pazes com Chris e não lhe explicasse toda a verdade.
            Toda a verdade, de uma vez por todas. Nem queria acreditar que lhe diria todas as mentiras que andara a inventar durante esses últimos três meses. Ele ia odiar-me, pronto, era melhor que eu me convencesse disso.
            - Acho melhor deixares-nos falar com o Peter antes de o encarares. Ele está muito enervado contigo. - Respondeu Ryan.
            Olhei para ele. Por que é que de repente os seus dons de talismã não estavam a funcionar? O seu poder (que só parecia funcionar comigo, o que tornava o meu melhor amigo ainda mais especial, e que eu sempre acreditara ser um bocado paranormal) de me acalmar como ninguém conseguia fazer, não estava a resultar naquele momento, porque eu sentia-me aterrorizada, e normalmente na presença de Ryan nunca me sentia assim. Ele parecia lançar descargas de calma para dentro da minha cabeça, salvando-me dos sentimentos mais conflituosos, mas naquela altura ele não devia estar com vontade de me ajudar. Suspirei e continuei a andar em frente.
            - OK. Obrigada por fazerem isso.
            Chegámos ao fundo do corredor e descemos o lance de escadas de pedra que aí se apresentava. Ainda faltavam alguns corredores e bastantes escadas até chegarmos ao salão de refeições do colégio. Aí, os meus amigos seguiriam para falar com Peter e eu teria de enfrentar Chris sozinha. Mas era melhor assim: não queria que Niza, Sophie e Ryan vissem a gigantesca discussão que se aproximava. Engoli em seco só de pensar nela.
            - Kiara… achas que a Kalissa se vai soltar novamente?
            - Sim. - Murmurei.
            Era uma certeza tão forte que não havia como a negar. Niza pareceu ficar mais preocupada que antes.
            - Eu não consigo controlá-la, e como neste momento estou nervosa é mais fácil para ela de se soltar. - Expliquei.
            - Talvez se te acalmares consigas mantê-la longe. - Sugeriu Sophie.
            Fixei o meu olhar no dela e Sophie entendeu logo que eu me esforçava ao máximo todos os dias para manter Kalissa afastada, que não sabia o que fazer mais com aquela situação.
            - Desculpa, não foi isso que quis dizer… não estou a insinuar que não te esforças… - Sussurrou.
            - Eu sei.
            E continuámos a descer as escadas em silêncio.
            Quando chegámos junto ao enorme refeitório do castelo, parei e deixei que eles olhassem para mim uma última vez.
            - Eu quero falar com o Chris… a sós. - Respondi.
            - Pois… deixa-me ver se ele está lá dentro, já volto. - Disse Ryan.
            Passou pelas pesadas portas de madeira do salão de refeições e voltou pouco tempo depois, assentindo. O baque no meu peito foi forte o suficiente para me fazer morder o lábio inferior, numa tentativa de não dar meia volta e fugir a correr. Não fiz isso por duas razões: primeiro, porque sabia que mais tarde ou mais cedo teria de enfrentar Chris, e depois, porque não tinha força suficiente para correr.
            - Ele está na Sala de Convívio e o Peter está no refeitório. Vai ter com o Chris. - Explicou Ryan.
            Aquiesci e olhei para Niza, depois para Sophie, e finalmente para Ryan.
            - Acham que ele vai acreditar em mim?
            - Queres que te seja sincera? - Ao ver o meu olhar suplicante, Sophie percebeu que isso era mesmo necessário. - Não. Porque a tua história parece realmente mais uma mentira. É difícil de acreditar.
            Eu sabia que ela dizia a verdade. E era por isso que eu não contava o meu segredo a muita gente: porque quase ninguém acreditava em mim. Niza aproximou-se e pegou na minha mão, sorrindo tristemente.
            - Vai lá. Eu acredito em ti, estarei aqui para te ajudar aconteça o que acontecer.
