domingo, 13 de março de 2011

Capítulo 9


Um Plano Bem Sucedido






         Eu estava a deleitar-me com o que tinha acontecido, estendida ao comprimido em cima da cama de Brand, de olhos fechados. Não conseguia simplesmente deixar de sorrir. Tinha corrido tudo tal e qual eu planeara, a sensação era tão boa que eu não conseguia parar de rever o acontecimento uma e outra vez. Soltei uma gargalhada alegre.
         Mesmo que Brand, Drake e Allan fossem castigados, eu arranjaria maneira de persuadir o padrinho de Kiara a tirar-lhes o castigo. Mas Chris, Ryan e Peter iam sofrer as consequências. Perfeito.
         A droga dava-me uma sensação de dormência e só me apetecia estar ali deitada, sem pensar em mais nada. Felizmente, ninguém teve a infeliz ideia de me vir chamar. E eu fiquei entretida com as minhas alucinações felizes. Sentia-me leve como uma pena. Entre muitas razões, era por isto que eu gostava da droga. Fazia-me sentir… calma.
         O tempo foi passando e eu acabei por adormecer. Ou melhor, eu não estava realmente a dormir, mas os meus sentidos estavam apaziguados, como se eu estivesse a flutuar numa dimensão diferente, onde tudo era tal e qual como eu queria. Mantive os olhos fechados e os meus batimentos cardíacos também se foram acalmando. De repente, ouvi baterem levemente na porta. Não me levantei nem disse nada por isso a pessoa acabou por entrar. Quem vi deixou-me realmente espantada, fazendo-me levantar a cabeça da cama só para olhar para ela. Pestanejei para tentar entender o que é que estava a acontecer.
         - Wendy?!
         O que é que ela fazia ali? Olhei à minha volta e percebi que não estava no mesmo lugar. Eu já não me encontrava no quarto de Brand, Drake e Allan. Naquele momento eu tinha voltado ao quarto da minha casa em Auburn, e a pessoa diante de mim era uma prova viva disso.
         - Como é que te sentes? - Perguntou ela, docemente.
         Pisquei os olhos. Só podia estar a ter alguma alucinação. O que é que ela fazia ali?! O que é que tinha acontecido afinal?
         - O que é que faz aqui? - Perguntei, confusa.
         - Eu vim falar contigo. Chegaste há pouco tempo a casa.
         - Eu? Não… eu estava no colégio! Quero voltar para lá!
         Ela continuou como se me tivesse ignorado. O seu olhar maternal fez-me sentir nervosa. Eu odiava que olhassem para mim daquele jeito.
         - Ela tem andando a fazer tanto mal. - Disse Wendy, num tom diferente, quase censurador.
         - Pois tem. A sua sobrinha é uma miúda velhaca e desprezível. - Rosnei-lhe, sentando-me melhor na cama para olhar para ela.
         Wendy, a tia de Kiara, cruzou os braços e suspirou dramaticamente.
         - Eu posso ajudar-te a detê-la.
         - Como é que pensa fazer isso?! Você está morta!
         Onde raio é que eu estava? Wendy tinha sido assassinada há quatro meses atrás, assim como o marido. Eu tinha a certeza disso, tal como Kiara… então o que é que ela estava a fazer ali à minha frente?
         A confusão fazia-me doer a cabeça.
         - Como raio é que pensa ajuda-me?
         - Vamos travá-la. Ela não pode continuar a agir desta maneira.
         - Tem razão. Mas eu só posso controlá-la enquanto ela estiver nos confins da minha mente, o que raramente acontece.
         Wendy pareceu ficar nervosa, os seus olhos castanhos-escuros abriram-se numa expressão de medo.
         - Ela está a ficar mais forte.
         - Pois, parece que sim. Mas eu vou vencê-la na mesma. Ela vai arrepender-se de tudo o que anda a fazer.
         - Eu espero que consigas travá-la. Sinto-me tão… triste com toda esta situação…
         Eu estava a ficar cada vez mais confusa. Por que é que de repente Wendy se mostrava revoltada com a sobrinha? Não seria natural que ela a adorasse e fizesse tudo pelo bem dela? Aliás, Wendy não gostava nada de mim. Não era tanto quanto o ódio que eu sentia por ela, mas já era o bastante para não querer ajudar-me.
         - Eu quero ficar sozinha. - Resmunguei.
         - Sim… eu vou sair. Quando o jantar estiver servido eu chamo-te, está bem? - Disse ela, sorrindo-me.
         Aquilo ainda me deixou mais incrédula. Ela saiu do quarto sem fazer muito barulho, fechando a porta atrás de si.
