terça-feira, 5 de julho de 2011

Capítulo 18


Amo-te





            Eu queria mesmo, mesmo, do fundo do meu coração, acreditar no pressentimento de Niza, mas tornou-se numa tarefa quase impossível.
            Ryan, Sophie e Peter voltaram a falar comigo da mesma maneira que o faziam antes do aniversário de Sophie. A capacidade deles para perdoar surpreendia-me. Principalmente a de Sophie. Ela era muito teimosa, mas quando sabia que estava errada, admitia o seu erro.
            Não fui às aulas o resto da tarde de segunda-feira. Fiquei na biblioteca a estudar e a resolver exercícios de preparação para os testes. Na verdade… fiquei apenas a fingir que fazia isso. Porque eu não conseguia pensar em nada além de Chris. Ele inundava a minha cabeça, cada pensamento meu era centrado nele. Tudo o resto desaparecia por mais que eu tentasse focar um assunto em especial. Dissolvia-se tudo numa nuvem de pó negro e surgia a imagem de Chris, o seu rosto furioso, e aquelas palavras que me faziam doer o coração de tal maneira que eu achava sempre que ele ia explodir.
            "Esquece-me Kiara."         
            Suspirei pela milésima vez nesse dia, e fiz com que Sophie e Niza olhassem para mim.
            Agora estávamos sentados na mesa do 11º ano, no salão de refeições, à espera que Ryan e Peter chegassem para nos irmos servir do jantar. Elas falavam baixinho sobre qualquer coisa que eu nem sabia. Não conseguia manter-me ligada à conversa delas. Só me apetecia correr para o quarto, enfiar-me lá dentro e chorar para sempre.
            Ainda não vira Chris desde que ele saíra da Sala de Convívio daquela maneira tão brusca. Nem sabia o que fazer quando o voltasse a ver. Eu sabia o que queria fazer, não o que devia fazer. Queria correr para os seus braços musculados e fortes, beijar aqueles lábios deliciosos e lindos e sentir-me protegida, completa… amada.
            "Amo-te Chris" queria sussurrar no seu ouvido e queria que ele fizesse o mesmo no meu.
            - Kiara? Estás a chorar?! - Perguntou Niza, chocada.   
            Eu nem me apercebera que o estava a fazer até ela falar. Apressei-me a limpar as lágrimas e tentei acalmar-me. Tarefa inútil, claro.
            - Talvez devêssemos falar com o Chris. - Sugeriu Sophie.
            - Não! - Respondi.
            - Porquê?
            - Porque… eu não quero que ele me perdoe por obrigação. Não… eu quero que ele me perdoe porque me quer. Se é que ele ainda me quer…
            - Claro que quer. Ninguém deixa de amar outra pessoa de um momento para o outro e só porque decide que tem de ser.
            Sorri para Niza. Ela esforçava-se tanto para me animar, para me levantar a moral, e eu estava a desperdiçar o seu esforço. Nem um sorriso de agradecimento lhe dirigia. Por isso esforcei-me por sorrir.
            - Obrigada por estarem a tentar animar-me. Mas neste momento… eu não consigo. Desculpem.
            Sophie assentiu com a cabeça e pediu a Niza que me deixasse em paz. Finalmente, alguém que dissesse isso! Era só o que eu precisava: que me deixassem sofrer em silêncio, sossegada.
            Ryan e Peter chegaram nesse momento. Eu olhei para Ryan e sei perfeitamente que ele entendeu que eu precisava dele. Mas seria abusar da sorte pedir-lhe que viesse para junto de mim, ainda por cima com os ânimos ainda tão agitados. Sophie ia chatear-se novamente e eu não a queria contra mim. Por isso desviei o olhar do meu melhor amigo e respirei fundo.
            - Vamos Kiara, tens de comer qualquer coisa. - Incitou Peter.
            Pegou-me na mão e puxou-me consigo até à mesa do buffet. Eu não tinha fome nenhuma. Não sentia fome, nem sono, nem qualquer outro sintoma normal numa pessoa normal. Tudo o que eu sentia era dor, toda acumulada numa zona do meu corpo, que latejava mais a cada segundo que passava. Eu tinha a certeza que o meu coração ia parar dali a pouco tempo.   
            - Eu vou comer apenas uma sopa. - Murmurei.
