terça-feira, 1 de março de 2011

Capítulo 7


Uma Noite Mágica






            Passaram-se três dias desde a minha tentativa para deixar a droga. Tentativa que só piorou a situação em vez de a ajudar a melhorar.
            Eu andava num estado deprimente, pelas palavras de Ryan. Claro que continuava a tomar comprimidos. Não havia maneira de deixar de os tomar radicalmente, a menos que eu quisesse que Kalissa voltasse ao poder. E isso era algo a evitar ao máximo naquele momento. Não podia deixar que ela magoasse Chris nunca mais.
            Por isso, e como continuei a não ir às aulas por causa da droga, passava os dias enfiada nos aposentos do meu padrinho ou na biblioteca, a ler tudo o que podia sobre droga. John queria ajudar-me a largá-la mas estava a revelar-se uma tarefa complicada porque Kalissa já conseguira tornar o meu corpo dependente da heroína e das outras porcarias todas que ela tomava.
            Recomecei a comer. Até consegui engordar um pouco. Precisava de ganhar peso para que o meu aspecto voltasse ao normal e eu deixasse de parecer aquele cadáver andante. Ryan e Peter apoiavam a minha ideia, assim como Niza e Sophie que me obrigavam sempre a comer sobremesa ao almoço e ao jantar. Chris era o único que não se manifestava.
            Eu sabia o porquê de ele agir assim. Para Chris, tudo era mais complicado do que para os restantes membros do nosso grupo. Ele era o meu namorado e devia ser muito doloroso para ele ver-me naquele estado, sem forças, quase sem vida. Ele queria ajudar-me mas era complicado de mais para conseguirmos fazê-lo sozinhos.
            Por isso, nos três dias seguintes à tentativa desesperada, eu e John fizemos um plano elaborado com todos os passos que eu tinha de fazer para deixar a droga. Isto, claro, sem contar com as clínicas de desintoxicação. O meu padrinho jamais me mandaria para uma dessas.
            - O mais importante. - Disse ele, na tarde do segundo dia. - É teres força de vontade.
            - Eu tenho força de vontade! - Reclamei.
            Depois lembrei-me que não devia ser mal-educada para ele. John estava a fazer tudo o que podia para me ajudar, não merecia que eu o tratasse daquela maneira. Suspirei.
            - Desculpe.
            - Sim… mas o que eu estou a dizer é que se avizinham tempos difíceis e se não mantiveres na cabeça a ideia que queres mesmo deixar a droga, não serás capaz de o fazer.
            - Mas eu quero. E vou conseguir.
            Eu repetia isto para mim própria pelo menos mil vezes ao dia, e sentia que estava a surtir efeito. Eu seria capaz de vencer a droga custasse o que custasse.
            O meu maior medo era que Kalissa fizesse exactamente o contrário.
            Quando ela recuperasse o controlo - algo que eu evitei ao máximo durante esses dias - iria querer consumir outra vez. E o que é que eu podia fazer?
            John percebeu a pergunta desesperada nos meus olhos e encolheu os ombros com desalento.
            - Não sei se vamos conseguir impedi-la. Neste momento eu estou a trabalhar com os Desportistas para tentar que eles deixem de consumir mas está a ser realmente complicado. Eles são demasiado teimosos.
            - Pois…
            - Talvez a solução seja tirá-los do colégio.
            Olhei para John, ansiosa e assustada.
            - O quê? Mas… para onde é que eles vão?
            - Há outros colégios internos nas redondezas, Kiara.
            - Mas… isso não está certo. Não pode mandar embora catorze alunos por minha causa! John, eu não sou nenhuma princesinha nem quero ser tratada como uma! Eu consigo deixar a droga. Aliás, sou capaz de convencer os Desportistas, se tentar muito.
            O meu padrinho fixou o olhar no meu, desconfiado.
            - Achas que és capaz de fazer isso?
            - Sim. Tenho de tentar, é a minha última hipótese.
            E eu sabia que era verdade. Eu já vira o lado bom de Brand, por detrás da máscara de jogador brutamontes armado em vilão. Eu já vira um rapaz intenso, apaixonado e preocupado com a namorada… mesmo que a namorada não fosse eu. Mas haveria de arranjar maneira de apelar ao seu bom senso e fazê-lo ver que continuar a ceder aos caprichos de Kalissa não era a solução.
            - Eu dou-te autorização para tentares. Mas e se não conseguires?
            - Bem… nessa altura logo se vê. Eu estou confiante que consigo vergar o Brand à minha vontade.
            Depois lembrei-me que aquela seria uma afirmação típica da Kalissa e apressei-me a abanar a cabeça em negação.
            - Quer dizer… eu vou falar com ele e mostrar-lhe o bom caminho.
            Um sorriso compreensivo surgiu nos lábios de John.
            - Sinto-me orgulhoso por seres minha afilhada.
            Senti-me a corar. Era estranho que ele dissesse aquilo, depois de tudo o que tinha acontecido nos quatro meses anteriores. Mas ainda assim, ele mantinha-se ao meu lado e aturava todas as situações complicadas pelas quais eu passava. John era o melhor padrinho do mundo.
            - Já deve estar quase a tocar para a saída das aulas. Vou falar com o Brand agora.
            - Não te esqueças de ir comer. Estou a ver que estás a ganhar mais alguma cor nessas bochechas.
            Ri-me e levantei-me da cadeira. Abracei John e depois despedi-me dele, saindo do seu escritório.
            Enquanto percorria os corredores do colégio, comecei com a estranha sensação de que me estava a esquecer de alguma coisa. Que havia algo importante que me estava a passar completamente despercebido. Mas o que seria?
            Até chegar ao corredor dos dormitórios masculinos, ainda não tinha descoberto a resposta. Antes de bater à porta do quarto de Brand, inspirei fundo para arranjar coragem. Ele veio abrir pouco tempo depois, com um ar apreensivo.
            - Kiara?
            - Sim, sou eu.
            Brand não resmungou nem nada. Mostrou-se imperturbável com a minha presença.