         Que estranho…
         Mas no segundo seguinte, e antes que eu pudesse agarrar-me melhor ao momento que estava a viver, tudo se dissolveu numa nuvem de pó cinzenta, e eu perdi os sentidos, deixando-me cair para trás na cama.


         - Kali! Kali, estás a ouvir-me querida?
         Eu estava a ouvir a voz de Brand, mas parecia-me que ele falava do fundo de um túnel muito longo. Inspirei fundo e depois abri os olhos lentamente, habituando-os à intensa luminosidade. O candeeiro da mesa-de-cabeceira ao meu lado estava ligado e a luz batia-me fortemente no rosto. Semicerrei os olhos para os proteger da luminosidade e olhei para Brand. Ele pairava sobre mim, com o rosto contorcido pela confusão.
         - Ah, ainda bem que já acordaste!
         Beijou-me docemente mas eu afastei-o logo de seguida, tentando sentar-me na cama. Doía-me imenso a cabeça e o corpo todo. Massajei as têmporas mas isso não abrandou a dor. Brand sentou-se à minha frente, ainda preocupado com o meu estado. Foi nessa altura que observei melhor o seu rosto.
         Brand tinha o lábio inferior rachado no canto esquerdo, inchado, e devia ter sangrado bastante. Também tinha o olho direito a começar a ficar arroxeado. De resto, não vi mais nenhum sinal da luta entre ele e Chris, mas senti-me feliz por ele não estar muito machucado. Eu gostava dele e principalmente do seu corpo invejável.
         - Brand…
         - Sim, estou aqui, está tudo bem.     
         - O que é que aconteceu? - Perguntei.
         Lembrei-me do momento estranho pelo qual tinha passado e os meus olhos fecharam-se. Ainda não tinha arranjado uma justificação suficientemente boa para a conversa com Wendy. Se eu não estava morta como é que ela podia ter falado comigo?!
         - Tu desmaiaste, acho eu. Não sei durante quanto tempo. Quando cheguei ao quarto ainda estavas inconsciente.
         Tornei a fechar os olhos, e pus-me em estado de alerta para tentar captar a sensação terrível que me consumia de cada vez que Kiara se apoderava do meu corpo, mas essa sensação não surgiu. Aliás, as únicas dores que eu sentia eram motivadas pela falta de droga. Eu tinha de tomar uma nova dose o mais depressa possível.
         - Pois… Brand, eu preciso de droga.
         Ele assentiu com a cabeça e levantou-se, aproximando-se da secretária para preparar uma dose para mim. Enquanto ele fazia isso, em silêncio, eu tentava alinhar os acontecimentos na minha cabeça e cheguei à conclusão que o incidente com Wendy não passara de uma alucinação provocada pela droga. Drake tinha dito numa tarde que, por vezes, o LSD provocava alucinações daquelas. Portanto era essa a explicação. Não havia nada de anormal nem transcendente no que tinha acontecido. Brand voltou para junto de mim com um copo de água e dois comprimidos, e passou-mos.
         - Toma isso, deve ajudar.
         - Obrigada. - Tomei os comprimidos rapidamente e depois cravei o olhar no seu. - Agora vais contar-me a conversa com o John.
         Ele revirou os olhos com ar de quem não queria nada tocar no assunto mas eu não lhe dei alternativa. Queria mesmo saber o que tinha acontecido.
         - Ele meteu-nos a todos de castigo e disse que não queria voltar a ver uma cena daquelas aqui dentro, e que se tornasse a acontecer éramos todos expulsos.
         - Oh sim, como se ele se atrevesse a expulsar-vos.
         Brand olhou para mim de uma maneira esquisita que me deixou desconfiada. Havia algo mais por detrás daquela história.
         - O que é que se passa?
         - Nada, é só isso…
         - O que é que me estás a esconder?! Não quero que me escondas nada! - Vociferei, agarrando no queixo dele e virando-o na minha direcção para pode cravar o olhar no seu.
         - Está bem, pronto! - Resmungou ele, libertando-se da minha mão. - O John queria expulsar-nos cá do colégio por andarmos a consumir droga.
         Os meus olhos arregalaram-se de espanto e não fui capaz de dizer mais nada.
         - Ele já queria isto há alguns dias, mas entretanto a Kiara falou com ele e conseguiu convencê-lo a deixar-nos cá ficar.
         Claro que aquela parasita nojenta tinha de ficar como boa da fita. Revirei os olhos e soltei uns estalidos com a língua. Brand continuou.
         - Então hoje ele tornou a ameaçar que nos expulsava daqui se voltássemos a lutar ou a consumir droga.
         - Ele não fará isso, não lhe ligues. - Respondi, calmamente.
         - Como é que podes ter tanta certeza?
         - Porque ele não se atreveria a desobedecer às minhas ordens.