            Tirei uma tigela cheia de sopa de creme de cenoura e voltei para a mesa. Esperei que eles se sentassem junto a mim e nessa altura comecei a comer. Mas a comida não me trazia mais energias.
            - Vá lá Kiara, não podes ir tomar os comprimidos sem nada no estômago. Ainda arranjas um problema grave. - Aconselhou Niza.
            - Eu sei… mas isto chega-me. - Além de que eu já tinha muitos problemas graves.
            Quando acabei de comer a sopa eles ainda estavam no prato principal. Mas eu não queria ficar mais tempo com eles, e nem pensar em ir para a Sala de Convívio. Estava na hora de correr para o meu refúgio, esconder-me de tudo e todos e finalmente quebrar as barreiras do controlo. Precisava de fugir e de chorar o quanto me apetecesse. Era uma sensação que me consumia todos os outros desejos.
            Fugir. Esconder-me. Chorar pela noite dentro.
            - Eu vou para o meu quarto.
            - Não queres ficar connosco na Sala de Convívio? - Insistiu Sophie.
            - Não. Quero… dormir. Estou cansada.
            E felizmente nenhum deles tentou persuadir-me a desistir dessa ideia. Despedi-me deles e segui calmamente até ao meu quarto. Não tinha força para correr.
            Quando cheguei à escadaria que dava acesso aos dormitórios femininos, vi Chris a descer a que vinha dos quartos dos rapazes. Engoli em seco quando o vi. Apeteceu-me parar à sua frente, só para ver o que ele fazia, se me ignorava e esperava que lhe saísse do caminho ou se passaria por cima de mim. Mas entretanto ele olhou para mim. Um olhar frio, duro, cru e sem qualquer pontada de emoção. O olhar de uma pessoa consumida pelo desgosto. Foi um olhar curto, mas potente o suficiente para me fazer desatar a chorar instantaneamente. E ele continuou em frente, seguindo para o salão de refeições, ignorando o estado em que me deixara. Quando ele saiu do meu campo de visão, apelei às minhas últimas forças e corri para o meu dormitório, à minha velocidade máxima. Quando lá cheguei, fechei a porta com força e lancei-me para cima da cama. Enterrei a cara na almofada e gritei do mais fundo do meu ser. Gritei, gritei e gritei mais ainda, até a minha garganta começar a doer, até me sentir tonta, até a minha cabeça latejar tanto que parecia ir explodir. Só nessa altura me virei de lado na cama, me enrolei numa bola e comecei a chorar como uma fonte aberta.
           

            Na sexta-feira, para meu desespero total, as coisas ainda não se tinham alterado.
            Aquela tinha sido, a seguir à semana da morte dos meus tios, a pior da minha vida. Eu não conseguia arranjar forças para fazer nada. Os meus dias eram passados a tentar não desatar a chorar. Tive pesadelos quase todas as noites, mas agora não eram só com Brand: eram com Sophie, com Ryan e até com Chris. E tal como nos pesadelos anteriores, os meus desejos surpreendiam-me.
            No pesadelo de quarta-feira, eu sentia um ódio mortal por Sophie. Queria matá-la, destroçá-la, feri-la o mais que pudesse. No pesadelo em que lutei com ela, acordei aos berros tão histéricos que as minhas duas colegas de dormitório não foram as únicas a vir para junto de mim: Ryan e Peter correram para o nosso quarto para entenderem o porquê de eu estar a gritar, e metade do colégio estava no corredor à escuta da explicação.
            Mas eu não conseguia parar de gritar. Estava assustada, suada por todos os lados, e quando Sophie se sentou à minha frente a tentar acalmar-me, eu gritei mais ainda e Ryan teve de a levar para fora do quarto. Peter acabou por me dar um calmante e só assim eu pude descansar. O meu padrinho veio ao quarto pouco tempo depois mas eu já estava a dormir, e foi Niza que me contou, no dia seguinte, que ele ficara muito preocupado e que estivera a explicar aos restantes alunos que eu tivera apenas um pesadelo.
            No entanto, eu não sentia que fosse apenas isso.