            Sorri, sentindo que as suas palavras me acalmavam, que entravam na minha cabeça e nunca mais de lá sairiam. E depois fiz aquilo que já me apetecia fazer desde que chegara ao pé de Niza: puxei-a para os meus braços e abracei-a com todas as minhas forças, que naquele momento não eram muitas devido ao efeito da droga.
            - Obrigada por confiares em mim. - Sussurrei ao seu ouvido.
            Depois recuei e, enchendo-me de coragem, atravessei as portas de entrada do refeitório.
            Alguns dos alunos estavam ali, já à espera que o almoço fosse servido, e de repente todos os olhares se cravaram em mim, e a maioria deles parecia irritada ou amedrontada. Eu nem queria pensar no que Kalissa teria feito para que toda a gente a olhasse daquela maneira. Se calhar o meu simples aspecto provocava aquelas reacções. E no meio dos olhares dos alunos de diversos anos de escolaridade, descobri o do meu amigo, Peter, sentado na mesa do 11º ano. Ele olhou para mim por uns segundos apenas, não com raiva ou medo mas sim com desdém, e depois desviou os olhos, fazendo com que eu me sentisse abatida novamente. Seria difícil para ele perdoar-me depois de tudo o que acontecera.
            Quando cheguei ao fundo do salão de refeições, a grande porta que dava acesso à Sala de Convívio do colégio deu-me passagem e eu inspirei fundo antes de percorrer a sala com o olhar.
            A disposição dos móveis era a mesma: os sofás confortáveis estavam agrupados em conjuntos de três ou quatro, juntos com uma poltrona pelo menos, dispersos pelo grande salão. Alguns dos conjuntos estavam junto às paredes pois assim ficavam de frente para as várias televisões plasma. As grandes lareiras antigas da sala deixavam a luz do seu fogo ardente aquecer e iluminar a divisão. As grandes janelas de parapeito largo estavam fechadas, com os espessos cortinados corridos, pelo que a fraca luz do sol de Dezembro não entrava na Sala de Convívio.
            Havia vários alunos sentados nos sofás, a conversar animadamente. Mas assim que eu entrei as conversas pararam abruptamente, enquanto mais olhares ansiosos se cravavam no meu. Cerrei as mãos em punhos, tentando manter a calma. Um dia, ainda que eu não soubesse como ou quando, Kalissa ia pagar por tudo o que fazia.
            Descobri Chris, sentado numa poltrona como as presentes nas casas do século XVII, de costas para mim, mas soube logo que era ele. A televisão embutida na parede, mesmo à frente dele, estava desligada, e deu-me a impressão que Chris estaria apenas a descansar, sem ter paciência para estudar, ler ou ver algum filme que passasse na televisão. Respirei fundo, a energia desceu-me pelos braços até às pontas dos dedos, e avancei lentamente até ele, ignorando o burburinho da assistência.
            Quando cheguei junto à poltrona, parei. Não sabia o que devia dizer-lhe. De certeza que há três semanas que ele não me dirigia (não a mim, mas ao meu corpo) a palavra e seria estranho que de um momento para o outro eu decidisse falar com ele. Mas tinha chegado a hora de eu tirar aquela história a limpo.
            - Chris.
            Falei baixo o suficiente para apenas ele ouvir, e apesar de me ter ignorado, eu soube que ele me tinha escutado. Aguentei o seu desprezo por mais uns segundos e depois tornei a chamá-lo. E finalmente, ele levantou-se e ficou de frente para mim.
            Eu deixei de respirar por uns segundos, enquanto o via.
            Ele estava diferente, tal como eu.