         Falei calma e determinadamente porque aquela era a mais pura das verdades. Se eu fosse falar com ele tudo seria mais fácil, mas eu não estava com vagar para levar com os seus sermões paternais.
         - Não te preocupes Brand. Vai ficar tudo bem.
         Ele puxou-me para os seus braços e enrolei as pernas em volta da sua cintura enquanto ele me beijava apaixonadamente.
         - E obrigada por me teres defendido. - Sorri.
         Os seus olhos cor de chocolate, deliciosos e profundos, fundiram-se com os meus e ele sorriu de modo convencido.
         - Eu por ti faço tudo, Kali.
         E depois os seus lábios uniram-se novamente aos meus e foi o suficiente para dar a conversa por encerrada.


         Horas depois, eu estava deitada ao lado de Brand na cama, e ele dormia profundamente. Já deviam ser perto das onze da noite. Mas eu não tinha sono. Estava a magicar uma maneira de me vingar de Sophie. Aquela miúda ia aprender a meter-se com pessoas da sua classe, ou seja, os que não interessam a ninguém.
         Mas como é que eu me podia vingar dela? Quer dizer… não me apetecia andar à luta com ela. Não, eu não sujaria as minhas mãos com Sophie. No entanto, tinha de encontrar um jeito de a fazer perceber que não se podia dar ao desplante de me falar daquela maneira.
         De repente, uma ideia fantástica atravessou-se na minha cabeça. Mas talvez demorasse algum tempo até conseguir alcançá-la… porque tinha tudo de ser planeado até ao mais ínfimo pormenor. Mas não interessava. Eu ia conseguir.
         Virei-me na cama e aninhei-me nos braços de Brand, fechando os olhos. Estava na hora de eu também dormir.
         Na manhã seguinte, quando acordei, Brand já se estava a arranjar para ir às aulas. Essa tinha sido uma das condições de John para não os expulsar: eles tinham de continuar a ir às aulas. E eu também tinha de voltar a treinar a Claque, porque realmente tinha-me andando a desleixar nos treinos. Olhei para Brand e sorri-lhe.
         - Bom-dia.
         Ele sorriu-me também e aproximou-se para me beijar gentilmente.
         - Vais levantar-te agora? - Perguntou.
         - Não tenho alternativa…
         Levantei-me e dirigi-me à casa de banho para tomar um duche. Ao ver-me ao espelho, notei as diferenças no meu aspecto. Kiara estava a conseguir recuperar o corpo que tinha antigamente, mas ainda estava tudo no começo. Ainda demoraria algum tempo até ela voltar ao que era, e no que dependesse de mim, não voltaria.
         Tomei banho rapidamente e depois voltei para o quarto e dirigi-me ao roupeiro que dividia com Brand. Escolhi a roupa para esse dia e vesti-me, penteei-me, maquilhei-me e calcei-me. Brand esperava que eu acabasse de me arranjar.
         - Onde é que estão o Drake e o Allan? - Questionei, ao dar pela falta deles.
         - Saíram pouco tempo antes de tu acordares. Foram tomar o pequeno-almoço.
         - Ah, OK, fazem bem. Vamos?
         Brand rodeou os meus ombros com o seu braço forte e musculado e levou-me consigo para fora do quarto, fechando a porta. Atravessámos o corredor e descemos a escadaria até chegarmos ao vestíbulo. Todos os olhares se dirigiam a nós, uns confusos e outros entusiasmados. Graças à luta da manhã anterior, eu e Brand tínhamos recuperado o estatuto de "Reis" do colégio.
         Seguimos para o salão de refeições e quando entrámos, avistei o nosso grupo lá ao fundo, sentado à espera que nós chegássemos. Dirigimo-nos para lá e eu não olhei uma única vez para o local onde Niza, Sophie, Chris, Ryan e Peter estavam sentados. Eles não interessavam para nada.
         - Olá Brand, olá Kalissa! - Disseram Penny e Terry em conjunto.
         Sorri-lhes e depois sentei-me ao lado de Brand, que continuou abraçado a mim. Drake cumprimentou-me com um aceno de cabeça.
          - Hei, Kalissa, tens aqui um defensor da tua honra! - Gracejou Omar, dando um soco no braço de Brand.
         - É, e ainda bem que o tenho. - Murmurei.
         E antes que mais algum pudesse fazer comentários, levantei-me e segui até à mesa do buffet para escolher o meu pequeno-almoço, que acabou por ser apenas um copo de sumo de laranja natural. Voltei para a mesa e sentei-me no mesmo lugar de antes.
         - Hoje há ensaio da Claque. - Avisei as raparigas.
