terça-feira, 5 de julho de 2011

Capítulo 17


Confiança





            Abri os olhos, sem saber bem o que se tinha passado. Olhei à minha volta e descobri que estava no meu quarto, deitada na minha cama. Esperei uns segundos antes de me mexer mais. Depois tornei a fechar os olhos e procurei dentro da minha mente por Kalissa. Ela estava lá, escondida atrás da parede de tijolos, que embora estivesse muito fraca, ainda a conseguia manter afastada. Aquilo espantou-me. Eu tinha desistido. Por que é que ela não aproveitava a oportunidade e me controlava, apoderando-se do poder do meu corpo para sempre?
            Ah sim: porque se eu continuasse a viver sofria mais, e ela queria ver-me sofrer até ao limite da exaustão.
            Eu achava que já tinha chegado a esse limite. Ela devia ter outro plano qualquer na manga. Suspirei fundo e depois abri os olhos. Então, eu teria de continuar a lutar. A viver durante mais uns tempos. Mesmo que o meu mundo tivesse desmoronado à minha volta, eu continuava viva.
            Ninguém consegue aguentar tanto assim.
            Preparava-me para me levantar, quando ouvi algo diferente. Era uma respiração. E estava próxima de mim. Virei a cabeça para a direita e deparei-me com Niza, sentada de pernas cruzadas em cima da sua cama, com os cotovelos apoiados nos joelhos e uma expressão cautelosa no rosto. Os seus olhos verdes cintilantes estavam semicerrados de desconfiança. Eu não disse nada, limitei-me a olhar para ela sem saber como reagir. O que podia dizer-lhe? Ela também me odiava.
            Ao ver que eu já tinha acordado, ela acendeu a luz do candeeiro da mesa-de-cabeceira, sem deixar de olhar para mim, e quando falou, a sua voz era grave e hesitante.
            - És a Kalissa?
            - Não. Sou a Kiara.
            Ela resmungou qualquer coisa muito baixinho, mas não parecia querer sair dali. Eu não sabia bem como, mas conseguia sempre arranjar coragem naquelas situações. Era algo que me espantava sobremaneira.
            - Niza… foste tu que me trouxeste para aqui?
            - Fui. Estavas caída no corredor dos dormitórios dos rapazes.
            - Eu sei.
            - Porque é que estavas lá?
            - Desmaiei, acho eu. - Murmurei.
            Virei-me de lado na cama para poder olhar melhor para ela. Niza estava a ganhar um brilho mais furioso no olhar, mas não a fúria explosiva de Chris. Era uma raiva calma, potente e profunda, flamejante que me dilacerava por dentro, porque Niza era, a seguir ao Chris, a pessoa que eu mais odiava ver naquele estado.
            - Também me odeias, não é?
            Ela desviou o olhar do meu, como se não conseguisse enfrentar-me.
            - Responde. - Sibilei.
            Aquilo estava a custar-me mais do que eu podia imaginar. Senti-me desejosa de voltar a desmaiar. Não queria continuar a olhar para Niza e a ver a raiva nos seus olhos.
            - Eu não sou capaz de te odiar. - Murmurou ela, mas a sua voz não perdeu o tom maldoso.
            Mantive o olhar cravado no seu. Tudo à minha volta podia desmoronar-se, mas eu continuaria a olhar para ela. Porque Niza seria sempre a minha melhor amiga, mesmo que naquele momento nem ousasse olhar para mim. E eu ficaria do seu lado, ajudá-la-ia, mesmo que ela não me fizesse o mesmo naquele momento.
            - Niza… preciso de acredites no que te vou dizer.
            Ela olhou finalmente para mim, com a incredulidade bem forte nos seus olhos semicerrados.
            - Tu queres o quê?
            - Explicar-te o que aconteceu. E quero que acredites em mim. Porque não vou suportar que me digas que sou uma cabra, como o Chris fez. - Sussurrei, com o nó na minha garganta a apertar imenso e a dar um tom desesperado à minha voz.          