            - O que queres?
            - Eu… preciso de falar contigo. - Murmurei.
            - Já queres mais droga? Dei-te os comprimidos há menos de duas horas! - Resmungou ele, os olhos cor de chocolate semicerrados de desconfiança.
            - Não, não venho pedir droga. - Suspirei. Aquilo ia ser mais difícil do que eu pensara. - Achas que posso entrar?
            Ele ponderou durante uns segundos e depois encolheu os ombros, dando-me passagem para dentro do quarto. Ele estava sozinho mas eu não senti necessidade de saber onde estavam Allan e Drake. Parei no centro da divisão e virei-me para Brand, olhando-o directamente enquanto ele fechava a porta e se aproximava mais de mim.
            - Já me podes dizer o que queres? - Perguntou ele, com a voz grave e mandona.
            Cruzei os braços para tentar que as mãos parassem de tremer. Eu não devia sentir-me nervosa por aquilo que ia pedir. Afinal de contas… e embora eu nunca tivesse pensado em Brand daquela maneira… ele e eu estávamos ligados. Eu nunca quisera esse laço. Da primeira vez que o vi nunca pensei que pudéssemos chegar ao ponto onde nos encontrávamos agora. Mas ele era o namorado de Kalissa e eu tinha Kalissa dentro de mim, logo, eu estava a roubar-lhe a namorada. Ele e eu teríamos sempre de lidar um com o outro. Até um dia, esperava eu.
            - Acho que fazes uma pequena ideia do que vim cá fazer.
            A sua testa franziu-se pela confusão e enfiou as mãos nos bolsos dos jeans desbotados, enquanto pensava numa resposta.
            - Não. Não me lembro mesmo.
            - Então eu vou começar do zero. Bem… como pudeste ver, há três dias atrás eu tentei deixar a droga. Porque eu não quero mesmo continuar a drogar-me. Não tenho tendências suicidas.
            Ele revirou os olhos e interrompeu-me bruscamente.
            - Hei, hei, se vens para aqui com sermões de menina bem comportada podes dar meia-volta e ir embora, percebes? Não estou para te ouvir.
            Aguentei firme. Ele não ia levar a melhor.
            - Eu só quero que me ouças. Vá lá.
            Brand calou-se e ficou a olhar para mim, à espera que eu continuasse.
            - Como já disse, não tenho tendências suicidas. Mas a Kalissa parece gostar de tudo o que vá contra as regras. E de certeza que foi ela quem fez com que te começasses a drogar. Confessa.
            Ele assentiu com a cabeça ao fim de algum tempo.
            - Pois, eu logo vi. Mas Brand… diz-me sinceramente, tu gostas disto? Gostas assim tanto da droga?
            - Tu sabes qual é a sensação! Sabes que é bom! - Vociferou ele.
            Naquele ponto eu não podia contradizê-lo. Eu já me sentira mesmo bem enquanto estava drogada. Aliás, naquela altura eu já só estava bem quando estava sob os efeitos da droga. Mas eu não ia dar o braço a torcer. Por muito forte e bem que me sentisse, a droga estava a matar-me aos poucos e poucos e eu ia travar esse processo.
            - Sim. Sabe mesmo bem. Sinto-me óptima quando estou drogada. Mas o que tu não consegues ver é que a droga nos está a matar, Brand! Mesmo que agora não notes, daqui a uns tempos vais começar a sentir os efeitos. A dependência total. Se não largares agora a droga vais tornar-te num desses drogados sem solução, no fim da linha da vida.
            Ele escutou tudo em silêncio e como vi que não continuava, inspirei fundo e continuei.
            - Além de que a droga também está a matar a Kalissa.
            Eu não soube ao certo o que o levou a ficar de olhos arregalados. Pensei que ele já se tivesse apercebido que a droga lhe tiraria a namorada mais tarde ou mais cedo. Ou seria assim tão estúpido para ainda não ter chegado a essa conclusão?!
            - A sério? Ela vai mesmo… morrer por causa da droga?
            - Sim, mais tarde ou mais cedo.
            E pela primeira vez, vi Brand ficar preocupado. Apeteceu-me sorrir de alegria mas consegui controlar-me. Eu tinha chegado ao ponto fraco dele. Brand era o típico rapaz apaixonado: acreditava em tudo o que se dissesse sobre a sua amada, quer fosse bom ou mau, e faria os possíveis e os impossíveis para a proteger.
            - Brand é isso que tenho estado a tentar explicar-te: a Kalissa é maluca. Não digas que não é! E ela vai querer continuar a drogar-se porque acha que isso é muito fixe e que faz dela uma pessoa melhor. Não faz. Nem a ela nem a ninguém. E eu não estou com intenções de morrer tão nova.
            - Mas se ela se meteu nisto foi porque quis e porque tinha noção das consequências.
            - Não! Tu ainda não percebeste que ela nunca pensa nas consequências dos seus actos?! Faz o que quer e pronto! E neste momento, se ninguém a travar, ela vai arranjar algo ainda pior para fazer.
            - Mas o que podemos fazer então? Deixar de lhe dar droga? Ela vai ficar furiosa.
            - Pois. E tu tens mais medo que ela fique furiosa ou que morra? - Perguntei com o sarcasmo bem forte na voz.
            Brand ficou em silêncio porque eu sabia perfeitamente qual era a sua resposta.
            - Portanto, julgo que sabes o que vim cá pedir-te. Não dês mais droga à Kalissa, por favor. Mesmo que ela a peça, não lha dês. Ela vai ter de a deixar tal como eu. E no fim vai correr tudo bem.
            - Ela vai odiar-me.
            Suspirei. Como é que eu lhe explicava que não me importava nada com a relação deles, que só me interessava que Kalissa parasse com os disparates?!
            - Ela não te vai odiar se lhe explicares a situação. Mas não menciones esta conversa, aconteça o que acontecer. Não te posso explicar porquê, mas preciso que me prometas que não lhe contas que vim falar contigo.
            Ao fim de uns minutos de silêncio, Brand assentiu.