         Os olhos de todas elas cintilaram de entusiasmo e Terry, Penny e Meredith bateram palmas alegremente. Enfim, eram tão infantis que chegavam a enjoar. Bebi o sumo silenciosamente e depois olhei para a porta de entrada do refeitório e vi Mariah a passar.
         Ela continuava a mesma amostra do que tinha sido anteriormente. Os seus olhos percorreram o salão até se cravarem nos meus e depois ela baixou-os instintivamente, como se tivesse medo que eu a dilacerasse apenas com o olhar. Sorri e virei-me de novo para o meu grupo de adoradores particulares.
         O dia correu bastante bem. Depois do pequeno-almoço fiquei no quarto de Brand durante todo o dia, deixando-me cair na suave sensação de flutuar provocada pelo haxixe. Quando chegou a hora de almoço desci para comer com os Desportistas e as Raparigas da Claque e quando acabámos a refeição, levantei-me e senti-me mais entusiasmada.
         - Não se esqueçam que temos treino daqui a duas horas.
         - Claro, não nos esquecemos! - Disse Meredith alegremente.
         Segui com os Desportistas para a Sala de Convívio e pela primeira vez em muito tempo, sentei-me com eles num dos grupos de sofás, a ver televisão. Estava a passar um filme qualquer que eu achei interessante pelo que fiquei com eles a ver.
         Passaram-se as duas horas e chegou a altura de ir treinar com a Claque. Dirigi-me para fora do castelo com as minhas seguidoras atrás de mim como se fossem dez sombras minhas, e quando cheguei ao exterior apercebi-me que a neve ainda não tinha derretido, e que por isso teríamos de treinar no pavilhão coberto do colégio. Com um suspiro de resignação, dirigi-me ao atalho que nos levava directamente até lá. Esse atalho, um caminho de pedrinhas pequenas ladeado por pinheiros e abetos, fazia a ligação entre a escadaria de entrada e a porta do grande pavilhão da Blackstone Private School. O frio de rachar que se fazia sentir não me incomodava minimamente.
         Quando chegámos ao pavilhão, este estava vazio. Entrámos e seguimos para a área do treino da claque. A pequena mesa de madeira ao fundo da divisão já tinha o rádio portátil em cima pelo que me aproximei para o ligar. A música encheu o enorme pavilhão e eu virei-me para a minha claque.
         - Vamos lá! - Gritei para me fazer ouvir.
         E quando começámos a dançar, eu senti-me muito melhor. Era aquela a razão para eu ser a Chefe: porque a Claque era a única coisa que me interessava (a nível de desporto) naquele colégio. Dançar deixava-me mais entusiasmada e mais feliz, como se me afastasse de todos os problemas que pairavam à minha volta como uma nuvem cinzenta.
         As horas passaram e embora eu me sentisse cansadíssima, não parei com as coreografias. Terry, Penny e Meredith eram as mais empenhadas em acompanhar-me. Elas tinham sido as maiores seguidoras de Mariah e agora eram as minhas.
         O treino acabou quando faltava menos de meia hora para o jantar. Seguimos de volta ao castelo - a noite já tinha caído e cobria tudo com o seu manto sombrio - e eu apressei-me a correr até ao quarto de Brand. Nem ele nem os seus amigos lá estavam. Fechei bem a porta e segui para a casa de banho, para poder tomar duche antes da refeição.
         Tomei banho e quando acabei troquei por uma roupa lavada e arranjei-me. De seguida desci as escadas a correr até ao salão de refeições, onde o meu grupo me esperava.
         Sentei-me ao lado de Brand e ele sorriu-me.
         - Como correu o treino?
         - Muito bem! Eu já tinha saudades de dançar! - Sorri.
         Depois comecei a comer.
         A noite correu como tantas outras: fiquei até à uma da manhã com os Desportistas e as Raparigas da Claque na Sala de Convívio, a conversar e a ver televisão, e depois subi com Brand para o quarto, seguidos de Drake e Allan. Depois de termos tomado as nossas doses - eu passei a injectar-me como eles faziam porque assim dava menos hipóteses à Kiara de conseguir curar-se da droga, uma vez que me estava a tornar mais dependente dela - e depois deitámo-nos.
         Suspirei antes de adormecer. Talvez a minha vida fosse finalmente melhorar daí em diante. Já não havia nada que temer. Chris nunca mais se atreveria a tentar dormir com Kiara e os seus amiguinhos estúpidos saberiam que não se podiam meter com Kalissa Jones.

terça-feira, 8 de março de 2011

Capítulo 8


Combate






            Abri os olhos lentamente. Depois apercebi-me que me doía o corpo todo. Era estranho… vi Chris deitado ao meu lado, a dormir profundamente. As memórias da noite anterior entraram fortemente na minha cabeça e fizeram-me sorrir. Tinha sido uma noite fantástica, inesquecível. Aconcheguei-me nos braços de Chris e ele pestanejou, estremunhado. Sorri-lhe.