            Três semanas tinham sido o suficiente para que ele mudasse, física e psicologicamente. Ainda reconhecia o meu namorado, o rapaz que eu mais amava no mundo, escondido por detrás daquelas feições furiosas. Aqueles lábios carnudos e belos que formavam o sorriso mais delicioso do planeta, aquele nariz direito, aquelas maçãs-do-rosto elevadas, aquele cabelo desalinhado e incrivelmente sexy, de um belo tom de castanho-claro, e por fim… aqueles olhos…
            Os olhos de Chris eram, definitivamente, os olhos mais bonitos que eu alguma vez vira. Eram azuis-claros como o céu num dia solarengo, tão profundos e cristalinos como safiras, e eram os únicos olhos capazes de me fazer derreter como se fosse manteiga. Normalmente apresentavam-se apaixonados, fixando-se nos meus com uma intensidade anormalmente forte. Mas naquele dia, naquele momento em especial, eles estavam escurecidos pela raiva, semicerrados pela irritação, as sobrancelhas contraídas pela fúria.
            Mas ainda assim ele não deixava de se parecer com um deus grego, pelo menos para mim.
            - Chris… - Murmurei, inspirando o seu perfume delicioso.
            Era tal e qual eu me lembrava: "essência de Chris", tão deliciosa, tão atraente quanto o corpo dele.
            Chris não disse nada. Continuou a olhar para mim com raiva, como se me quisesse desfazer. Eu sabia que ele jamais ultrapassaria a separação. O que quer que Kalissa lhe tivesse dito tinha sido o suficiente para o deixar enervadíssimo, mas não o bastante para o fazer deixar de me amar. E precisamente por me amar tanto quanto eu o amava é que estava enervado por me ver.
            - Eu preciso de falar contigo. - Murmurei.
            - Não quero saber de ti para nada.          
            A sua voz tinha mudado: estava mais forte, mais masculina, ainda melhor que antes, não fosse aquela capa de maldade.
            - Eu sei que me odeias, escusas de dizê-lo.
            Ele revirou os olhos.
            - Então não sei o que vieste aqui fazer.
            - Eu… vim falar contigo porque… o que se têm passado nestas últimas semanas… é demasiado grave…
            - Uau, admiro-te por teres sido capaz de chegar a essa conclusão sozinha. - Rosnou ele, furioso e com o sarcasmo bem forte na voz.
            Suspirei. Aquilo não ia ser nada fácil.
            - Tu podes odiar-me, querer bater-me por tudo o que aconteceu, e talvez nem tenha o direito de te pedir isto mas… preciso que venhas comigo. Preciso que me ouças, só desta vez.
            Ele não respondeu, mas o simples facto de não ter negado logo o meu pedido era um óptimo sinal de progresso.
            - Vamos lá para fora. Não quero mais ninguém a ouvir.
            - Porquê? Os teus amiguinhos ficavam ofendidos de te ver comigo? - Vociferou ele, novamente irritado.
            - Não. Não quero saber das opiniões deles para nada.
            Chris rangeu os dentes com fúria.
            - E eu não quero saber da tua, será que ainda não percebeste?
            Aquilo não ia levar a lado nenhum. Ele não me ia escutar. Aproximei-me mais e baixei o tom de voz.
            - Eu não te vou largar. Se for preciso vou andar à tua volta o resto do tempo até que me ouças. Por isso, se fosse a ti, despachava já isto. Só te peço dez minutos.
            Ele hesitou entre gritar comigo ou sair a correr da Sala de Convívio. Aguardei que tomasse a sua decisão e depois vi-o a enfiar as mãos nos bolsos dos jeans coçados nos joelhos.
            - Eu ouço-te. Mas podes ter a certeza que estás a perder o teu tempo.
            Depois contornou-me e saiu pela porta. Eu suspirei de alívio e fui atrás dele sem dizer mais nada. Nem queria pensar que estava a ser tão difícil controlar-me, não o abraçar, não o beijar, não lhe dizer o quanto o amava.
            Seguimos até às enormes portas de entrada da Blackstone Private School. Passámos através delas e o que vi deixou-me de queixo caído.