            - OK. Eu não lhe conto.
            Sorri, sentindo que aquela era uma batalha ganha.
            - Obrigada por fazeres isto por mim. Quer dizer… por ela. Por ambas.
            - Eu só estou a pensar no bem da Kalissa. - Corrigiu ele, zangado.
            - Sim, claro. E já agora… eu acho que também devias deixar a droga, sabes? Seria tudo mais fácil se a deixasses.
            - Não posso.
            - Porquê? - Eu não esperava aquela resposta.
            Brand ripostou e passou a mão pelo cabelo rebelde, parecendo constrangido.
            - O Allan e o Drake também se drogam. Já imaginaste o que seria eu viver neste quarto com eles os dois, vê-los a consumir e não o poder fazer?!
            - Mas tu podias convencê-los.
            Tentei dar à minha voz um tom determinado.
            - Não. Não vou obrigar ninguém a fazer o que não quer. Já chega ter de o fazer com a Kalissa.
            Senti uma vontade enorme de gritar com ele, mas mais uma vez o meu auto-controlo foi suficientemente forte. Limitei-me a expirar pausadamente. E depois joguei a minha cartada final.
            - Brand… tu tens os teus pais vivos?
            Ele ficou confuso com a minha pergunta.
            - Só o meu pai.
            - Isso chega. E ele sabe que te drogas?
            - É claro que não! - Vociferou ele.
            - Pois. Então já imaginaste o que seria se ele viesse a saber?
            Brand ficou nervoso nessa altura. A ameaça presente na minha voz foi suficientemente forte para o fazer recuar dois passos com medo.
            - Tu não serias capaz…
            - Claro que não. Mas o meu padrinho seria.
            - Ele não pode fazer isso! Ele que não se atreva a falar com o meu pai!
            - Brand, não estás em posição de reclamar. O meu padrinho pode fazer o que quiser. Ele é o director deste colégio. E ele estava mesmo a pensar em pôr-te e aos teus amiguinhos todos na rua, só que…
            Calei-me. E se ele entendesse tudo ao contrário? E se achasse que eu estava mesmo preocupada com o bem-estar dele e dos outros Desportistas?
            - Só que? - Insistiu Brand, de olhos semicerrados.
            - Bem… eu disse-lhe para não fazer isso… porque eu não acho justo que ele vos ponha fora daqui. Eu não sabia que tu tinhas o teu pai vivo… mas de certeza que algum de vocês já não tem nenhum dos parentes e não tem para onde ir.
            - O Allan não tem pai nem mãe e o único parente mora em Nova Iorque e não quer saber dele para nada.
            - Pois, estás a ver? Eu não me sentiria bem se o Allan fosse deixado à sua sorte.
            OK. Aquilo era mesmo verdade, o que me espantou. Ele não me era nada mas ainda assim eu estava preocupada com ele. Não lhe queria mal, mesmo que ele estivesse a ajudar nas asneiradas de Kalissa, e consequentemente, na minha morte.
            - O Allan não quer saber de ti para nada e tu estás aí toda preocupada com ele! - Gozou Brand.
            - Pois. Talvez esteja. Mas ainda assim, não vou deixar que o meu padrinho vos expulse do colégio.
            Então Brand voltou a ficar sério ao ver aquilo que eu queria dizer.
            - Prometes?
            Bingo. Já estava no papo.
            - Prometo… com uma condição.
            - Ah, logo vi. - Rosnou ele, ao ver a minha armadilha.
            - Claro. Eu não sou estúpida como a Kalissa. Eu não deixo que vocês sejam postos na rua, mas só se vocês deixarem de vez a droga.
            Brand revirou os olhos com ironia.
            - Como se isso fosse fácil…
            - Se nos aliarmos conseguimos! Brand, eu não quero saber do que eles pensem. Achas melhor que o meu padrinho vos expulse? Que tenham de viver na rua?
            - Claro que não.
            - Então fala com eles. Com o Allan, o Drake e os outros. Fá-los ver o erro que estão a cometer e conta-lhes a minha condição.
            - Eles não vão concordar contigo.
            - Ai não? Então eu nem vou pedir nada ao meu padrinho.
            Sorri com maldade e vi Brand a recuar, para depois surgir no seu rosto uma expressão de rendição.
            - Hum… não temos alternativa.
            - Ainda bem que já chegaste a essa conclusão.
            Depois, para minha surpresa, Brand soltou uma gargalhada gutural.
            - O que é que mete assim tanta graça? - Perguntei, confusa.
            - É que… tu és parecida com ela. Com a Kalissa.
            Senti um baque no estômago ao ouvi-lo dizer aquilo. O quê?! Ele achava-me parecida com aquela víbora sem coração?! Cerrei as mãos em punhos para me controlar e não bater nele. Brand continuou a rir-se.
            - Eu não sou parecida com ela. - Sibilei furiosamente.
            - És. Tens um jeito enorme para persuadir as pessoas.
            Acalmei-me. Ele estava a elogiar-me? Para quê? O que é que ele ganhava em ser simpático comigo? Eu estava a arranjar-lhe mais problemas, não era suposto que ele me odiasse?
            - Achas mesmo?
            - Sim. A Kalissa também é assim. Foi desse medo que conseguiu afastar a Mariah do posto de Chefe da Claque, e fez com que todas as amigas dela lhe virassem costas.
            Suspirei. Era verdade. Kalissa era mesmo uma cabra horrorosa.
            - Eu não sou como ela. Nunca faria o que ela fez.
            Brand deixou de rir e olhou intensamente para mim, trespassando-me com aqueles olhos quentes e leitosos.
            - Mas ela também tem um lado bom. É pena que seja apenas eu a vê-lo.
            - Porque ela gosta de ti. Ou pelo menos eu julgo que gosta.
            - Claro que gosta! - Afirmou ele, convicto.
            - Brand… antes de te conhecer, a Kalissa não tinha capacidade para gostar de ninguém. Simplesmente não era possível. Por isso ainda não tenho a certeza se ela gosta mesmo de ti ou se é apenas mais um plano.