            - Bom-dia.
            Ele sorriu-me também e beijou-me.
            - Bom-dia.
            Suspirei. Daria tudo para não ter de sair dali, mas a dor de cabeça atingiu-me fortemente. Aquele era um contratempo. Como era possível que até uma dor de cabeça interrompesse aquele momento tão bom?
            - O que é que sentes? Estás bem? - Perguntou Chris, notando que eu estava esquisita.
            - Não… não estou…
            Era esquisito. Eu saberia se Kalissa se tivesse soltado. E Chris não estaria deitado ali ao meu lado, tão pacificamente. No entanto, doía-me a cabeça na mesma. E só para tirar as dúvidas, era melhor perguntar.
            - Chris… a Kalissa não se soltou, pois não?
            A sua testa franziu-se de preocupação.
            - Não, claro que não.
            - Ah… ainda bem…
            - Mas porquê?
            - É que me dói tanto a cabeça…
            Tornei a fechar os olhos e ele beijou-me os cabelos.
            - Estás há demasiado tempo sem tomar… nenhum comprimido.
            - Ah!
            Então era natural que eu estivesse a sentir-me assim. A dor foi afastando para os confins da minha mente a memória da noite maravilhosa e eu agarrei-me a ela com todas as forças. Chris notou o meu esforço evidente.
            - Tem calma. Queres que vá buscar algo para ti?
            - Espera… estou a tentar controlar-me…
            Ele aguardou em silêncio enquanto eu recuperava o controlo. Depois desisti e deixei que a memória fosse lançada para o fundo da minha "caixa de recordações". Abri os olhos e suspirei.
            - Eu vou buscar algo. Tenho de tomar qualquer coisa.
            - Não, deixa-te estar aqui sossegada. Eu vou buscar para ti.
            Levantou-se rapidamente, antes que eu tivesse tempo de rejeitar a sua oferta, e enfiou rapidamente as calças, calçando-se à pressa. Depois curvou-se para me beijar uma última vez e saiu do quarto ainda a vestir a camisola. Deixei-me cair para trás na cama e enrolei-me nos lençóis que cheiravam ao melhor perfume do mundo: essência de Chris.
            Ele voltou pouco tempo depois com uma saqueta transparente que continha seis comprimidos pequeninos. Trazia também uma garrafa de água numa das mãos. Sentou-se ao meu lado na cama e passou-me a droga.
            Tomei dois dos comprimidos e bebi quase metade da água que a garrafa continha. Para além das dores também sentia muita sede. Quando fiquei saciada pousei a garrafa e a saqueta na mesa-de-cabeceira e deitei-me outra vez. Ia ter de esperar cinco a dez minutos até a droga fazer efeito, mas tudo era preferível a ter de usar seringas. Odeio seringas.
            - Hoje não há aulas, por ser dia de Natal. - Explicou Chris.
            - Pois, eu já desconfiava…
            - Então… queres ir fazer alguma coisa?
            - Como o quê? Passear?
            - Isso não daria muito jeito. Está a chover torrencialmente. - Sorriu ele calmamente.
            - Ah pois…
            - Mas não tínhamos de ficar ao ar livre. Se quiseres podemos ir ao cinema. Esta semana estrearam uns dois ou três filmes fixes.
            - Hum… cinema? - Balbuciei, de olhos fechados.
            Estava com demasiado sono para conseguir manter os olhos abertos, o que era estranho. Tenho a certeza que dormi durante muito tempo, mas ainda sentia sono.
            - Ou então podemos ficar por aqui. - Chris deu-se por vencido.
            Ri-me e depois adormeci profundamente.


            Quando acordei, já sabia que as coisas não estavam bem. A dor de cabeça que eu sentia não era causada pela falta de droga, era apenas o aviso de que Kiara tinha estado a controlar o meu corpo, embora eu já soubesse isso.
         Estava sozinha no meu quarto. A luz entrava apenas por uma fresta dos cortinados e dava à divisão um ar ancestral. Deixei-me ficar deitada por mais uns momentos. Que dia seria hoje? O que teria acontecido na minha ausência?
         Depois a porta do quarto abriu-se e Chris entrou. Semicerrei os olhos de raiva. O que é que ele fazia ali? Por que é que tinha de aparecer sempre quando eu queria que ele ficasse longe, que não viesse perturbar a minha paz?
         - Kiara? Estás bem meu amor?
         - "Meu amor" o tanas, seu imbecil! - Rugi-lhe.