            Era uma sensação que crescia dentro de mim, a cada novo pesadelo se tornava mais forte: não eram apenas maus sonhos. Pareciam demasiado reais. As sensações eram tal e qual como se eu estivesse lá naquele preciso momento. A minha maneira de pensar durante os pesadelos surpreendia-me mais que tudo. Eu nunca seria capaz de odiar Sophie ou Niza daquela maneira, nem amar Brand com tanta necessidade, nem sequer querer usar Ryan a meu bel-prazer. Havia algo de demasiado estranho em tudo aquilo…
            Mas também não conseguia pensar muito nisso enquanto estava acordada. O facto de estar sempre a cruzar-me com Chris e a vê-lo ignorar-me, tratar-me abaixo de cão, era pior que qualquer pesadelo. Niza e Sophie sabiam que eu estava prestes a chegar ao limite. Não ia aguentar muito mais tempo. E por mais que elas falassem com Chris, ele não cedia aos pedidos delas.
            Embora eu tivesse voltado às aulas, não conseguia estar com atenção em nenhuma delas e os professores desistiram de tentar que eu me interessasse por algo que eles dissessem. John também parecia ter-se resignado com o facto de eu ter chegado ao estado de morta-viva-deprimida. 
            No fim-de-semana, foi mais complicado ocupar o tempo. Acordei na manhã de Sábado às quatro da manhã e não consegui voltar a adormecer, mas não podia fazer muito barulho para não acordar Niza e Sophie, que mereciam dormir mais um pouco. Por isso fiquei deitada de barriga para cima na cama durante mais de cinco horas seguidas, e mesmo que não tentasse pensar em Chris, era impossível, por isso nem tentei fazer isso.
            O dia foi passado a estudar com o meu grupo, a ver filmes na Sala de Convívio e a jogar às cartas. Niza, Sophie, Peter e Ryan meteram na cabeça que animar-me era uma missão tão importante que anulava qualquer outra que aparecesse entretanto. Custava-me desmoralizá-los da maneira que fazia todos os dias. Eles tentavam fazer-me sorrir a todo o momento e eram sempre mal sucedidos. Porque eu não conseguia meter naquelas cabeças duras que não estava em estado de sorrir.
            O Domingo passou da mesma maneira que o Sábado, com a diferença que à tarde, em vez de ter ido ver um filme com eles, fui dar um passeio pelo bosque que circundava o colégio. A neve já estava quase toda derretida, mas o frio e a chuva não abrandavam. E embora tenha levado o meu casaco mais quente e o cachecol, assim que passei pelas portas de entrada do castelo comecei logo a tremer de frio. Mas nem isso me fez parar.
            Eu precisava de estar realmente sozinha. E o meu quarto deixara de ser um esconderijo. Era um vaivém de gente a sair e a entrar.
            Desde quarta-feira que toda a gente parecia super preocupada comigo. Até mesmo os alunos que eu não conhecia e com os quais nunca falara antes me vinham cumprimentar e perguntar se eu estava bem. E eu respondia sempre a todos que estava maravilhosamente, que tinha sido apenas um pesadelo e que me assustara a valer, e eles acreditavam todos. Ainda bem, porque se algum tivesse o azar de insistir mais que uma vez, eu passava-me da cabeça.
            Eles não eram mal-educados e eu não queria ser bruta com eles, muito menos com as crianças do 5º ano, mas não tinha paciência para perguntas, para toda aquela azáfama à minha volta. Há muito tempo que eu não sentia um desejo tão forte de poder tornar-me invisível. Naqueles dias, era tudo o que eu mais queria. Poder ficar invisível.
            Passei a tarde de Domingo escondida na clareira da árvore velha, deitada num dos ramos grossos, e fiquei encharcada até aos ossos mas não me importei. Era ali que eu queria estar. Deixei-me descansar, sem ouvir nenhuma voz além da de Chris na minha cabeça. Tudo à minha volta era silencioso, tão belo que até custava a acreditar.
            Com a Primavera a aproximar-se lentamente, a clareira iria florescer em beleza e vida, e voltaria a ser um lugar mágico, o meu preferido no castelo.
            Mas a vida não podia parar. Quando era quase horas de jantar, fiz o caminho de regresso ao castelo e preparei-me para enfrentar novamente a multidão de rostos preocupados, ansiosos e desconfiados.
            Quem me dera poder desaparecer…


            A minha nova rotina super deprimente só mudou, finalmente, na sexta-feira seguinte, dia 10 de Fevereiro. Quando acordei nessa manhã, não pensei que as coisas se fossem alterar. Levantei-me e encaminhei-me para a casa de banho, sempre a pensar no dia terrível que me esperava, e comecei a sentir saudades da minha cama confortável apenas cinco minutos depois de a ter deixado. Tomei o meu duche matinal, vesti-me e arranjei-me para o dia de aulas e esperei que Niza e Sophie ficassem prontas para podermos ir tomar o pequeno-almoço. Niza parecia especialmente alegre nesse dia, e eu teria aceitado parte daquela felicidade pura, se conseguisse fazer isso.