            - Não digas isso dela! A Kalissa ama-me tanto quanto eu a amo. E vamos ficar juntos mesmo que tu tentes afastar-nos.
            - Eu não vou fazer isso.     
            Ele ficou perplexo com as minhas palavras.
            - Não vais?
            - Não.
            - Mas… devias querer fazer isso…
            - Mas não quero. Espera, não penses que faço isto por gostar de ti ou dela. Faço-o porque enquanto a Kalissa estiver entretida contigo, não pensa em magoar o Chris. E eu amo-o tanto quanto ele me ama a mim. Muito mais do que tu amas a Kalissa e do que ela te ama a ti.
            Brand semicerrou os olhos em contradição mas não disse nada em voz alta. Descruzei os braços e aproximei-me mais dele.
            - Estamos bem assim. Tu com ela e eu com o Chris. E eu não quero destruir a tua relação com a Kalissa porque também não quero que ela destrua a minha com o Chris, mais nada.
            - Mas eu continuo a não gostar que ele… te toque.
            Fiquei chocada com aquela afirmação. O quê?!
            - Como assim?
            - Esse corpo também é o da minha namorada, esqueceste-te disso? E é óbvio que eu não gosto de ver outro rapaz a tocar-te nem a beijar-te. Faz-me impressão, como se ele estivesse a tocar e a beijar a Kalissa.
            Fiquei sem palavras. Não sabia o que lhe responder, mas acabei por me lembrar de algo suficientemente credível.
            - E já pensaste que ele pode pensar da mesma maneira?!
            Brand não me contradisse.
            - E já pensaste, por um segundo que fosse, que ao beijares esta boca, tanto podes estar a beijar-me a mim como à Kalissa?
            - Eu certifico-me de quem estou a beijar antes de o fazer! - Respondeu ele, exaltado.
            - Pois. Mas e se eu não quisesse que beijasses esta boca, que também é minha? Teríamos aqui um grande problema. Estás a ver? Nós os quatro temos de dar-nos bem ou surgirão problemas muito graves de resolver.
            Brand estava a começar a ver pelo meu ponto de vista, o que até era bom e me fazia sentir mais calma.
            - Eu não te quero beijar tal como o Chris não quer beijar a Kalissa.
            - Exactamente. É por isso que o quadrado funciona. - Sorri.
            Brand sorriu também, ao fim de uns segundos.
            - Acho que já estou a compreender-te.
            - Ainda bem. Agora podes, por favor, fazer o favor de não implicar mais com o Chris? Eu também já lhe pedi que não embirrasse contigo. Nós os três temos de nos unir contra a maldade da Kalissa, mesmo que agora ainda não concordes comigo.
            Ele assentiu e continuou a olhar fixamente para mim.
            - Eu continuo a não a achar má pessoa.
            Ri-me baixinho.
            - Pois claro. Isso é por estares apaixonado por ela.
            - Podes crer que estou.
            Suspirei e recuei dois passos.
            - Escolheste mal. Ela vai fazer-te sofrer.
            - Eu trato disso sozinho, se não te importares.
            - Tudo bem. Faz como quiseres. Mas Brand… faz o que te pedi. Fala com os Desportistas e com as Raparigas da Claque. Eu não quero ser responsável pela vossa saída do castelo.
            - Está bem. Eu falarei com eles.
            - Obrigada.
            E depois virei-me e preparava-me para sair quando a voz de Brand me chamou de novo a atenção.
            - Hum… Kiara…
            - Sim? - Olhei para ele por cima do ombro.
            - Feliz Natal.
            Fiquei chocada, petrificada naquele lugar, sem ser capaz de me mexer nem de falar.
            Era isso. O Natal! Como é que eu me tinha esquecido?! Hoje devia ser dia 24 de Dezembro. Oh não… a data tinha-me passado completamente ao lado!
            - Pois… para ti também Brand… - Murmurei atabalhoadamente.
            Depois saí do quarto a correr.
            Como é que eu me podia ter esquecido do dia? Era imperdoável. Desde pequena que eu adorava o Natal, era a minha festa preferida.
            E depois fui abrandando o passo quando o choque se alastrava pelo meu corpo, fazendo-me congelar no próprio lugar, até que estaquei completamente no meio do corredor sombrio.
            Eu tinha encontrado a resposta, a razão para me ter esquecido da data.
            E mesmo contra minha vontade, os meus olhos encheram-se de lágrimas. As minhas mãos começaram a tremer e eu tive de me apoiar na parede para me manter de pé. Encostei lá a cabeça e fechei os olhos, respirando fundo para me acalmar.
            Os meus tios.
            Era essa a razão. Eu andava tão preocupada com o assunto da droga e das confusões com Kalissa que me tinha esquecido do Natal. E há tempos atrás eu tinha querido esquecer realmente esta ocasião, que me fazia lembrar o meu tio e a minha tia mais vivamente que nunca.
            E as imagens entraram na minha cabeça, tornando-se tão nítidas como se eu estivesse mesmo de volta àquele momento.
            A sala da minha casa em Auburn estava toda enfeitada. O pinheiro de Natal estava montado na sala de estar, e eu e a minha tia estávamos a colocar os enfeites nele. A minha tia sorria imenso. Ela também adorava o Natal. Eu devia ter cerca de seis ou sete anos nessa altura. Estava entusiasmada com toda a decoração e com a neve que caía no exterior. O meu tio estava a colocar os enfeites na lareira. E a alegria era tão forte que se tornava quase palpável. Todos os anos a tradição era a mesma: jantávamos os três e depois íamos abrir os presentes à meia-noite. Aquela era a época mais feliz do ano inteiro, a que eu aguardava com maior ansiedade.
            Ao voltar à realidade, senti o rosto lavado pelas lágrimas. Era doloroso recordar os meus tios. Era difícil tentar recriar aqueles momentos de alegria porque no momento presente eu já não era capaz de me sentir assim tão entusiasmada com nada. Muito menos com o Natal.