         E não foi preciso dizer mais nada porque ele percebeu logo que eu já não era a parva da sua namoradinha. Chris suspirou, fechou a porta e aproximou-se da cama, cruzando os braços. No rosto exibia a expressão que um médico usaria perante um caso de difícil resolução.
         - O que é que queres? - Perguntei, ansiosa.
         - Eu vinha cá ver se a Kiara já tinha acordado. Eu deixei-a a dormir há quatro horas atrás.
         - Pois, mas ela agora foi-se. - Resmunguei.
         Depois levantei-me e descobri que estava apenas em roupa interior. Demorei apenas dois segundos a processar a informação na minha cabeça e depois cravei o olhar em Chris. As minhas mãos cerraram-se em punhos quando entendi o que tinha acontecido.
         Arreganhei os dentes e tive de me controlar imenso para não lhe saltar para cima e começar a esmurrá-lo. Era essa a vontade que eu tinha.
         - O que… é que… vocês… tinham… na cabeça?! - Rosnei-lhe.
         Chris ficou de olhos arregalados e começou a recuar em direcção à parede quando eu fui atrás dele, a expirar controladamente, com a fúria a descer-me pelos braços para se concentrar nas palmas das mãos, que ardiam de vontade de bater naquele estúpido que se encontrava à minha frente, estupidificado com a minha reacção.
         - Do que é que estás a falar?! - Balbuciou ele, incrédulo.
         - VOCÊS NÃO PODIAM TER FEITO ISTO! O QUE É QUE TE LEVA A PENSAR QUE TENS O DIREITO DE TOCAR NO MEU CORPO?!
         Ele ficou encurralado contra a parede e eu coloquei-me diante dele, tão próxima que se perdesse as estribeiras o conseguiria esmurrar na perfeição. Chris não sabia o que dizer, eu via a indecisão e o medo no seu rosto. Os meus olhos faiscaram de raiva.
         - Este corpo é meu, estás a perceber?! O que é que te passou pela cabeça para dormires com a Kiara?!
         - Eu não cheguei a dormir com ela, pelo menos da maneira que tu estás a pensar…
         - NÃO ME INTERESSA! EU NÃO TE QUERO A TOCAR COM UM SÓ DEDO NO MEU CORPO, ESTÁS A PERCEBER?! - Rugi-lhe.
         E estava mesmo quase a pregar-lhe um estalo quando a porta se tornou a abrir e Sophie entrou. Ficou a olhar para nós, chocada, mas não demorou tanto tempo a agir quanto Niza teria feito. Fechou a porta e puxou Chris por um braço, libertando-o da prisão que eu criara.
         - O que é que te deu? Deixa-o em paz! - Vociferou Sophie.
         Olhei para ela. Como é que se atrevia a dar-me ordens, a meter-se na minha vida daquela maneira?! Ela ia arrepender-se, tal como Chris.
         - Cala-te estúpida! Não tens nada a ver com isto! - Rosnei-lhe.
         Sophie ficou de queixo caído com as minhas palavras e vi-lhe os olhos a encherem-se de lágrimas. Mas isso só me deu mais força para continuar.
         - Esta conversa é entre mim e o Chris, estás a perceber?!
         - Não vou deixar que o trates assim! - Rugiu ela, furiosa.
         Hum… Sophie estava a assumir finalmente a sua veia lutadora? Pelo menos não era cobarde como Niza. Sorri com sarcasmo e aproximei-me dois passos dela.
         - Ou sais imediatamente deste quarto ou vais arrepender-te.
         Ela engoliu em seco e Chris colocou-se entre as duas, com ar autoritário.
         - Kalissa, já chega. Não vais tocar com um só dedo na Sophie, estás a perceber?!
         Levantei o queixo para conseguir olhá-lo directamente. Eles iam arrepender-se. Todos eles.
         Mas a vingança serve-se fria.
         Peguei num casaco de malha que me chegava até aos joelhos e vesti-o rapidamente, enquanto enfiava os pés nuns chinelos de praia e saía do quarto a correr. Precisava de me acalmar. Se me desconcentrasse Kiara voltava ao poder.
         Fui até ao quarto de Brand e bati à porta. Ele veio abrir, parecendo espantado por me ver ali.
         - Olá. - Murmurei, tentando dar à minha voz um ar mais amoroso, disfarçar a camada de ódio que me envolvia.
         - És tu, Kali?
         Eu adorava quando ele me chamava assim. E só Brand podia fazê-lo. Se mais alguém se atrevesse a usar aquele nome comigo, ia arrepender-se. Mas como era o meu namorado, eu sentia-me mais feliz. Sorri e abracei-me a ele com todas as minhas forças.
         - Oh Brand… ajuda-me… - Choraminguei.