            Da última vez que eu estivera a controlar o meu corpo, ou seja, há três semanas atrás, estava frio e chovia imenso. Mas naquele dia, o solo do colégio estava coberto por um denso manto branco, o céu intensamente nublado e o ar quase irrespirável de tão gélido. As folhas de algumas árvores tinham caído e elas tinham um ar desolado. O sol não conseguia penetrar a espessa camada de nuvens e o céu parecia estar tão baixo que me causava uma certa claustrofobia, uma necessidade enorme de voltar para dentro do castelo. Chris continuou a andar para longe da escadaria de basalto, também ela coberta de neve, sem me dizer mais nada. Eu segui atrás dele, afagando os braços para que estes não congelassem. Os meus dentes batiam freneticamente com o frio.
            O pátio do colégio tinha ganho um brilho branco. As mesas e bancos de pedra estavam cobertos de neve, as árvores despidas de folhas, e tudo sob uma neblina de escuridão que dava a impressão de ainda ser de madrugada.
            Chris atravessou o atalho que ia desde a entrada do castelo até ao campo de desporto, do outro lado do mesmo. Eu sabia que agora as aulas de Educação Física já não podiam decorrer na gigantesca clareira do colégio, que devia estar igualmente cheia de neve, por isso as turmas tinham de fazer essa aula no pavilhão coberto lá do colégio.
            O atalho - que se parecia com um túnel, com árvores de ambos os lados, separadas entre si por meio metro, e cujos ramos se uniam acima das nossas cabeças formando uma abóbada verdejante (na maioria do tempo) - também estava diferente. Como as árvores estavam quase totalmente despidas de folhas, o túnel quase não existia. Mas ainda assim, foi por lá que Chris seguiu, em silêncio. A neve enterrava-se debaixo dos nossos pés e tornava difícil a tarefa de caminhar.
            Embrenhámo-nos no bosque que rodeava a Blackstone Private School. O ar era ainda mais frio ali, e os meus dentes batiam mais do que nunca, enquanto as pernas me tremiam. De repente, Chris parou, mas eu sabia onde queria falar com ele, o lugar onde queria explicar-lhe tudo. O sítio que eu considerava mais mágico ali no colégio.
            - Vem comigo. - Pedi baixinho.
            E continuei a caminhar em frente, naquela imensidão branca e gelada, com Chris a seguir-me sem resmungar. Ao fim de imenso tempo, consegui chegar ao meu lugar encantado: a pequena clareira da árvore velha.
            Quando não havia neve, o chão da clareira estava coberto de relva macia e florezinhas brancas pequeninas. Como a clareira era pequena, os ramos das árvores uniam-se uns aos outros e formavam um tecto verdejante em forma de abóbada, que filtrava a luz do sol e a tornava esverdeada. E no centro da clareira havia uma grande árvore, com o tronco velho que se retorcia a partir do chão, e ao qual era extremamente fácil subir. Eu costumava escalar pelo tronco e deitar-me num dos muitos ramos grossos que se elevavam alguns metros acima do chão, e ficava ali a escutar o canto dos pássaros.
            Mas naquele momento, até a clareira tinha perdido parte do seu brilho encantador. Estava gelada, com o chão coberto de neve, e algumas das árvores tinham perdido as suas folhas. No entanto, continuava a ser um lugar mágico e eu queria falar com Chris ali mesmo. Virei-me de frente para ele, e vi como os seus olhos se arregalavam de espanto ao admirar o local por mim escolhido.
            - É um lugar bonito, não é? Descobri-o no primeiro dia que vim para o colégio. - Expliquei.
            Ele cravou de novo os olhos em mim e voltou a ficar irritado.
            - Despacha-te com aquilo que tens a dizer, não tenho o dia todo.
            Suspirei e aproximei-me mais dele, ficando com apenas meio metro a separar-nos.