            - Ele tem razões para te chamar isso! O que fizeste ontem à noite não se faz! - Rosnou ela, ficando novamente irritada.
            - Não fui. Foi a Kalissa. - Suspirei.
            Já tinha dito aquilo tantas vezes, e mesmo assim ela não parecia acreditar em mim, tal como eu esperava.
            - Niza, eu juro que não fui eu. Como é que podes pensar que trairia o Chris, logo com o Ryan? Eu amo o Chris!
            - Não era a Kalissa que estava no controlo. Nós teríamos notado se fosse.
            - Não, não teriam. Vocês não se aperceberam porque ela consegue mentir muito bem. E fez-se passar por mim para vos enganar e para se vingar da Sophie.
            Segundos depois, os olhos da minha melhor amiga arregalaram-se de espanto. Ela estava a começar a acreditar, tal como eu desejava que ela fizesse. Porque por mais ameaçadora que Niza tentasse parecer, eu era sempre capaz de ver os seus verdadeiros sentimentos. E naquele momento, ela queria ficar do meu lado, uma parte dela queria isso, mas a outra ansiava por me insultar mais e mais.
            - Estás a mentir. - Murmurou ela, atónita.
            - Não estou não. Eu prometi que nunca mais te mentiria.
            Ela não tinha como negar isso. Baixou a cabeça e não se atreveu a dizer nada. Eu esperei que ela digerisse a informação e quando voltei a falar, fi-lo num tom muito mais calmo e amoroso, porque ela não merecia que gritasse com ela.
            - Niza, vá lá… és a minha única esperança. Preciso de ti.
            - Não… ela não conseguia ter fingido o dia todo… ela até abraçou e dançou com a Sophie! A Kalissa verdadeira nunca faria isso!
            - Faria sim. - Cheguei-me mais para ela, ansiosa de a fazer acreditar em mim. - Ela é… forte e muito determinada. Quando mete uma coisa na cabeça não a tira de lá. E ela queria vingar-se da Sophie.
            - Sim… isso eu sei…
            - Então pensa um bocadinho. Encaixa tudo. Ela escolheu o aniversário da Sophie para se vingar da pior maneira que encontrou: usando o namorado dela, o Ryan. A Sophie não perdoa traições. Por isso… o plano era perfeito.
            As lágrimas queriam soltar-se dos meus olhos. Eu estava tão descontrolada naquele momento que não sabia se devia chorar ou gritar. Embora no dia-a-dia conseguisse pensar em muitas coisas ao mesmo tempo, naquele instante todos os meus pensamentos estavam centrados em Niza.
            Ela demorou algum tempo até se render. Mas no fim, a nossa amizade foi forte de mais. Niza levantou os olhos para os cravar nos meus e engoliu em seco, parecendo arrependida.
            - Pois. Já percebeste. - Sussurrei-lhe.
            - Nem consigo acreditar.
            - Eu também não quis acreditar. E quando acordei deitada ao lado do Brand tudo se tornou pior.
            - Então foi para lá que a… Kalissa foi ontem à noite?
            - Sim, deve ter ficado lá com ele depois de me ter destruído a vida.
            Suspirei. Era isso mesmo que ela tinha feito. E agora? Eu até podia convencer Niza, mas Sophie estaria demasiado colérica para sequer olhar para mim, quanto mais acreditar na verdade.
            - Kiara… tens de entender uma coisa: ela enganou-nos a todos. Nem sei se estou a fazer bem em confiar em ti, mas parece-me a atitude certa a tomar…
            Levantou-se e veio sentar-se ao meu lado na cama, mas sempre com movimentos hesitantes, como quem não sabe se está a cometer um erro.
            - Podes ficar aqui à vontade, não te vou morder. - Resmunguei.
            Ela esboçou uma amostra de sorriso compreensivo e foi o bastante para fazer com que eu desatasse a chorar. Rastejei até ela, lançando os braços em volta do seu pescoço e abracei-a com todas as minhas forças. Passado algum tempo, ela abraçou-me também.
            - Tem calma. Eu confio em ti. - Murmurou ao meu ouvido.