         Ele ficou espantado com a minha reacção mas acabou por me abraçar e me puxar para dentro do seu quarto. Pegou-me ao colo com ternura e foi sentar-me na sua cama, ficando ao meu lado. Deitei a cabeça no seu ombro quente e deixei que as lágrimas escorressem pela minha cara.
         Um dos meus maiores dons era a capacidade de chorar quando bem me apetecia, fosse em que ocasião fosse.
         Por isso não foi difícil desatar num verdadeiro pranto. Brand estava realmente preocupado. Fez-me festinhas no cabelo e murmurou-me palavras bonitas para ver se me acalmava.
         - O que é que aconteceu? - Perguntou ele por fim.
         Contive o sorriso vitorioso que queria mostrar e continuei a dar o ar de rapariga desesperada. Limpei as lágrimas mas os soluços continuaram.
         - O Chris… ele…
         - O que é que esse estúpido te fez?! - Disse Brand, a começar a ficar furioso.
         Óptimo. Quanto maior fosse a sua fúria, mais doce seria a minha vingança.
         - O Chris dormiu com a Kiara. Foi para a cama com ela. - Balbuciei, continuando a chorar.
         Quis rir-me à gargalhada quando vi a expressão no rosto de Brand. Primeiro ele mostrou-se impassível, mas eu sabia que isso se devia ao facto de ele ainda não ter percebido bem o que eu dissera. Depois, muito lentamente, ele foi ficando mais pálido com o choque, os olhos arregalaram-se de incredulidade e o queixo descaiu-se numa careta de espanto. E depois, foi ficando cada vez mais enervado, cada vez mais furioso, até a sua pele apresentar um tom vermelho-vivo. Ele estava tão desejoso de dar uma coça em Chris como eu. Continuei a apresentar o meu ar ofendido e ele levantou-se bruscamente, a respirar fundo para controlar os tremores que lhe assolavam o corpo.
         Jackpot. Agora é que Chris ia aprender a não se meter comigo.
         - ELE FEZ O QUÊ?! - Rugiu Brand, furioso.
         - Eu já te expliquei… ele não tem o direito de tocar neste corpo! Eu senti-me tão mal quando acordei… este corpo é meu Brand, e só de imaginar a maneira como Chris esteve em contacto com ele…
         Escondi o rosto entre as mãos para Brand não ver o meu sorriso de felicidade. Eu ia conseguir. Desta vez ia vingar-me de Chris, e nem precisaria de sujar as minhas mãos.
         Ouvi Brand a urrar de raiva e senti-me tão bem que só me apeteceu rir à gargalhada. Era tudo tão fácil que até custava a acreditar.
         - Ele vai-se arrepender… tu és minha, não és de mais ninguém! - Brand estava completamente fora de si.
         - Claro que sou só tua, meu amor… - Respondi, gaguejando para dar mais ênfase à expressão, apesar de esta não ser completamente verdadeira. Eu era livre. Ninguém me podia prender.
         Brand cerrou as mãos em punhos e parecia prestes a explodir de cólera, o que só me conseguiu divertir mais ainda. Naquele momento eu tinha de morder os lábios para estes não se rasgarem num sorriso vitorioso.
         - Onde é que esse cabrão está?! - Rugiu Brand.
         - Ele estava no quarto da Kiara… mas agora já deve ter saído…
         Brand não me perguntou mais nada. Saiu do quarto num passo furioso e eu levantei-me da cama logo a seguir a ele. Ajeitei o casaco de malha para me tapar mais um pouco e segui atrás do meu namorado, observando a maneira como todos os alunos ficavam a olhar apavorados para o rosto dele. Eu senti-me bem. Gloriosa.
         Brand ia defender-me e Chris ia apanhar a sova da sua vida. Uau!
         Segui atrás dele pelos corredores do castelo até chegarmos ao vestíbulo. Felizmente, ele estava num bom local. A divisão daria um ar muito mais emocionante à luta. Chris estava a falar com Niza e Sophie. Os restantes alunos, ao verem o ar enraivecido de Brand, perceberam logo que ia haver uma luta e foram-se acumulando em redor do centro do hall de entrada, como se formassem um círculo de espectadores.
         - TU AÍ! - Berrou Brand, apontando para Chris.
         Ele virou-se para olhar para o meu namorado e ficou espantado com a raiva presente no rosto dele. Mantive-me nas escadas, seis degraus acima deles, cruzando os braços e preparando-me para assistir ao melhor espectáculo do mundo.
         Brand aproximou-se de Chris e, sem mais rodeios, deu-lhe um murro fortíssimo no queixo. Chris foi deitado ao chão sem sequer ter tempo para se defender. Niza guinchou histericamente. Os rapazes do 10º, 11º e 12º ano davam urros de apoio a Brand e alguns até batiam palmas. Deixei o sorriso alargar-se no meu rosto. Sophie olhou para mim com o ar mais aturdido do mundo e eu pisquei-lhe o olho provocatoriamente. Trataria dela mais tarde. Agora era a vez de Chris sofrer as consequências.