            - Chris… o que aconteceu nas últimas três semanas… não fui eu. Sei que é difícil de acreditar, mas preciso que confies em mim. Não era eu quem estava a controlar o meu corpo. E se pensares bem, consegues chegar a essa conclusão. A tua namorada jamais faria alguma daquelas coisas.
            - Tu já não és minha namorada. E fazes, sim, eu é que pensei que te conhecia e que nunca farias aquilo.
            - E tu conheces! Chris, és quem me conhece melhor. És a única pessoa que me consegue ler os pensamentos, saber aquilo que sinto em cada ocasião. - Implorei, aproximando-me mais dois passos.
            - Não. Já não sou capaz de fazer isso. A partir do momento em que terminaste o namoro comigo… esse laço rompeu-se. - A sua voz era fria e cortante como o ar gélido que pairava à nossa volta.
            - Não… ele nunca se pode romper… por favor, olha para mim. Olha bem no fundo dos meus olhos… e verás que eu voltei. Sou a tua Kia.
            - Não és minha. És namorada do Brand. Eu nem devia estar aqui a falar contigo. - Rugiu ele, colérico.
            - Ouve-me! Chris, por favor, escuta o que estou a tentar dizer-te!
            - NÃO! Só me vais mentir mais! Não achas que já fizeste mal suficiente, que já brincaste de mais com os meus sentimentos?!
            - Não fui eu! Se me deixares explicar vais entender.
            Ele parou de recuar e pareceu ficar à espera da explicação.
            - Eu já fui falar com a Sophie, a Niza e o Ryan. E se me deres o benefício da dúvida, como eles deram, verás que não te estou a mentir.
            - Eles são demasiado ingénuos para verem a tua natureza. És venenosa como uma cascavel, Kiara, e não vou voltar a cair nas tuas armadilhas.
            As lágrimas molharam-me os olhos. Custava imenso ouvi-lo dizer aquilo, e ainda por cima saber que tinha razão em estar a acusar-me. Se eu não lhe tivesse escondido aquilo, se lhe tivesse confiado o segredo desde o início, ele não estaria tão enervado comigo, não me odiaria.
            - Chris… ouve-me. É só o que te peço. Depois de eu terminar a explicação podes dar meia-volta e voltar para o castelo e eu nunca mais implorarei para que olhes para mim. Prometo.
            - As tuas promessas são vãs… já não me dizem nada. Eu não acredito em ti.
            Recuei ao ouvir aquilo. O meu coração latejava de sofrimento.
            - Não interessa. Neste momento não quero acreditar que não confies em mim. Quero apenas fazer-te entender. Eu não sou quem tu julgas que eu seja.
            E pela primeira vez desde que chegara junto dele, vi os olhos de Chris a semicerrarem-se, não de raiva, mas de curiosidade, aliada a uma grande dose de desconfiança.
            - Eu sei disso. Enganei-me redondamente a teu respeito.
            - Não! Não é isso que estou a dizer… Chris, a rapariga que tu conheces, a tua Kia, ela é como tu sempre pensaste que ela era. Eu sou tua, a sério. Só que… o meu segredo, aquele que eu disse que não te podia explicar… ele é que me levou a agir da maneira que agi nestas últimas semanas.
            Ele enfiou de novo as mãos nos bolsos, enquanto a confusão se instalava na sua cabeça.
            - Estás a mentir.
            - Não estou nada! - Gritei, enervada. - Tu sabes que não estou! Lembra-te, Chris! O meu segredo!
            Não foi preciso insistir mais. Ele lembrava-se perfeitamente. Ele sempre quisera saber o que eu tanto escondia, e agora que a oportunidade de saber surgia diante dos seus olhos, ele não conseguia simplesmente ignorá-la.
            - O teu segredo?
            - Sim! Exactamente. Aquele que eu disse que era demasiado mau, que te podia magoar fisicamente se soubesses.
            Ele engoliu em seco. Claro. Ele já tinha sido magoado e nem sequer sabia do que se tratava.