            - Kiara, eu sei que hoje as coisas vão mudar. Prometo-te.
            - Não digas isso. A sério, não quero apanhar mais desilusões nem quero que as apanhes também. - Respondi.
            Mas ela não me ligou nenhuma. Quando Sophie acabou de se preparar, arrastou-me consigo até ao salão de refeições e sentámo-nos na mesa do 11º ano, à espera de Ryan e Peter para podermos tomar o pequeno-almoço.
            Embora eles continuassem tão próximos de Chris como o eram dantes, a sua necessidade de estar perto de nós era maior do que aquela que sentiam por estar junto dele. Além de que, segundo Peter, Chris queria mesmo estar sozinho. Como eu entendia o seu desejo!
            Tomámos o pequeno-almoço como em todas as outras manhãs. Eu mantive-me calada, afastada da tagarelice pegada dos meus amigos, tentando não desesperar e não correr para a clareira da árvore velha. Estar naquele lugar deixava-me muito mais calma.
            As aulas da manhã foram iguais às dos restantes dias. Niza e Sophie esforçavam-se por me fazer entender a matéria que os professores explicavam e à qual eu não prestava atenção nenhuma. A minha cabeça só conseguia permitir-se focar num assunto de cada vez, e o único assunto que não me abandonava cada pensamento era Chris.
            A hora de almoço dessa sexta-feira foi particularmente torturante. Eles queriam animar-me mas tínhamos testes na semana seguinte, por isso teríamos de estudar em todos os tempos livres e não tínhamos tempo para ver filmes nem jogar às cartas ou ouvir música. E embora eu não quisesse resolver exercícios de Matemática, Ryan incentivou-me a aplicar-me nos estudos.
            - Mesmo que não estejas com atenção nas aulas, os professores serão obrigados a dar-te positiva se fizeres todos os trabalhos de casa e tirares boas notas nos testes.
            Eu sabia que ele tinha razão. E nem pensei em afastá-lo quando se sentou junto a mim nessa hora livre entre as aulas. Sophie olhou fixamente para mim e para ele e depois sorriu. Ela parecia estar a adaptar-se à minha união com Ryan. Eu julgava que o meu melhor amigo tivesse falado seriamente com a namorada, explicando-lhe melhor a minha situação e o que nos unia. Eu não me imaginava sem Ryan ao meu lado e Sophie estava a aceitar isso muito bem, numa postura muito compreensiva. Eu adorava isso nela, além de muitas outras coisas.
            Por isso deixei que Ryan se instalasse no sofá ao lado do meu e que rodeasse os meus ombros com o seu braço enquanto me ajudava a estudar para Biologia e Geologia. Fazia-me perguntas e eu respondia, sem grande entusiasmo claro. Mas a paciência e a teimosa pareciam ser características que ele partilhava com Sophie. Não se deu por vencido com os meus suspiros enfadados e tentou sempre ajudar-me no que eu não percebia bem.
            Esforcei-me por lhe agradar, por acertar nas perguntas. Ryan era a única pessoa capaz de me acalmar naquele tipo de situações. E a sua proximidade, tão bem-vinda, parecia aquecer-me por dentro, fazer-me sentir melhor. Eu não queria que ele saísse de junto de mim. E se para isso tivesse de responder às suas perguntas, então eu falaria durante o resto do dia.
            Infelizmente, tivemos de voltar às aulas da tarde. Nessa semana, as aulas de Educação Física não tinham corrido particularmente bem. Eu não conseguia marcar nenhum cesto - estávamos agora a treinar basquetebol - e eram poucas as pessoas que me passavam a bola. Mas até era melhor assim. Se me deixassem sossegada no meu canto, tornariam tudo mais suportável.
            No entanto, essa aula não deixava de ser a mais difícil de aguentar.