            Deixei-me cair de joelhos no chão e depois virei-me para ficar com as costas apoiadas na parede. Encolhi as pernas e envolvi-as com os braços e deixei-me ficar ali a chorar.
            O Natal não tinha qualquer sentido sem os meus tios. Eu nem queria pensar em comemorá-lo. A falta deles ainda era demasiado forte. Depois lembrei-me da noite em que eles tinham sido mortos. Fui teletransportada para essa cena e vi os corpos dos meus tios a sangrar. Fechei os olhos com força mas era inútil. Desatei a soluçar tanto que quase não conseguia respirar. Eu não queria viver aquilo outra vez. Não queria lembrar-me do desespero, do medo, do terror que tinha sentido, da ânsia de fugir. Da maneira como os tinha deixado para trás. Mas agora era tarde e as memórias já estavam demasiado vivas dentro de mim. Continuei a chorar mais ainda.
            De que valia continuar em frente e sorrir no exterior se por dentro continuava cheia de medo e de tristeza? Se ainda tinha receio que os assassinos dos meus tios me encontrassem e me matassem? Do que é que valia lutar contra o inevitável? Eu era apenas uma rapariga indefesa e amedrontada.
            Mas lentamente, algo foi surgindo na minha cabeça, furando as nuvens de emoções avassaladoras que me consumiam, fazendo com que as imagens dos meus tios mortos se dissipassem na minha cabeça. Uma nova imagem surgiu na minha mente e eu abri os olhos, contemplando-a de bom grado.
            Era Chris. O meu namorado perfeito. E aquele sorriso bondoso que ele me dirigiu fez-me limpar as lágrimas. Era por ele que eu continuava a lutar. Por ele e por Niza, Sophie, Ryan e Peter. Porque os meus amigos precisavam que eu lutasse por eles.
            E porque eu não era uma desistente. Não ia deixar-me cair nunca. Não ia dar esse prazer à Kalissa. Se a minha missão de vida fosse manter-me à superfície do lago do desespero e da apatia para o qual ela me queria lançar, então eu lutaria até à morte. Kalissa não ia vencer. Eu era mais forte que ela.
            Limpei as lágrimas mais uma vez. Não ia comemorar o Natal. Ainda não era capaz de fazer isso. Mas também não iria estragar a festa dos meus amigos e do meu namorado. Eu queria mantê-los felizes. Já que eu não podia ser verdadeiramente feliz, desejava que as pessoas que eu amava o fossem.
            Levantei-me lentamente. Sentia-me fraca. A dor de cabeça por ter estado a chorar era muito forte. Mas ainda assim arrastei-me para o fundo do corredor e comecei a descer a escadaria. Já eram horas de jantar.
            Os meus tios também não queriam que eu desistisse. O meu tio sempre me dissera que os desistentes são os maiores cobardes. E eu não queria ser cobarde. Queria que ele tivesse orgulho em mim, tal como John tinha.
            Também ia ser forte pelo meu padrinho, para que ele continuasse a apoiar-me. John estava sempre ao meu lado e eu não queria nada parecer uma menina frágil e aterrorizada.
            Por isso fui ganhando forças e quando cheguei ao último degrau da escadaria consegui erguer a cabeça e suspirar.
            Era só mais uma noite. Um esforço enorme, mas que eu superaria. Pelas pessoas que amava, eu continuaria a sorrir e a mentir e a dizer que estava tudo bem. Sim, tinha de ser.
            Porque à noite eu poderia chorar o que me apetecesse.
            Encaminhei-me para o salão de refeições em passo determinado. Precisava de ter Chris e Ryan ao meu lado. O poder dos meus dois talismãs ajudar-me-ia a manter-me calma o resto da noite. Por isso passei pelas grandes portas do refeitório com um largo sorriso na cara.
            Avistei o meu grupo lá ao fundo. O salão estava realmente lindo, todo enfeitado com bolas e fitas e luzes, mas eu não liguei excessivamente à decoração. Só me importava que os meus amigos me queriam junto deles. Ignorei os enfeites e a gigantesca árvore de Natal colocada ao fundo do salão, no pórtico onde também se encontrava a mesa dos professores.
            Ao ver-me chegar, Niza levantou-se a correu para os meus braços, rodopiando à minha volta toda contente.
            - Feliz Natal! - Gritou ela, alegremente.
            - Obrigada, para ti também. - Desejei.
            Abracei-a fortemente e depois fiz o mesmo a Sophie, que também estava entusiasmada com a data, e que tinha um gorro de pai natal na cabeça.
            Sentei-me entre Chris e Ryan e sorri-lhes.
            - Feliz Natal malta.
            Chris sorriu e beijou-me intensamente. E eu deixei-me levar pelo beijo, tentando arranjar forças para suportar o resto da noite. Enrolei os braços em volta do pescoço do meu amor e movi os meus lábios ao mesmo compasso que os seus, enquanto Chris rodeava a minha cintura com os seus braços e me apertava contra si gentilmente.
            - Hei, parem lá com isso, vão ter tempo à noite! - Resmungou Niza, rindo-se logo de seguida.
            Peter apoiou-a. Chris largou-me um pouco, mantendo apenas o braço a envolver-me num abraço quente, e eu entrei na conversa alegre que eles travavam sobre presentes, decorações e neve, muita neve.
            - O que acham de fazermos uma batalha de bolas de neve?! - Sugeriu Sophie, batendo palmas de contentamento.
            Ri-me. Só mesmo ela para ter ideias daquelas.
            - Não podemos estar fora do castelo depois da uma da manhã.
            - Tudo bem, jogamos até essa altura.
            - Mas está um frio de morte lá fora! - Reclamei, em voz baixa.
            - Levamos roupa quente.
            - Está demasiado escuro para nos vermos uns aos outros! - Insisti.
            - Hoje é noite de lua cheia. Vemo-nos na perfeição. Vá lá Kiara, desiste! - Disse ela, rindo-se logo de seguida.
