Capítulo 8
Combate
Abri os olhos lentamente. Depois apercebi-me que me doía o corpo todo. Era estranho… vi Chris deitado ao meu lado, a dormir profundamente. As memórias da noite anterior entraram fortemente na minha cabeça e fizeram-me sorrir. Tinha sido uma noite fantástica, inesquecível. Aconcheguei-me nos braços de Chris e ele pestanejou, estremunhado. Sorri-lhe.
- Bom-dia.
Ele sorriu-me também e beijou-me.
- Bom-dia.
Suspirei. Daria tudo para não ter de sair dali, mas a dor de cabeça atingiu-me fortemente. Aquele era um contratempo. Como era possível que até uma dor de cabeça interrompesse aquele momento tão bom?
- O que é que sentes? Estás bem? - Perguntou Chris, notando que eu estava esquisita.
- Não… não estou…
Era esquisito. Eu saberia se Kalissa se tivesse soltado. E Chris não estaria deitado ali ao meu lado, tão pacificamente. No entanto, doía-me a cabeça na mesma. E só para tirar as dúvidas, era melhor perguntar.
- Chris… a Kalissa não se soltou, pois não?
A sua testa franziu-se de preocupação.
- Não, claro que não.
- Ah… ainda bem…
- Mas porquê?
- É que me dói tanto a cabeça…
Tornei a fechar os olhos e ele beijou-me os cabelos.
- Estás há demasiado tempo sem tomar… nenhum comprimido.
- Ah!
Então era natural que eu estivesse a sentir-me assim. A dor foi afastando para os confins da minha mente a memória da noite maravilhosa e eu agarrei-me a ela com todas as forças. Chris notou o meu esforço evidente.
- Tem calma. Queres que vá buscar algo para ti?
- Espera… estou a tentar controlar-me…
Ele aguardou em silêncio enquanto eu recuperava o controlo. Depois desisti e deixei que a memória fosse lançada para o fundo da minha "caixa de recordações". Abri os olhos e suspirei.
- Eu vou buscar algo. Tenho de tomar qualquer coisa.
- Não, deixa-te estar aqui sossegada. Eu vou buscar para ti.
Levantou-se rapidamente, antes que eu tivesse tempo de rejeitar a sua oferta, e enfiou rapidamente as calças, calçando-se à pressa. Depois curvou-se para me beijar uma última vez e saiu do quarto ainda a vestir a camisola. Deixei-me cair para trás na cama e enrolei-me nos lençóis que cheiravam ao melhor perfume do mundo: essência de Chris.
Ele voltou pouco tempo depois com uma saqueta transparente que continha seis comprimidos pequeninos. Trazia também uma garrafa de água numa das mãos. Sentou-se ao meu lado na cama e passou-me a droga.
Tomei dois dos comprimidos e bebi quase metade da água que a garrafa continha. Para além das dores também sentia muita sede. Quando fiquei saciada pousei a garrafa e a saqueta na mesa-de-cabeceira e deitei-me outra vez. Ia ter de esperar cinco a dez minutos até a droga fazer efeito, mas tudo era preferível a ter de usar seringas. Odeio seringas.
- Hoje não há aulas, por ser dia de Natal. - Explicou Chris.
- Pois, eu já desconfiava…
- Então… queres ir fazer alguma coisa?
- Como o quê? Passear?
- Isso não daria muito jeito. Está a chover torrencialmente. - Sorriu ele calmamente.
- Ah pois…
- Mas não tínhamos de ficar ao ar livre. Se quiseres podemos ir ao cinema. Esta semana estrearam uns dois ou três filmes fixes.
- Hum… cinema? - Balbuciei, de olhos fechados.
Estava com demasiado sono para conseguir manter os olhos abertos, o que era estranho. Tenho a certeza que dormi durante muito tempo, mas ainda sentia sono.
- Ou então podemos ficar por aqui. - Chris deu-se por vencido.
Ri-me e depois adormeci profundamente.
Quando acordei, já sabia que as coisas não estavam bem. A dor de cabeça que eu sentia não era causada pela falta de droga, era apenas o aviso de que Kiara tinha estado a controlar o meu corpo, embora eu já soubesse isso.
Estava sozinha no meu quarto. A luz entrava apenas por uma fresta dos cortinados e dava à divisão um ar ancestral. Deixei-me ficar deitada por mais uns momentos. Que dia seria hoje? O que teria acontecido na minha ausência?
Depois a porta do quarto abriu-se e Chris entrou. Semicerrei os olhos de raiva. O que é que ele fazia ali? Por que é que tinha de aparecer sempre quando eu queria que ele ficasse longe, que não viesse perturbar a minha paz?
- Kiara? Estás bem meu amor?