            O professor parecia fazer de propósito, e colocava-me sempre na equipa de Chris. E apesar de eu estar numa ponta do campo e ele na outra, era impossível não passarmos um pelo outro de vez em quando. Cada vez que ele se aproximava e ficava a menos de três metros de mim, eu julgava que fosse ceder à pressão e desatar a chorar, ou então que a minha cabeça explodiria de tanta dor. Mas ele tornava a afastar-se, driblando a sua bola para longe, e eu conseguia recuperar o auto-controlo.
            O dia chegou ao fim, para minha fraca satisfação. Despedi-me de Niza e Sophie e corri até ao nosso quarto para tomar banho antes delas. Eu queria ir a um sítio. Não tinha fome, logo, nem sequer chegaria a ir para o refeitório e fingir que me conseguia aguentar sem chorar à frente dos meus amigos. Ryan, principalmente, entendia que tudo o que eu mais precisava era estar sozinha e chorar e soluçar até me sentir melhor.
            Por isso, quando acabei de tomar banho, sequei o cabelo com a toalha e vesti a roupa mais quente que tinha. Calcei os ténis e enrolei o cachecol em volta do pescoço. Depois saí do quarto e atravessei o corredor o mais depressa que pude. Desci a escadaria e abri a porta de entrada principal, saindo para a escuridão daquela noite gélida. Não sei bem como, mas consegui não me cruzar com nenhum amigo ou conhecido que me pudesse perguntar onde eu ia àquelas horas.
            Desci a escadaria de basalto no exterior do castelo e dirigi-me ao atalho ladeado por pinheiros e abetos. O chão, feito de pedrinhas pequenas, formava uma espécie de passadiço que nos levava directamente até ao pavilhão coberto da Blackstone Private School, mas não era para lá que eu me dirigia. Quando me afastei o suficiente do colégio, segui para a imensidão de árvores que rodeava o colégio e formava o bosque verdejante, e embora estivesse um frio quase surreal, eu não parei até estar suficientemente longe.
            A noite tinha caído como um manto negro mas eu não sentia medo. O silêncio era adorável. O chão húmido era confortável. As árvores que me rodeavam, os troncos caídos, os ramos pendentes e as incontáveis folhas que se agitavam com a brisa suave pareciam dar-me as boas vindas. Um sorriso triste despontou dos meus lábios. Era ali que eu queria estar.
            Segui calmamente até à clareira da árvore velha. Aquele lugar era um verdadeiro talismã, com um poder diferente do de Ryan ou Chris. Era uma espécie de templo de descanso, onde podíamos pensar em qualquer assunto sem outras interferências pelo meio.
            Quando cheguei ao pequeno círculo que formava a clareira, com o tecto em forma de abóbada, formado pelos ramos e pelas folhas entrelaçadas das árvores, senti um suspiro de alívio a irromper pela minha garganta acima. E quando este se escapou dos meus lábios, activou dentro de mim um desejo enorme de mostrar os meus sentimentos, o que ia dentro de mim. Os meus olhos encheram-se de lágrimas que começaram a deslizar pelo meu rosto. Arrastei-me - sim, porque eu mal conseguia manter-me de pé - até à velha árvore. Nunca soube quantos anos ela tinha, mas de certeza que eram muitos. Sentei-me numa das suas grossas raízes que saíam da terra e coloquei as costas de encontra o tronco espesso. Nesse instante, começou a chover imenso. Fechei os olhos e inspirei aquele cheiro delicioso, inebriante, de chuva misturada com madeira húmida. Era simplesmente irresistível. Deixei-me ficar ali a ouvir a chuva cair à minha volta, e apesar de estar no meio de um cenário inóspito, senti-me bem, protegida. Chorei durante horas seguidas. Não se ouvia mais nada à minha volta além do ruído da chuva, que caía cada vez com mais intensidade. Eu tremia de frio, os meus cabelos escorriam água a potes, mas eu não sairia dali por nada desse mundo.
            O tempo passou. Eu continuei a chorar. A chuva não abrandou. A escuridão tornou-se cada vez mais cerrada.