            - Eu não sei o que fazer… só me apetece morrer…
            - Não vais morrer coisa nenhuma! Eu vou ajudar-te.
            Fixei o meu olhar no dela. Como era possível que ela dissesse aquilo? Eu estaria a sonhar? Iria acordar dali a poucos segundos e perceber que ela ainda me odiava?
            - Estás a falar a verdade?
            - Sim. Vou contar o que aconteceu à Sophie, ao Ryan e ao Peter. Presumo que já tenhas falado com o Chris.
            - Sim. - Balbuciei.
            As lágrimas desceram mais depressa pela minha face e Niza limpou-as, mantendo sempre aquele sorriso encorajador. Deixei-me ficar em silêncio a olhar para ela.
            Sophie podia ter uma força enorme, explosiva, não ter medo de nada, enfrentar o perigo de cabeça erguida. Mas Niza também era muito forte, à sua maneira. Quando alguém de quem ela gostava estava mal, ela era capaz de deixar as suas preocupações de lado e ajudar essa pessoa. Naquele instante, ela podia estar preocupada com muitas outras coisas, mas ainda assim queria ajudar-me. Sorri e aninhei-me melhor nos seus braços.
            - Perdoa-me por tudo o que a Kalissa te fez.
            - Ela vai provar do seu próprio veneno um dia, não te preocupes.
            - Não quero que ela vos magoe mais vez nenhuma. - Murmurei.
            Niza assentiu com a cabeça e tirou-me o cabelo do rosto, como uma mãe faria a uma filha assustada e que precisava de consolo. Ela embalou-me lentamente até eu ficar calma o suficiente para parar de chorar.
            - Kiara… desde o início que lidamos com as maldades da Kalissa. Esta é apenas mais uma. Vamos superá-la… todos juntos.
            - Não… o Chris odeia-me, ele nunca mais vai querer falar comigo.
            - Quando eu lhe contar a verdade, vais ver que te perdoa. Ele está apenas… confuso. Quer acreditar em ti mas todos os factores o obrigam a rejeitar-te.
            - Eu sei… mas ele não pode simplesmente olhar para mim e entender que não lhe estou a mentir?! Caramba, não é assim tão difícil…
            - Para ele é. Mas não te preocupes. Eu vou resolver tudo. Agora devias acalmar-te.
            Nesse instante, um novo pensamento atravessou a minha cabeça e fez-me olhar novamente para ela.
            - Niza… não devias estar nas aulas?
            - Já são quase duas da tarde. Estamos em hora de almoço.
            - Ah… está bem…
            Eu tinha dormido a manhã inteira! Mas até fora melhor assim. Depois de sair do quarto de Chris eu não tinha forças para mais nada, mas naquele momento já me sentia melhor, mais forte, e desde que Niza estivesse ao meu lado e me apoiasse, tudo seria mais fácil.
            - Obrigada por confiares em mim.
            - Não é fácil nesta situação… mas acho que mereces que fique do teu lado. Mas prepara-te: não vai ser nada fácil convencer a Sophie.
            - Eu sei. Já me estou a preparar para isso.
            Ela assentiu e afastou-se um pouco. Larguei-a e decidi que era melhor começar a mexer-me. Não podia ficar ali deitada para sempre.
            - Eu vou tomar banho e vestir roupa lavada e depois… vou ter contigo.
            - OK. Estarei na Sala de Convívio… a convencê-los. - Respondeu ela, piscando-me o olho.
            - Está bem. Eu depois vou lá ter.
            - Não te demores.
            Levantou-se e saiu do quarto, fechando a porta devagar. Suspirei e levantei-me também. Estava na hora de eu começar outra vez. Não podia desistir. Que ironia: qualquer pessoa pode desistir de viver a qualquer momento, e eu, que quero tanto desistir, não posso porque a Kalissa me proíbe. Enfim…
            Encaminhei-me para a casa de banho e fechei-me lá. Despi-me e enchi a banheira de água quase até ao limite. Depois apanhei o cabelo num rabo-de-cavalo porque não queria molhá-lo e entrei. O calor da água fez-me arrepiar mas era uma sensação boa. Mergulhei-me quase até ao pescoço e fechei os olhos.