- "Meu amor" o tanas, seu imbecil! - Rugi-lhe.
E não foi preciso dizer mais nada porque ele percebeu logo que eu já não era a parva da sua namoradinha. Chris suspirou, fechou a porta e aproximou-se da cama, cruzando os braços. No rosto exibia a expressão que um médico usaria perante um caso de difícil resolução.
- O que é que queres? - Perguntei, ansiosa.
- Eu vinha cá ver se a Kiara já tinha acordado. Eu deixei-a a dormir há quatro horas atrás.
- Pois, mas ela agora foi-se. - Resmunguei.
Depois levantei-me e descobri que estava apenas em roupa interior. Demorei apenas dois segundos a processar a informação na minha cabeça e depois cravei o olhar em Chris. As minhas mãos cerraram-se em punhos quando entendi o que tinha acontecido.
Arreganhei os dentes e tive de me controlar imenso para não lhe saltar para cima e começar a esmurrá-lo. Era essa a vontade que eu tinha.
- O que… é que… vocês… tinham… na cabeça?! - Rosnei-lhe.
Chris ficou de olhos arregalados e começou a recuar em direcção à parede quando eu fui atrás dele, a expirar controladamente, com a fúria a descer-me pelos braços para se concentrar nas palmas das mãos, que ardiam de vontade de bater naquele estúpido que se encontrava à minha frente, estupidificado com a minha reacção.
- Do que é que estás a falar?! - Balbuciou ele, incrédulo.
- VOCÊS NÃO PODIAM TER FEITO ISTO! O QUE É QUE TE LEVA A PENSAR QUE TENS O DIREITO DE TOCAR NO MEU CORPO?!
Ele ficou encurralado contra a parede e eu coloquei-me diante dele, tão próxima que se perdesse as estribeiras o conseguiria esmurrar na perfeição. Chris não sabia o que dizer, eu via a indecisão e o medo no seu rosto. Os meus olhos faiscaram de raiva.
- Este corpo é meu, estás a perceber?! O que é que te passou pela cabeça para dormires com a Kiara?!
- Eu não cheguei a dormir com ela, pelo menos da maneira que tu estás a pensar…
- NÃO ME INTERESSA! EU NÃO TE QUERO A TOCAR COM UM SÓ DEDO NO MEU CORPO, ESTÁS A PERCEBER?! - Rugi-lhe.
E estava mesmo quase a pregar-lhe um estalo quando a porta se tornou a abrir e Sophie entrou. Ficou a olhar para nós, chocada, mas não demorou tanto tempo a agir quanto Niza teria feito. Fechou a porta e puxou Chris por um braço, libertando-o da prisão que eu criara.
- O que é que te deu? Deixa-o em paz! - Vociferou Sophie.
Olhei para ela. Como é que se atrevia a dar-me ordens, a meter-se na minha vida daquela maneira?! Ela ia arrepender-se, tal como Chris.
- Cala-te estúpida! Não tens nada a ver com isto! - Rosnei-lhe.
Sophie ficou de queixo caído com as minhas palavras e vi-lhe os olhos a encherem-se de lágrimas. Mas isso só me deu mais força para continuar.
- Esta conversa é entre mim e o Chris, estás a perceber?!
- Não vou deixar que o trates assim! - Rugiu ela, furiosa.
Hum… Sophie estava a assumir finalmente a sua veia lutadora? Pelo menos não era cobarde como Niza. Sorri com sarcasmo e aproximei-me dois passos dela.
- Ou sais imediatamente deste quarto ou vais arrepender-te.
Ela engoliu em seco e Chris colocou-se entre as duas, com ar autoritário.
- Kalissa, já chega. Não vais tocar com um só dedo na Sophie, estás a perceber?!
Levantei o queixo para conseguir olhá-lo directamente. Eles iam arrepender-se. Todos eles.
Mas a vingança serve-se fria.
Peguei num casaco de malha que me chegava até aos joelhos e vesti-o rapidamente, enquanto enfiava os pés nuns chinelos de praia e saía do quarto a correr. Precisava de me acalmar. Se me desconcentrasse Kiara voltava ao poder.
Fui até ao quarto de Brand e bati à porta. Ele veio abrir, parecendo espantado por me ver ali.
- Olá. - Murmurei, tentando dar à minha voz um ar mais amoroso, disfarçar a camada de ódio que me envolvia.
- És tu, Kali?
Eu adorava quando ele me chamava assim. E só Brand podia fazê-lo. Se mais alguém se atrevesse a usar aquele nome comigo, ia arrepender-se. Mas como era o meu namorado, eu sentia-me mais feliz. Sorri e abracei-me a ele com todas as minhas forças.
- Oh Brand… ajuda-me… - Choraminguei.