            De súbito, ouvi algo diferente. Não ousei abrir os olhos. Mas os meus instintos de sobrevivência entraram em alerta. Era uma reacção involuntária, acontecia sempre naquele tipo de situações. Como eu não abria os olhos, o outro sentido apurou-se instintivamente. A audição tornou-se mais apurada até distinguir que o som era o de passos. Eu era capaz de ouvir as folhas secas a estilhaçarem-se sob os pés de quem se estivesse a aproximar. Esforcei-me por ouvir ainda melhor e distingui o que me pareciam ser passos humanos. Não eram apressados. Aliás, quem quer que viesse ali, sabia que me encontraria. Não tinha pressa em chegar pois sabia o que o esperava. A confiança naqueles passos era característica de uma única pessoa. A calma com que se aproximava de mim só podia pertencer ao rapaz mais especial do mundo. Mesmo assim, não abri os olhos. Continuei com a cabeça encostada ao tronco da árvore e mantive as respirações regulares. Os passos aproximavam-se mais e mais, o meu coração começou a trabalhar mais depressa, e só nessa altura me apercebi do torpor que revestia o meu corpo. Estar tanto tempo sentada naquela raiz de árvore, à chuva cerrada, deixara-me parcialmente petrificada.
            Os passos pararam abruptamente. Tentei escutar melhor e entender se a pessoa tinha parado de andar ou se a minha audição me estava a pregar uma partida. Mas não, ele tinha mesmo estacado, possivelmente à minha frente. Deixei o sentido da audição descansar e apurei o do olfacto. Tentando ignorar o cheiro delicioso da chuva e da madeira, concentrei-me em captar o perfume dele, o que não se tornou difícil. Sim, ele estava realmente parado à minha frente, a sua essência tão tentadora circundava o ar à minha volta.
            Então, finalmente, eu abri os olhos.
            Deparar-me com a sua figura era muito mais chocante que ouvir os seus passos ou cheirar o seu aroma natural. Era algo definitivamente mais forte. Engoli em seco quando comecei a examinar o seu corpo esbelto, desde os pés à cabeça. Concentrei-me melhor no seu rosto.
            O cabelo estava ensopado, como o meu, pingando sem parar. Os olhos dele, azuis como safiras, brilhantes naquela noite escura, pareciam ansiosos. As longas pestanas negras estavam decoradas com gotas de chuva, o que por momentos me deu a impressão de que ele estivesse a chorar, mas eu sabia que não. Era apenas chuva, ele não estava minimamente triste. Os seus belos lábios carnudos estavam firmemente cerrados um contra o outro. E quando eles se abriram, toda eu entrei em alerta, esperando o que ele iria dizer-me.
            - Kiara… o que fazes aqui?
            Eu quase perdi o fôlego quando ele me chamou assim. O meu nome, proferido por aqueles lábios, fez-me arrepiar. Apetecia-me saltar dali, aninhar-me nos seus braços e deixar que ele me beijasse para sempre. Mas sabia que isso não passava de um sonho que podia nunca mais se tornar realidade.
            - Vim dar uma volta. - Murmurei, encolhendo os ombros.
            Que resposta tão parva de se dar… e ainda assim, era a verdade.
            Ele aguardou durante uns longos minutos, sem parar de olhar para mim, até voltar a falar. A sua voz era um misto de hesitação, preocupação e incredulidade.
            - Estás encharcada. Vais ficar doente se não vieres para o castelo.
            - Eu já estou demasiado doente para me preocupar com uma gripe.
            - Tu até podes não te preocupar, mas a Niza e a Sophie não ficariam nada contentes se tivesses de ficar na cama.
            - Eu sei disso. Mas não quero saber do que elas pensam. Quem eu quero que se importe comigo não o faz.
            As lágrimas voltaram a descer pelo meu rosto, e vi os olhos de Chris semicerraram-se ao ver-me chorar. Devia entender que era muito fácil para ele levar-me àquele ponto.
            Eu não esperava o que ele fez de seguida.
            Agachou-se à minha frente, tão próximo de mim que era praticamente impossível não nos tocarmos, e fundiu o olhar gélido com o meu. Quando fez isso, o gelo derreteu-se totalmente, tornando-se num lago azul-claro, profundo e demasiado belo. O azul safira mais lindo do mundo.
            - Eu preocupo-me contigo.
            Eu não queria que ele dissesse aquilo. Ia dar-me esperanças que eu não conseguiria recusar. Quando ele voltasse a ir embora, e tornasse a ignorar-me, eu cairia numa depressão ainda mais profunda. Não, eu não podia acreditar nele. Estava a mentir-me.   
            - Não, não preocupas. - Sussurrei.
            - Então como explicas que tenha saído do castelo a meio da noite e me tenha embrenhado neste bosque, onde me podia perder, para te vir procurar ao único lugar que ainda não tinha revistado?