            E eu acabei mesmo por desistir. Por mais argumentos que encontrasse ela arranjava logo maneira de os contornar. Por isso entendi que ia mesmo ter de jogar à batalha de bolas de neve.
            Felizmente o jantar foi servido nessa altura, e depois de John ter feito o discurso de Natal - eu não conseguia achar os seus discursos enfadonhos, talvez por ser sua afilhada, mas achava que ele falava muito bem e com muita sabedoria. Também me sentia orgulhosa dele - e quando ele acabou, pudemos ir servir-nos à mesa do buffet. Quando me tornei a sentar, comi em silêncio, enquanto ouvia as histórias dos meus amigos sobre como costumavam comemorar o Natal antes de terem entrado para o castelo.
            - Então e tu, Kiara? O que é que costumavas fazer? - Perguntou Peter.
            Mas antes que eu pudesse responder, Chris interveio em minha defesa, lendo os meus pensamentos na perfeição.
            - É melhor não falarmos nesse assunto. É difícil para ela. - Murmurou e depois piscou-me o olho.
            Sorri-lhe, agradecida por ele ter ajudado.
            - Muito bem, então e os presentes? Sabem, eu comprei montes deles para vocês! - Disse Sophie, tentando desanuviar o ambiente daquele momento constrangedor.
            Só que o resultado foi o oposto e eu ainda fiquei a sentir-me pior.
            - Oh não! Os presentes…
            - O que foi? - Perguntou-me Ryan, ao sentir-me nervosa.
            - Eu não vos comprei nada! Na verdade… tenho de confessar que me esqueci completamente que era noite de Natal.
            Sophie e Niza ficaram boquiabertas com a minha revelação.
            - A sério? Esqueceste-te mesmo?!
            - Sim… peço imensa desculpa! Mas amanhã vou comprar presentes para vocês todos, juro! Até vos deixo escolher aqueles que gostarem mais.
            - Uau, eu gosto da ideia. - Riu-se Niza.
            Senti-me mais calma por eles terem todos concordado com a sugestão. Depois continuámos a comer e quando terminámos seguimos com os restantes alunos para a Sala de Convívio. Sentámo-nos num grupo de sofás mas Sophie e Ryan permaneceram de pé.
            - Eu vou buscar os presentes dos rapazes! - Disse Sophie.
            - E eu os das raparigas. - Completou Ryan.
            E seguiram os dois de volta ao salão de refeições, para depois seguirem até aos respectivos quartos e irem buscar as prendas. Eu sentei-me ao lado de Chris num dos sofás e suspirei, sentindo-me abatida. Como é que pudera esquecer-me dos presentes?
            - Eles não ficaram chateados contigo, meu amor. - Murmurou Chris.
            - Tens a certeza?
            - Absoluta. E eu sei o porquê de te teres esquecido. Não te censuro.
            Virei-me ligeiramente para conseguir olhá-lo directamente e sorri.
            - É óptimo que tenhas esse dom. Poupas-me muitas explicações complicadas.
            Ele riu-se e beijou-me intensamente. Tive de me afastar ao fim de uns segundos para impedir que o meu controlo se esvaísse e que Kalissa ganhasse poder.
            - Ups. - Riu-se Chris.
            - Sim, pois claro. Passas a vida a tentar descontrolar-me.
            - Não o faço por mal.
            Suspirei e deitei a cabeça no seu peito musculado. Quem me dera ter algo para lhe oferecer. Um presente qualquer que de que ele gostasse mesmo. E depois passou-me uma ideia pela cabeça e um sorriso perverso rasgou os meus lábios. Levantei a cabeça e olhei para Chris. Deixei cair as protecções e Chris entrou facilmente na minha cabeça, entendendo logo a minha ideia. Os seus olhos arregalaram-se de espanto.
            - Não queres ir jogar à batalha de bolas de neve, pois não?
            Abanei a cabeça em negação.
            - Hum… eu acho que gosto da tua ideia. - Riu-se.
            E antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, Ryan e Sophie voltaram com os vários embrulhos nos braços. Eu fiquei de olhos arregalados ao ver tudo aquilo. Niza bateu palmas com entusiasmo.
            - Vamos começar, vá lá!
            - Mas ainda nem é meia-noite! - Ripostou Peter.
            - Oh… que pena…
            - Esqueçam isso. Vamos abrir os presentes para depois podermos ir à batalha de bolas de neve. - Apressou Ryan.       
            Sentou-se na poltrona mas Sophie permaneceu de pé, enquanto alinhava os presentes no chão e dançava entre eles como uma bailarina extasiada.
            - Ora bem, vamos começar por… ti! - Apontou para Peter e pegou num presente rectangular, com papel de embrulho em tons de verde-seco e ocre, com um gigantesco laço vermelho que era quase maior ainda que o embrulho em si.
            Peter pegou na sua prenda e riu-se. Depois começou a rasgar o papel e os seus olhos arregalaram-se ao ver o novo CD da banda que ele mais gostava.
            - Esse é meu e da Niza para ti. - Respondeu Sophie.
            - Uau, obrigado! Era mesmo o que eu queria!
            - Ainda bem que gostaste! Agora tu, Ryan.
            Sophie foi pegar na prenda do namorado e passou-lha, com um grande sorriso vitorioso. Eu até era capaz de adivinhar o que estava ali dentro, e não me surpreendi quando ouvi Ryan exclamar de entusiasmo.
            - Uau! São fantásticos! Obrigado malta!
            Ténis. Novinhos em folha. E lindos, claro. Embora eu não tivesse ajudado a escolhê-los, sabia que Chris e Peter tinham um dedo metido naquela história.
            - Ainda bem que gostas. Chris, agora a tua!      
            Sophie passou a prenda ao meu amor e ele desembrulhou-a, entusiasmado. Era um blusão super fixe, e eu adorei-o. Chris levantou-se e vestiu-o. Era o tamanho certo e tudo. Ficava-lhe tão bem que eu me senti orgulhosa dele.  
            - Obrigado. Adoro-o.
            - Eu já sabia que ias gostar, é a tua cara! - Riu-se Peter.