            Primeiro, precisava de relaxar.
            Deixei-me ficar mergulhada na água quente durante muito tempo, sem pensar em mais nada, apenas a tentar aliviar a cabeça de todas as pressões e confusões a que estava sujeita todos os dias.
            Chris não ia perdoar-me tão facilmente como Niza esperava que fizesse. Ele ia continuar a odiar-me. Mas eu não podia desistir dele. O meu coração não aguentava a desistência. Mesmo que ele me magoasse, eu continuaria junto dele. Passei a mão pela superfície da água.
            E Brand?
            A sua proposta não me saía da cabeça. Mesmo que eu não quisesse pensar nela, continuava a atormentar-me cada pensamento.
            E se eu desistisse de tudo?
            Será que eu aguentava? Deixar Chris, Ryan, Peter, Niza e Sophie? Para ficar com Brand e os outros Desportistas? Aquele grupo não me dizia nada. Eu não pertencia ali. No entanto, eles eram muito chegados a Kalissa. Brand principalmente. Tal como eu nunca desistiria de Chris, Brand nunca deixaria de tentar ficar com Kalissa.
            Suspirei e apoiei a cabeça no rebordo da banheira, tornando a fechar os olhos. O que faria Kalissa? Sim, porque eu não podia esquecer-me dela. A demónia viveria para sempre comigo. Por mais que eu a odiasse nunca seria capaz de a destruir.
            Mas e se eu implorasse por ser destruída? Será que Kalissa obedeceria ao meu pedido? Se ela me destruísse podia ficar com o meu corpo só para ela.
            Sim. Parecia-me bem.
            Os pensamentos suicidas entranharam-se na minha cabeça. Se Chris, Sophie, Peter e Ryan não me perdoassem, eu desistiria. Daria à Kalissa tudo o que ela mais queria. Ela podia ficar a controlar para sempre. Todos os meus problemas desapareceriam. E John… bem, ele não teria de se preocupar mais comigo. A afilhada problemática deixaria de o ser.
            Suspirei. Havia uma razão para eu não ceder àquele desejo louco: os meus tios.
            Eu tinha feito uma promessa a mim mesma: nunca desistir. Porque os meus tios, estivessem onde estivessem, continuavam a olhar por mim. E eles não gostariam de me ver morrer dessa maneira, às mãos da Kalissa.
            Abri os olhos e senti uma nova onda de energia a correr-me nas veias. Eu tinha de lutar. A minha tia não era uma desistente. Ela não me deixaria morrer por isto. Inspirei fundo e um sorriso desenhou-se na minha cara.
            Por ela, por Niza, por todas as pessoas que eu amava, não deixaria que Kalissa me vencesse.
            Acabei de tomar banho, saí da banheira e enrolei o corpo numa toalha. Depois vi-me ao espelho. Fitei o meu reflexo e elevei a mão lentamente para a pousar no vidro frio. Respirei fundo e depois arranhei a superfície polida do espelho. O som estridente do vidro a ser riscado fez-me sorrir.
            - Não vais ganhar Kalissa. Nunca. - Disse, convicta de que estava a dizer a verdade.
            Depois voltei para o quarto e escolhi a roupa que usaria. Arranjei-me depressa, penteei-me e depois saí do quarto. Estava na hora de ajudar Niza na sua missão. Aliás, eu é que devia estar lá em baixo a tentar convencer Sophie, não era ela. Mas agora era tarde.
            Percorri o corredor o mais depressa que podia sem estar realmente a correr. Desci as escadas até ao hall de entrada e daí passei para o salão de refeições, que estava vazio. A porta da Sala de Convívio surgiu lá ao fundo e eu corri para ela.