            Desviei o olhar dele para o chão e solucei. Se era verdade… por que é que ele tinha feito isso? Apenas para me obrigar a voltar e a não adoecer? Ele odiava-me. Não suportava ver-me à frente. O que é que fazia ali tão próximo de mim?
            - Não sei porque vieste, mas eu vou ficar aqui.
            - Porquê?
            - Aqui é o meu lugar. - Suspirei.
            Eu tinha razão nisso. Naquela clareira encantada eu podia ser quem quisesse, mostrar os meus sentimentos mais profundos em vez de os reprimir noite e dia. Podia gritar, espernear, chorar, rir, dançar, cantar, ou simplesmente estar em silêncio o tempo que me apetecesse, porque não havia ninguém para julgar a maneira como eu agia.
            - Kiara… este não é o teu lugar. Tu pertences ao castelo, junto dos teus amigos, do teu padrinho e das pessoas que gostam de ti.
            - Não consigo estar lá.
            Ele hesitou por uns momentos e depois estendeu a mão, sempre a recear a minha reacção, até a pousar na minha maçã do rosto do lado direito. O seu toque inesperado fez um arrepio subir-me pela coluna. Olhei para ele e vi o brilho cristalino naqueles olhos implorantes.
            - O teu lugar é comigo. - Murmurou numa voz irresistível.
            Sim. Isso era verdade. Eu só podia ficar com ele, era a minha razão para permanecer naquele colégio. Sem ele eu não estava completa. Faltava-me metade do meu ser. Mas a partir do momento em que ele não me queria junto de si, não podia fazer mais nada.
            - Não. Deixou de o ser no momento em que me pediste que te esquecesse. - Balbuciei, tentando conter os rios de lágrimas que brotavam dos meus olhos doridos.
            - Eu errei. Só agora é que percebi. Sei que demorei muito tempo mas… eu não sabia como reagir. Estava confuso e tudo me parecia tão impossível de aguentar…
            - É assim que me tenho sentido nestas últimas duas semanas. Achas que foi fácil estar longe de ti a todo o momento?
            E desatei num pranto cerrado. Chris esperou uns minutos e depois puxou-me para os seus braços musculados. Eu não sabia o que fazer. Não reagi. Deixei que ele me apertasse contra si, me embalasse e beijasse avidamente os meus cabelos. Não me mexi, não o afastei nem me aproximei mais dele. Eu não era capaz de obrigar o meu corpo a fazer o que quer que fosse. Chris tinha-me deixado num estado parecido ao de vegetal. Limitei-me a fechar os olhos e a respirar o mais que podia o perfume delicioso dele.
            - Não aguento ver-te neste estado. Talvez me vá magoar pelo que vou fazer mas… eu quero estar junto a ti. Não consigo manter-me mais tempo afastado. Tu és tudo para mim, Kia.
            Os meus olhos abriram-se bruscamente.
            Aquele termo carinhoso, mais forte que tudo o resto, foi a gota de água. Uma pessoa aguenta até um certo ponto, mas depois deixa de conseguir suportar tanta dor, tanta emoção. O meu coração latejou de sofrimento quando ele me chamou como costumava chamar quando ainda namorávamos.
            - Não me digas isso.
            - É a verdade. Eu nunca devia ter-me afastado de ti, nunca devia ter desconfiado que me andavas a trair com o Ryan. Fui um imbecil por te tratar daquela maneira. Eu sei. Tudo o que peço é que me perdoes. E se isso for demasiado para ti… eu entendo.
            Eu não era capaz de falar. A minha memória estava a lembrar-se de todos os momentos em que eu passara por ele sem que ele me olhasse, de todas as vezes que gritava por ele durante a noite sem que ele viesse, de todos os olhares sem resposta que lhe lançava, e principalmente da última conversa que tivéramos, aquela em que ele me pedia que o esquecesse.     
            Ele tinha mudado de opinião, assim tão de repente? Deixara de me odiar? Por que é que me queria novamente junto de si?    
            - Kia… eu amo-te. A sério. Não aguento mais estar longe de ti. Por favor… perdoa-me o que te fiz.
            Olhei para ele, incrédula de mais para falar. E se ele estivesse a dizer a verdade? E se ele quisesse mesmo voltar para mim? O que é que eu faria?
            - Tu… amas-me? - Gaguejei, sem conseguir acreditar.