            - Claro que é.
            - Kiara, esta é para ti.
            Fiquei sem saber o que dizer quando Sophie me passou a prenda para as mãos. Era grande e rectangular, o papel era cor-de-rosa e azul-bebé e o laço amarelo era enorme. Senti-me a corar. Na etiqueta dizia, na letra floreada da minha amiga, "de Niza e Sophie para Kiara". Sorri-lhes.
            - Obrigada!
            Depois abri-a e espantei-me ao ver um álbum. A capa era de pele, fofa e macia, num belo tom de cor-de-rosa. Tinha algumas luas e estrelas prateadas desenhadas na parte da frente. Abri o álbum e vi lá os espaços para colocar as fotografias. Senti-me a corar tanto que as minhas maçãs-do-rosto pareciam queimar.
            - Chris… isto é batota! - Balbuciei.
            Ele riu-se, assim como Niza e Sophie. Claro que ele sabia que eu queria um álbum daqueles, e tinha contado o meu desejo às minhas amigas. Era mais que óbvia a razão para elas me terem dado aquele presente mas eu continuei a adorá-lo.
            - Niza, esta é para ti. - Disse Sophie.
            E a troca de presentes continuou durante bastante tempo. No total, Niza recebeu um globo de neve muito giro com um ursinho no interior e também uma pulseira mesmo fixe. Chris recebeu o blusão e outro relógio que ele adorou; Peter ficou-se com uma T-shirt preta e o CD da sua banda preferida; Ryan recebeu os ténis e um saco de desporto de uma marca que ele gostava imenso. E finalmente deram à Sophie uma nova caixa de maquilhagem e um livro da sua escritora preferida.
            Quanto a mim, fiquei encantada com o álbum de fotografias e com a pulseira que Niza me deu, que era igual à sua mas numa cor diferente, e que segundo ela era um símbolo de amizade, uma vez que Sophie tinha outra também igual. A minha era prateada, a de Sophie era cor-de-rosa e a de Niza era dourada. Eu adorei os presentes.
            Quando acabámos de os trocar, já era perto das onze da noite, mas os meus amigos ainda queriam ir fazer a batalha de bolas de neve. Olhei para Chris ansiosamente e ele riu-se baixinho.
            - Hum, pessoal… eu e a Kiara queríamos ir fazer outra coisa, está bem?
            Niza e Sophie entreolharam-se e depois soltaram gargalhadas perversas, fazendo-me corar mais ainda.
            - Claro, claro, estejam à vontade!
            - Até amanhã!
            - Nós ficamos no quarto nos rapazes esta noite.
            E depois de todos se terem despedido de nós, Chris aproximou-se e rodeou os meus ombros com o seu braço musculado, abraçando-me fortemente.
            - E agora vem a nossa comemoração.
            Sorri e deixei que ele me levasse consigo até ao meu quarto, sem grandes pressas. Passei todo o caminho a inalar o seu perfume delicioso, que era mil vezes melhor que droga. Agora que me apercebia, já não pensava nisso há mais de três horas. Era um óptimo recorde.
            Os corredores que passávamos estavam silenciosos e eu nem lhes dei importância. A única coisa que me interessava era Chris, ao meu lado. Ele estava muito calmo e sorridente. E nesse instante invejei a sua serenidade, a sua determinação, a confiança que tinha em si mesmo. Eu estava nervosa, o meu coração batia apressadamente no meu peito.
            Chegámos à porta do meu quarto e eu inspirei fundo antes de a abrir.
            O quarto estava quase totalmente mergulhado na escuridão, mas havia uma pequena parte da janela que deixava entrar o luar. Este formava uma faixa branca no chão do meu quarto, que ia até à minha cama, a única que estava parcialmente iluminada. O meu quarto cheirava bem, um aroma agradável. Mas eu continuava a sentir-me nervosa, mesmo que aquele espaço me fosse habitual. Suspirei e virei-me para trás. Assustei-me ao ver Chris, mesmo ali parado junto a mim. Ele já tinha fechado a porta silenciosamente e vindo até mim sem que eu desse conta. O meu coração deu um solavanco.
            Não sabia muito bem o que me levava a pensar dessa maneira, mas sentia que aquela noite seria especial.       
            - Acalma-te meu amor. Não vou deixar que nada de mal te aconteça. - Sussurrou ele docemente.
            Fechei os olhos e suspirei. Sim. Ele não ia deixar… e eu também não. Jamais permitiria que Kalissa se soltasse nessa noite e que estragasse o meu momento íntimo com Chris. Ou pior… que magoasse o meu namorado.
            Recuei um pouco e Chris ficou a olhar para mim inquisitoriamente.
            - Deixa-me só… trocar de roupa, OK? - Balbuciei, num murmúrio atabalhoado.
            Ele riu-se baixinho e assentiu com a cabeça. Dirigi-me ao meu roupeiro e tirei de lá o meu pijama preferido, que era todo preto. Era composto por uma camisola de meia manga e por uns calções curtinhos, mas eu adorava-o. Depois dirigi-me à casa de banho e troquei rapidamente de roupa. Ainda tive tempo para me ver ao espelho antes de voltar ao quarto.
            Eu estava diferente desde a manhã em que acordara no quarto de Brand e descobrira que Kalissa tinha estado a controlar-me durante três semanas a fio. Tinha sido na mesma manhã que eu vira o meu reflexo arrepiante no espelho. Nessa altura a minha pele estava pálida, quase translúcida, eu estava demasiado magra, o cabelo quebradiço e os olhos baços. Naquela noite eu estava melhor. Já tinha ganho uns dois ou três quilos - devia estar próxima dos quarenta quilos naquela altura - e as veias já estavam a tornar-se mais difíceis de ver. O meu tom de pele rosado e cremoso estava a voltar lentamente. O meu cabelo já tinha mais brilho e parecia mais forte e sedoso. Até os meus olhos estavam mais cintilantes, mais azuis que antes.