            - É disso que eu estou a falar. Eu sei que te magoei. Mas tu estavas tão perto de descobrir… se te esforçares um pouco, vais entender.
            A minha voz estava a recuperar algum controlo e concentrei-me em parar de tremer para passar uma imagem menos desesperada.
            - Lembras-te quando eu te disse que tinha… ataques de amnésia?
            Ele assentiu com a cabeça, ainda a fazer suposições silenciosamente, tentando perceber se eu já estava novamente a mentir-lhe.
            - Não são ataques de amnésia. É algo mais grave.
            - Eu sabia que estavas a mentir. - Rosnou ele, furioso.
            - Calma! Sim, nessa altura eu estava a mentir. Mas apenas porque eu não podia revelar-te o segredo. Mas agora não consigo escondê-lo durante mais tempo. Ele vai magoar-te cada vez mais, enquanto não souberes a verdade.
            - Então explica-me de uma vez por todas quem raio és tu.
            Eu senti-me mais forte, e também um pouco mais calma. Ele ia acreditar em mim, eu podia sentir essa hipótese a fluir-me nas veias, dando-me energia para continuar. Aproximei-me mais uns passos.
            - Tu disseste que às vezes era como se eu… soltasse o meu lado negro. Agia de maneira diferente do habitual e depois… era como se me lembrasse que não devia fazer aquelas coisas, e voltava a ser a miúda que tu amavas.
            Ele assentiu com a cabeça, de olhar fortemente cravado no meu.
            - Tu estavas certo. Mais certo ainda do que podes imaginar.
            - Tudo isto parece muito improvável, sabias?
            - Talvez. Mas desta vez eu juro que não te estou a mentir. É que… eu pensei que, se soubesses a verdade, me deixarias, acharias que eu era tão louca que nunca mais quererias olhar para mim.
            - É o que sinto neste momento. Espero que tenha valido a pena teres-me escondido isto durante tanto tempo.
            - Não valeu. Arrependo-me profundamente por te ter feito sofrer tanto. Eu escondi-te a verdade para não te magoar e fiz pior ainda do que se te tivesse contado o segredo.
            - Podes crer que sim.
            - Mas agora eu quero que saibas. Eu… quer dizer, o meu corpo… não é só meu. - Sussurrei.
            Ele pareceu mais confuso que antes.
            - Como assim?
            - Dentro de mim mora… outra pessoa. Um alter-ego.
            - Estás a gozar comigo?! - Explodiu Chris, novamente furioso.
            - Não! Estou a falar muito a sério! Chama-se Kalissa. E ela é o oposto de mim. De vez em quando ela consegue afastar-me e toma o controlo do meu corpo, como se fosse todo dela. Faz coisas que eu jamais seria capaz de fazer, e depois quando eu acordo não sei o que ela fez e… levo sempre com as consequências dos actos dela.    
            Chris não estava com vontade nenhuma de confiar em mim, eu podia ler isso nos seus olhos flamejantes, mas contra sua vontade ele estava a ver a verdade e não podia negá-la.
            - Isso quer dizer que… essa Kalissa… ela tem estado no teu lugar durante estas três semanas?
            - Exactamente. E ela é tão má… muito pior do que possas imaginar. Quando ela se apercebeu que eu te amava, que queria ficar contigo… arranjou maneira de fazer com que me odiasses profundamente, e parece que conseguiu.
            Uma lágrima desceu pelo meu rosto.
            - É natural! Tu disseste-me coisas horríveis, esperavas que continuasse do teu lado?!
            - Não fui eu, foi ela.
            - O que quer que seja! Eu agi como qualquer pessoa agiria nesta situação. - Resmungou ele.
            - Claro. E eu até compreendo. Mas agora tens de tentar entender a minha posição! Eu adormeci na noite de 15 de Novembro e acordei hoje de manhã, com o meu mundo virado do avesso, sem saber para onde me virar!