Ele ficou espantado com a minha reacção mas acabou por me abraçar e me puxar para dentro do seu quarto. Pegou-me ao colo com ternura e foi sentar-me na sua cama, ficando ao meu lado. Deitei a cabeça no seu ombro quente e deixei que as lágrimas escorressem pela minha cara.
Um dos meus maiores dons era a capacidade de chorar quando bem me apetecia, fosse em que ocasião fosse.
Por isso não foi difícil desatar num verdadeiro pranto. Brand estava realmente preocupado. Fez-me festinhas no cabelo e murmurou-me palavras bonitas para ver se me acalmava.
- O que é que aconteceu? - Perguntou ele por fim.
Contive o sorriso vitorioso que queria mostrar e continuei a dar o ar de rapariga desesperada. Limpei as lágrimas mas os soluços continuaram.
- O Chris… ele…
- O que é que esse estúpido te fez?! - Disse Brand, a começar a ficar furioso.
Óptimo. Quanto maior fosse a sua fúria, mais doce seria a minha vingança.
- O Chris dormiu com a Kiara. Foi para a cama com ela. - Balbuciei, continuando a chorar.
Quis rir-me à gargalhada quando vi a expressão no rosto de Brand. Primeiro ele mostrou-se impassível, mas eu sabia que isso se devia ao facto de ele ainda não ter percebido bem o que eu dissera. Depois, muito lentamente, ele foi ficando mais pálido com o choque, os olhos arregalaram-se de incredulidade e o queixo descaiu-se numa careta de espanto. E depois, foi ficando cada vez mais enervado, cada vez mais furioso, até a sua pele apresentar um tom vermelho-vivo. Ele estava tão desejoso de dar uma coça em Chris como eu. Continuei a apresentar o meu ar ofendido e ele levantou-se bruscamente, a respirar fundo para controlar os tremores que lhe assolavam o corpo.
Jackpot. Agora é que Chris ia aprender a não se meter comigo.
- ELE FEZ O QUÊ?! - Rugiu Brand, furioso.
- Eu já te expliquei… ele não tem o direito de tocar neste corpo! Eu senti-me tão mal quando acordei… este corpo é meu Brand, e só de imaginar a maneira como Chris esteve em contacto com ele…
Escondi o rosto entre as mãos para Brand não ver o meu sorriso de felicidade. Eu ia conseguir. Desta vez ia vingar-me de Chris, e nem precisaria de sujar as minhas mãos.
Ouvi Brand a urrar de raiva e senti-me tão bem que só me apeteceu rir à gargalhada. Era tudo tão fácil que até custava a acreditar.
- Ele vai-se arrepender… tu és minha, não és de mais ninguém! - Brand estava completamente fora de si.
- Claro que sou só tua, meu amor… - Respondi, gaguejando para dar mais ênfase à expressão, apesar de esta não ser completamente verdadeira. Eu era livre. Ninguém me podia prender.
Brand cerrou as mãos em punhos e parecia prestes a explodir de cólera, o que só me conseguiu divertir mais ainda. Naquele momento eu tinha de morder os lábios para estes não se rasgarem num sorriso vitorioso.
- Onde é que esse cabrão está?! - Rugiu Brand.
- Ele estava no quarto da Kiara… mas agora já deve ter saído…
Brand não me perguntou mais nada. Saiu do quarto num passo furioso e eu levantei-me da cama logo a seguir a ele. Ajeitei o casaco de malha para me tapar mais um pouco e segui atrás do meu namorado, observando a maneira como todos os alunos ficavam a olhar apavorados para o rosto dele. Eu senti-me bem. Gloriosa.
Brand ia defender-me e Chris ia apanhar a sova da sua vida. Uau!
Segui atrás dele pelos corredores do castelo até chegarmos ao vestíbulo. Felizmente, ele estava num bom local. A divisão daria um ar muito mais emocionante à luta. Chris estava a falar com Niza e Sophie. Os restantes alunos, ao verem o ar enraivecido de Brand, perceberam logo que ia haver uma luta e foram-se acumulando em redor do centro do hall de entrada, como se formassem um círculo de espectadores.
- TU AÍ! - Berrou Brand, apontando para Chris.
Ele virou-se para olhar para o meu namorado e ficou espantado com a raiva presente no rosto dele. Mantive-me nas escadas, seis degraus acima deles, cruzando os braços e preparando-me para assistir ao melhor espectáculo do mundo.
Brand aproximou-se de Chris e, sem mais rodeios, deu-lhe um murro fortíssimo no queixo. Chris foi deitado ao chão sem sequer ter tempo para se defender. Niza guinchou histericamente. Os rapazes do 10º, 11º e 12º ano davam urros de apoio a Brand e alguns até batiam palmas. Deixei o sorriso alargar-se no meu rosto. Sophie olhou para mim com o ar mais aturdido do mundo e eu pisquei-lhe o olho provocatoriamente. Trataria dela mais tarde. Agora era a vez de Chris sofrer as consequências.