         Mas ele levantou-se logo a seguir e lançou-se para Brand, esmurrando-o. E daí para a frente a luta foi tão renhida que eu me entusiasmei verdadeiramente a vê-la. Brand pontapeava e esmurrava e socava Chris em todos os lugares que apanhava e o namorado de Kiara fazia o mesmo. De repente, Ryan e Peter entraram no vestíbulo, vindos do salão de refeições, e ao verem a cena, tentaram meter-se no meio deles, mas Drake e Allan vieram logo tratar deles, e naquele momento mais dois combates começaram. Apetecia-me bater palmas e dançar de alegria mas mantive-me quieta.
         Niza e Sophie gritavam histericamente, tentando fazê-los parar, mas era impossível. Os gritos, os urros e os rugidos foram-se elevando cada vez mais e de repente era como se estivéssemos no meio de uma selva, a ver o combate de animais selvagens. Brand era um tigre furioso e Chris um leão enraivecido. Pelo que me consegui aperceber, a luta estava mais a favor de Brand, o que me deixou orgulhosa.
         Mas infelizmente nada pode ser como eu quero, pelo menos durante muito tempo.
         - PAREM COM ISSO! - Rugiu John.
         Ouviu-se uma buzina altíssima, um som ensurdecedor que fez a maioria dos alunos taparem os ouvidos com as mãos, mas eu mostrei-me impassível. Os combates pararam instantaneamente e Chris e Brand olharam para John, e eu não soube dizer qual dos dois estava mais furioso, mais desejoso de continuar a lutar.
         - Vocês os seis, para o meu gabinete. IMEDIATAMENTE! - Vociferou o padrinho de Kiara.
         Deu meia-volta e começou e dirigiu-se às escadas que levavam aos seus aposentos. Brand, Chris, Ryan, Drake, Peter e Allan seguiram atrás dele, coléricos, a arfar de raiva. Deixei-me ficar quieta nas escadas, a observar a cena.
         Podia ter durado mais um pouco. Não me importava de ver Brand a esmurrar mais um pouco Chris. Aliás, isso até me daria prazer.
         - SUA CABRA ODIOSA! - Rugiu Sophie, lançando-se na minha direcção.
         Mas antes que ela pudesse dizer alguma coisa, Niza agarrou-a pela cintura e imobilizou-a.
         - Pára Sophie! É isso que ela quer! Ela vai fazer os possíveis para te enervar e depois ainda vais ser castigada! PÁRA!
         Sophie ainda se debateu nos braços de Niza por mais uns segundos, mas depois deu-se por vencida. Niza conseguiu acalmá-la mas lançou-me um olhar sedento de vingança, um ódio tal que me fez sentir gloriosa.
         - Tu vais arrepender-te. - Ameaçou-me.
         E pela primeira vez nesse dia, eu ri-me à gargalhada. A gargalhada mais divertida que eu alguma vez tinha soltado. Niza, a santinha estúpida, estava a ameaçar-me? A mim, Kalissa Jones? Oh sim, eu gostava mesmo de ver ela a tentar atacar-me. Devia ser melhor que ir ao circo.
         Dei meia-volta e subi as escadas sem pressas. Os alunos ficavam a olhar para mim, chocados, mas nenhum tentou parar-me. Quando cheguei ao quarto de Brand, tranquei a porta e comecei à procura nas gavetas da sua mesa-de-cabeceira, remexendo freneticamente em tudo o que conseguia alcançar. Como não encontrei nada que me interessasse, fui à secretária e comecei a abrir e a fechar todos os compartimentos até finalmente descobrir a gaveta pequenina onde eles guardavam as seringas e a droga. Um sorriso de vitória rasgou os meus lábios. Era mesmo daquilo que eu precisava.
         Tirei uma das seringas para fora e preparei a dose o mais depressa que pude. Depois deixei o casaco de malha descair-me pelos braços até cair ao chão e estiquei o braço direito, para que a zona interior do cotovelo ficasse bem visível debaixo da luz do candeeiro do tecto. Inspirei fundo para me preparar e depois espetei a seringa na veia com precisão, premindo o êmbolo. Senti a frieza da droga a entrar em mim, assemelhando-se a vidro líquido, e ri-me novamente.
         Depois fui à casa de banho limpar o material que tinha usado, guardei tudo no lugar respectivo e tornei a vestir o casaco. Inspirei de felicidade e olhei através da janela para aquela tarde de chuva torrencial e trovões ameaçadores.
         Nunca me tinha sentido tão bem em toda a vida.