            - Isto tudo é culpa tua. Se não tivesses escondido a Kalissa ela não poderia magoar tanta gente.
            - Eu sei…
            - Foste egoísta! Magoaste não só a mim, mas também à Niza e à Sophie, que te adoravam! Se visses o estado em que as deixaste…
            - Eu já lhes pedi desculpa, apesar de achar que nem mil desculpas serão suficientes para todo o mal que a Kalissa lhes fez…
            - Podes ter a certeza que não chega. - Rosnou ele, baixinho.
            - Mas eu não podia contar-vos! Quando eu era pequena contava isto às pessoas e elas fugiam de mim, dizendo-me que eu era maluca! Depois fui crescendo e percebi que era melhor manter a maldição em segredo. A Kalissa vai ficar furiosa quando perceber que eu a desmascarei.
            Chris ficou subitamente preocupado.
            - Ela vai dominar-te novamente?
            - Claro! Ela está pronta para isso, eu sinto-o. Ela é muito mais forte que eu. Controla-me quando quer, consegue extirpar-me do meu corpo… e magoar todas as pessoas que eu amo.
            - Tu tens de detê-la!
            - Não consigo. É impossível controlá-la. Se a tentares atacar, estás a atacar-me também porque o corpo é das duas.
            - Então pretendes continuar assim para sempre?! Sem sequer tentar vencê-la? - Perguntou Chris, chocado.
            - Achas que eu gosto da situação?! Achas que gosto que esta víbora me destrua a vida montes de vezes, para de seguida eu ter de a reconstruir?! Eu também não a quero dentro de mim! Tudo o que mais desejo é tirá-la de mim, mas não consigo fazer isso! Há dezasseis anos que procuro uma solução e não há nenhuma! - Gritei, irritada.
            - Tens de tentar controlá-la.
            - Isso é o que eu faço sempre! Mas ela é forte. Ainda mais agora, que me deixou neste estado, ela vai recuperar o controlo dentro de pouco tempo.
            - Há alguma maneira de impedir isso?!
            - Não… e também não consigo prever quando ela virá… apenas a sinto a derrubar-me e a tomar o controlo, mas nessas alturas já é tarde de mais.
            Baixei o rosto, enquanto continuava a chorar em silêncio. Ao fim de algum tempo, Chris aproximou-se mais de mim. Eu senti uma vontade louca de o abraçar e de que ele me consolasse, mas controlei-me e ele não me tocou sequer.
            - Eu não sei em que acreditar.
            Levantei o olhar e fundi-o ao seu.
            - Acredita em mim. Estou a dizer a verdade.
            - A Kalissa tem-se feito passar por ti.
            - Eu sei. É essa a técnica dela. Faz-se passar por mim para que todos me odeiem, e assim eu fico sozinha, fraca, e ela controla-me mais facilmente.
            Chris continuou sem me tocar mas eu senti que ele queria fazê-lo, e isso encheu-me de coragem para continuar a olhar fixamente para ele.
            - Perdoa-me Chris. Eu não devia ter escondido isto de ti, nunca. Mas… eu gosto tanto de ti… não suportava que me deixasses por isso escondi-te a verdade.
            - Mentiste-me. Não apenas uma vez, mas todos os dias desde que nos conhecemos. - Rugiu ele, enraivecido.
            - Sim. Confesso que fiz isso. Mas… tenta entender… eu só queria proteger-te. E agora deixe-te, e à Niza, à Sophie, ao Peter e ao Ryan, à mercê da maldade da Kalissa. Quando ela souber que vocês sabem a verdade vai arranjar maneira de vos magoar ainda mais. Tanto que eu dava para evitar isso…
            - Não. Agora que nós sabemos a verdade somos capazes de nos defender dela. Aliás, se soubéssemos desde o início teria sido tudo mais fácil.
            E eu sentia que era verdade. As coisas vistas pelo panorama de Chris eram mais fáceis, menos dolorosas, mais claras. A minha cabeça estava cheia de fumo negro e eu nem conseguia pensar em condições.   