            Mas talvez tudo aquilo se devesse à excitação que eu sentia naquele momento. Ao ver-me com o pijama vestido, tive de engolir em seco. Chris não estava habituado a ver-me com tão pouca roupa, e apesar de estarmos em finais de Dezembro, eu não sentia frio nenhum mesmo estando de calções. Aliás, sentia um calor quase insuportável. Lavei a cara e escovei os dentes e quando me senti mais calma voltei para o quarto.
            Chris estava deitado ao comprido em cima da minha cama, em tronco nu, com um ar tão descontraído e adorável que me deu vontade de correr para o seu lado e aninhar-me nos seus braços. Mas quando eu passei pela porta os seus olhos arregalaram-se de espanto e ficou boquiaberto a olhar para mim. Isso fez com que eu corasse imenso. Ficámos a olhar um para o outro durante o que me pareceu uma eternidade, até ele se levantar lentamente da cama e vir ao meu encontro no centro do quarto escuro.
            Parou junto a mim e eu aproximei-me um pouco mais. O meu coração batia tão depressa e tão fortemente que de certeza que Chris o ouvia claramente. Acabei por envolver a sua cintura com os meus braços e deitei a cabeça na curva do seu ombro e do seu pescoço. O seu peito musculado era macio e estava quente e apeteceu-me ficar ali aninhada nele para sempre. Fechei os olhos e respirei fundo o seu perfume.
            - Estás linda, sabias? - Murmurou ele.
            Arrepiei-me e ele riu-se baixinho. Depois abraçou-me também e começou a embalar-me lentamente. Ao fim de poucos segundos, estávamos literalmente a dançar. E eu reconhecia o compasso que nós estávamos a seguir. Fiquei de tal modo chocada com a comparação que os meus olhos se arregalaram.
            Há algum tempo atrás, eu tivera um sonho no qual dançava com Chris na clareira do desporto lá do colégio. Eu usava um vestido de princesa e ele um smoking. Mas a dança era a mesma. Os seus olhos brilhavam da mesma maneira, os seus lábios abriam-se no mesmo sorriso tentador. E eu senti o coração a bater mais depressa ainda.
            Sentia-me bem naquele momento. Como se estivéssemos, eu e Chris, no meio de uma bolha de felicidade, completamente à prova de tudo o que viesse do exterior - à prova de bala seria o exemplo que Peter daria - e principalmente, à prova de Kalissa. E eu continuei a dançar agarrada a Chris, sem me conseguir preocupar com mais nada. Ele fez-me dar uma pirueta em seu redor e eu soltei uma gargalhada.
            - Tu danças mesmo bem. - Sussurrei.
            - É, já me tinhas dito. - Riu-se.
            E depois agarrou o meu queixo na sua mão e elevou-o para que este ficasse ao nível do seu. Encostou os lábios aos meus e uma explosão de fogo atravessou o meu corpo de alto a baixo. Sentia-me a arder de felicidade, cada centímetro da minha pele escaldava mas eu só queria que ele me beijasse mais.
            Eu já tinha a certeza absoluta que o amava, mas naquele momento a certeza foi maior ainda.
            Chris pegou-me ao colo com rapidez, enquanto eu enrolava as pernas à volta da sua cintura, e rodopiou comigo no meio do quarto, enquanto me beijava. Passei os dedos pelo seu cabelo sedoso, puxando o seu rosto para mais perto ainda do meu. Ri-me baixinho e ele dirigiu-se lentamente à minha cama. Deitou-me lá com cuidado e depois deitou-se sobre mim, sem nunca deixar desaparecer aquele sorriso que eu mais amava.
            Os nossos corpos fundiam-se na perfeição, como se eu sempre tivesse estado destinada a ser sua. Sim, só podia ser dessa forma. Eu era dele e ele era meu. Contra todas as probabilidades, ele amava-me tanto quanto eu o amava.
            Ficámos ali a olhar um para o outro durante muito tempo, sem dizermos nada. Ele lia-me os pensamentos com uma clareza extraordinária e, pela primeira vez, eu também consegui ler os seus. Como se Chris tivesse deitado por terra todas as barreiras, todas as paredes invisíveis que mantinham os seus sentimentos secretos para mim. Naquele instante, estando tão próximos, eu consegui entendê-lo, consegui ver o que ele via em mim. Foi talvez o melhor momento da minha vida.
            Ele amava-me. Realmente. Dantes eu achava que ele era um bocado maluco. Quem é que alguma vez me conseguiria amar? Eu, a rapariga esquisita que tinha uma demónia dentro de si? Eu, que estava sempre a mentir, a cometer erros, envolvida em situações constrangedoras? A rapariga amedrontada e insegura? Mas ainda assim, Chris tinha visto as minhas qualidades atrás do oceano de defeitos. E gostava mesmo de mim.
            Sorri e abracei-o com mais força.
            - Amo-te. - Sussurrei.
            - Também te amo.
            Depois beijou-me outra vez e uma nova corrente de fogo fez-me sentir mais quente ainda.             Deixei-me ficar deitada debaixo dele o resto da noite, a beijá-lo e a olhar para os seus profundos olhos que se pareciam, mais do que nunca, como pedras preciosas.
            Mas não mais preciosas que a sua alma. A alma de Chris era a mais pura e mais fantástica de todas as almas que eu já tinha conhecido.
            Eu não sabia a razão para estar a conseguir manter Kalissa afastada. Eu nem estava a pensar muito na barreira protectora nem em manter a minha inimiga no poço escuro. A única coisa que me preenchia os pensamentos naquele momento era Chris. E ainda assim, ela mantinha-se silenciosa, não tentava romper as minhas protecções. Seria normal que ela o fizesse, que tentasse estragar a minha felicidade, mas naquela noite ela não conseguiu. Talvez porque eu me sentia demasiado feliz para ela me conseguir derrotar. A minha felicidade transformada em força era muito superior à maldade de Kalissa. Sorri e continuei a beijar Chris.
            Acabei por adormecer muito tarde, com ele ao meu lado, e tive a certeza que essa tinha sido a noite mais feliz da minha vida.
           
            

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