            Ele não respondeu por palavras. O sorriso que me dirigiu, tão potente como uma onda de tsunami numa ilha quase deserta, como um fogo que consumisse toda uma floresta, foi o suficiente. Aquele sorriso que ele só fazia para mim. Eu sabia que era assim. Nenhuma rapariga no mundo teria direito a ver aquele mesmo sorriso, que era só meu.
            - Eu também te amo. - Segredei.
            Ele aproximou-se mais de mim, até as nossas respirações se fundirem como se fossem apenas de uma pessoa. Os seus olhos cravaram-se mais fundo nos meus como adagas espetadas no meu coração.
            - Eu sei. Jamais duvidarei disso. Por favor… será demasiado pedir uma nova oportunidade?
            Nunca. Nunca seria de mais. Eu iria sempre dar-lhe uma nova oportunidade, uma e outra vez, mesmo que ele me fizesse sofrer até ao limite da exaustão. Porque eu sabia que lá no fundo ele me amava tanto quanto eu o amava. E isso era o suficiente.
            - Eu perdoo-te. Mas… também te peço que me perdoes.
            Ele sabia perfeitamente o porquê de eu estar a pedir-lhe perdão. O sorriso alargou-se mais, parecendo que todo o seu belo rosto fora engolido por ele. Mas não importava. Aquele sorriso era o espelho da felicidade do meu amor e para mim era o suficiente.
            - Ela não vai conseguir vencer-nos. Prometo. - Murmurou ele.
            - Ela é demasiado forte…
            - Nós somos mais, juntos.
            - Ela vai magoar-te. - Sussurrei-lhe.
            - Não, contigo ao meu lado.
            - Ela vai virar-te contra mim uma e outra vez.
            - Não deixarei que ela torne a fazê-lo.
            Suspirei. Não havia mais nenhum argumento. Rendi-me à promessa de felicidade dele. Mesmo que fosse mentira e que dali a uns tempos ela tornasse a separar-nos, eu tinha de aproveitar esta pequena parte de alegria. Porque se eu rejeitasse o seu pedido de lhe dar uma nova oportunidade… eu morreria nesse momento.
            - Vamos lutar contra ela. Outra vez.
            - E para sempre.
            E então ele beijou-me. Não foi um beijo rápido, furioso ou violento. Começou devagar, com ele apenas a encostar os lábios aos meus. Depois, lentamente, eu retribuí a sua carícia até que estava a enrolar os braços em volta do seu pescoço e a puxá-lo mais para mim. Ele enlaçou-me pela cintura e beijou-me mais intensamente. Fechei os olhos e apaguei da minha cabeça todas as imagens destrutivas dos últimos treze dias. Toda a tristeza que eu sentira durante esse tempo foi milagrosamente apagada pelo beijo de Chris.
            Ele deitou-me para trás, no chão ensopado pela chuva, e deitou-se sobre mim. E eu fiquei a olhar para aquele rosto de deus, sem querer acreditar que a minha outra metade voltara ao seu devido lugar. Chris sorriu-me e beijou-me novamente.
            Era por isto que eu continuaria a dar-lhe oportunidades atrás de oportunidades: porque éramos mais fortes juntos. Como o símbolo do infinito, o laço que não pode ser quebrado. Ele era uma metade e eu outra. Se uma se afastasse a outra não fazia qualquer sentido sozinha.
            - Promete que vamos ficar juntos, mesmo que ela tente separar-nos outra vez. Promete que vais confiar em mim para sempre. Eu não seria capaz de te mentir. - Murmurei, enquanto ele me beijava o pescoço docemente, para depois os seus lábios subirem de novo e se unirem aos meus.
            - Prometo. Não tornarei a duvidar de ti. É a dúvida que faz nascer a raiva, e é a raiva que está na base dos ciúmes e da desconfiança. E são os ciúmes e a desconfiança que fazem a Kalissa ganhar força. Nós vamos vencê-la. Eu prometo-te isso, Kia.
            Olhei fundo nos seus olhos azuis-claros, e percebi que era mesmo verdade. Meu deus… como podia existir alguém como ele? Tão bom, tão inacreditavelmente real?
            - Amo-te. - Suspirei, e voltei a beijá-lo, enquanto a chuva caía impiedosa sobre nós e nos ensopava até aos ossos.
            Eu já não sentia frio. O corpo de Chris aquecia-me e a presença dele fazia-me sentir completa.
            - Também te amo.

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