            - Então… de todas aquelas vezes em que tu parecias assustada… estavas a recuperar do controlo da Kalissa? A despertar para o controlo do teu corpo, novamente?
            - Sim. E como não sabia o que ela tinha andando a fazer ficava tão desnorteada, tão preocupada…- Solucei.
            Chris não disse nada, enquanto a verdade se ia infiltrando nos seus pensamentos mais profundos.
            - Eu vou tentar arranjar uma maneira de impedir que ela te magoe mais. Prometo que vou.
            - Não faças promessas que não podes cumprir. - Respondeu ele.   
            Engoli em seco e as lágrimas rolaram pela minha cara.
            - Por favor… diz-me que acreditas em mim…
            Ele ficou em silêncio durante longos minutos e depois a sua voz saiu embargada, triste.
            - Talvez isto seja um erro enorme… e eu vá sofrer mais ainda… mas eu acredito em ti. Provavelmente é mais uma das tuas mentiras mas eu… acredito no que me estás a dizer.
            Sorri, sentindo a alegria ao ouvi-lo dizer aquilo.
            Chris confiava em mim.
            Nada mais importava naquele momento, além de saber que ele confiava em mim, que não me odiava tanto quanto antes. Lancei os braços em volta do seu pescoço e abracei-o, chorando com o rosto enterrado no seu peito musculado. Chris não me abraçou, limitou-se a ficar quieto, e eu acabei por recuar ao fim de algum tempo.
            - Chris?
            - Não penses que será tudo como antes. As coisas nunca mais serão as mesmas. - Murmurou ele.
            Depois deu meia volta e foi-se embora, embrenhando-se no bosque e deixando-me sozinha na clareira.
            Durante os primeiros momentos eu não disse nada nem me mexi. Fiquei ali parada como uma estátua, congelada, à espera que ele voltasse, que dissesse que estava a gozar, que acreditava totalmente em mim e voltaria para mim, seria de novo o meu namorado.
            Mas eu esperei, e esperei, e ele não voltou.   
            O frio cortante fustigava-me o rosto e fazia-me chorar mais ainda. Toda eu tremia enquanto congelava lentamente, e o meu coração despedaçado partia-se ainda mais em bocados infinitamente pequeninos.
            Ele não ia voltar para mim.
            Realmente eu fora estúpida em pensar que ficaria tudo bem depois de revelar o meu segredo a Chris. Ele não era tão leal ao ponto de voltar para os meus braços assim que eu acabasse de lhe contar todas as mentiras. Kalissa magoara-o tão profundamente que ele demoraria imenso tempo até voltar a acreditar totalmente em mim e a querer-me ao seu lado, se isso realmente chegasse a acontecer um dia. Chorei ainda mais ao aperceber-me que podia não voltar a acontecer, que Chris podia nunca mais ficar ao meu lado. Que talvez eu nunca mais o pudesse abraçar, beijar, aninhar-me nos seus braços fortes e quentes…
            Caí de joelhos na neve gelada e abracei-me com todas as minhas forças, enquanto tentava não congelar. Mas não tinha forças para voltar. Só conseguia chorar e esperar que desmaiasse de frio ou de cansaço.
            E quem me viria procurar? Quem saberia o caminho para a clareira encantada? Sophie e Niza não se lembrariam de procurar ali, apesar de aquele lugar ser especial para nós, pois tínhamos ali passado muitas tardes a conversar horas a fio. O meu coração latejou ao lembrar-me disso. Tinham sido momentos tão bons e eu conseguira estragá-los a todos…
            O frio era demasiado forte, a dor de cabeça era dilacerante, e eu senti-me a desmaiar. Já não tinha forças para manter os olhos abertos. Deixei que eles se fechassem e caí para trás na neve. E nesse preciso momento, começou a nevar intensamente.

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