Mas ele levantou-se logo a seguir e lançou-se para Brand, esmurrando-o. E daí para a frente a luta foi tão renhida que eu me entusiasmei verdadeiramente a vê-la. Brand pontapeava e esmurrava e socava Chris em todos os lugares que apanhava e o namorado de Kiara fazia o mesmo. De repente, Ryan e Peter entraram no vestíbulo, vindos do salão de refeições, e ao verem a cena, tentaram meter-se no meio deles, mas Drake e Allan vieram logo tratar deles, e naquele momento mais dois combates começaram. Apetecia-me bater palmas e dançar de alegria mas mantive-me quieta.
Niza e Sophie gritavam histericamente, tentando fazê-los parar, mas era impossível. Os gritos, os urros e os rugidos foram-se elevando cada vez mais e de repente era como se estivéssemos no meio de uma selva, a ver o combate de animais selvagens. Brand era um tigre furioso e Chris um leão enraivecido. Pelo que me consegui aperceber, a luta estava mais a favor de Brand, o que me deixou orgulhosa.
Mas infelizmente nada pode ser como eu quero, pelo menos durante muito tempo.
- PAREM COM ISSO! - Rugiu John.
Ouviu-se uma buzina altíssima, um som ensurdecedor que fez a maioria dos alunos taparem os ouvidos com as mãos, mas eu mostrei-me impassível. Os combates pararam instantaneamente e Chris e Brand olharam para John, e eu não soube dizer qual dos dois estava mais furioso, mais desejoso de continuar a lutar.
- Vocês os seis, para o meu gabinete. IMEDIATAMENTE! - Vociferou o padrinho de Kiara.
Deu meia-volta e começou e dirigiu-se às escadas que levavam aos seus aposentos. Brand, Chris, Ryan, Drake, Peter e Allan seguiram atrás dele, coléricos, a arfar de raiva. Deixei-me ficar quieta nas escadas, a observar a cena.
Podia ter durado mais um pouco. Não me importava de ver Brand a esmurrar mais um pouco Chris. Aliás, isso até me daria prazer.
- SUA CABRA ODIOSA! - Rugiu Sophie, lançando-se na minha direcção.
Mas antes que ela pudesse dizer alguma coisa, Niza agarrou-a pela cintura e imobilizou-a.
- Pára Sophie! É isso que ela quer! Ela vai fazer os possíveis para te enervar e depois ainda vais ser castigada! PÁRA!
Sophie ainda se debateu nos braços de Niza por mais uns segundos, mas depois deu-se por vencida. Niza conseguiu acalmá-la mas lançou-me um olhar sedento de vingança, um ódio tal que me fez sentir gloriosa.
- Tu vais arrepender-te. - Ameaçou-me.
E pela primeira vez nesse dia, eu ri-me à gargalhada. A gargalhada mais divertida que eu alguma vez tinha soltado. Niza, a santinha estúpida, estava a ameaçar-me? A mim, Kalissa Jones? Oh sim, eu gostava mesmo de ver ela a tentar atacar-me. Devia ser melhor que ir ao circo.
Dei meia-volta e subi as escadas sem pressas. Os alunos ficavam a olhar para mim, chocados, mas nenhum tentou parar-me. Quando cheguei ao quarto de Brand, tranquei a porta e comecei à procura nas gavetas da sua mesa-de-cabeceira, remexendo freneticamente em tudo o que conseguia alcançar. Como não encontrei nada que me interessasse, fui à secretária e comecei a abrir e a fechar todos os compartimentos até finalmente descobrir a gaveta pequenina onde eles guardavam as seringas e a droga. Um sorriso de vitória rasgou os meus lábios. Era mesmo daquilo que eu precisava.
Tirei uma das seringas para fora e preparei a dose o mais depressa que pude. Depois deixei o casaco de malha descair-me pelos braços até cair ao chão e estiquei o braço direito, para que a zona interior do cotovelo ficasse bem visível debaixo da luz do candeeiro do tecto. Inspirei fundo para me preparar e depois espetei a seringa na veia com precisão, premindo o êmbolo. Senti a frieza da droga a entrar em mim, assemelhando-se a vidro líquido, e ri-me novamente.
Depois fui à casa de banho limpar o material que tinha usado, guardei tudo no lugar respectivo e tornei a vestir o casaco. Inspirei de felicidade e olhei através da janela para aquela tarde de chuva torrencial e trovões ameaçadores.
Nunca me tinha sentido tão bem em toda a vida.
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