            Quando entrei na grande divisão, senti o coração começar a bater mais depressa. Não ia ser fácil. Mas a ideia de um novo desafio fazia-me querer continuar em frente. Descobri Niza sentada com o resto do grupo num dos conjuntos de sofás. Ela olhou para mim e vi a sua expressão pesarosa. Antes que o mundo me pudesse cair aos pés, sustive-o com todas as minhas forças e aproximei-me da minha amiga. Quando Sophie me viu chegar, ficou tão chocada que eu soube que ela só queria que eu me fosse embora.
            - Tem calma. Vim em paz. - Disse-lhe.
            Sophie virou-me a cara numa atitude arrogante. Ela ainda não acreditava no que Niza lhes contara. Mas Ryan olhou fixamente para mim. Acabou por se levantar e dirigiu-me um aceno de cabeça apaziguador. Era tudo o que eu mais precisava naquele momento. Sorri-lhe, sentindo-me mais forte a cada segundo que passava. Niza levantou-se da poltrona onde estava instalada e segurou na minha mão.
            - Eu estava a tentar explicar-lhes o que tinha acontecido.
            - Pois, já percebi. E eles não acreditam.
            Chris nem sequer olhava para mim e Sophie tamborilava furiosamente com as unhas compridas nas calças de ganga, com um ar muito contrariado.
            - Sophie… desculpa. - Não me lembrei de nada melhor para dizer.
            Ela continuou sem olhar para mim. Suspirei, e virei-me para Ryan. Talvez fosse mais fácil começar por ele.
            - Quero que fique aqui bem esclarecido que beijaste a Kalissa, e não eu.
            Os seus olhos arregalaram-se de espanto.
            - A sério? Eu beijei mesmo aquela cabra?
            - Sim. Deves ter pensado que era eu.
            - Pensei mesmo…
            - Mas ainda assim, como é que o fizeste? Ryan, o que é que te passou pela cabeça?!
            - Nós estávamos todos muito bêbedos. Ninguém estava a pensar no que fazia. - Ajudou Niza.
            Sophie revirou os olhos numa expressão enfadada.
            - É verdade. E tu devias ouvir-me. Achas mesmo que quero roubar-te o namorado, Sophie? És minha amiga. Nunca te faria algo desse género.
            Ela teimou em ignorar-me. E finalmente, Chris levantou o olhar e cravou-o no meu. Eu arrepiei-me perante aquele olhar gélido mas consegui manter-me quieta no lugar, sem dar meia volta e desatar a correr para longe.
            - Se fores capaz de parar de mentir… jura que foi mesmo a Kalissa.
            - Foi ela, eu juro, eu juro, juro, juro! - Apetecia-me gritar, cerrei as mãos em punhos para controlar a exaltação. Como é que ele ainda não acreditava em mim?!
            - Por que é que ela fez aquilo? - Perguntou Peter, que se mantivera calado até essa altura.
            - Porque ela quis vingar-se da Sophie. E escolheu o aniversário dela e o namorado dela. O plano perfeito. - Respondi calmamente.
            Jackpot. Sophie olhou para mim, com a fúria espelhada naqueles olhos cor de caramelo, as unhas crispadas e uma expressão assassina no rosto.
            - E vingar-se porquê? Por eu lhe dizer as verdades? Ela é uma cabra odiosa. Alguém tinha de lhe fazer frente. - Rugiu Sophie.
            - Eu sei. E é precisamente por isso que ela fez o que fez. Será que não percebem? Ela sabia que te conseguiria deixar nesse estado, virar-te contra mim, se te levasse a acreditar que eu e o Ryan andávamos a curtir às escondidas.
            Ryan desviou o olhar do meu, constrangido.
            - Sophie, vá lá. Acredita em mim. Tu sabes que estou a dizer a verdade, por que é que continuas a lutar contra mim?
            - Como é que foste capaz de a deixar soltar-se logo no meu dia de aniversário?! - Rosnou-me ela, levantando-se bruscamente.
            - Ela estava à espera há muito tempo. Teve uma pontaria fantástica, de certeza. Eu não consigo controlá-la enquanto estou a dormir! Vocês todos sabem isso! Ela trocou comigo durante a noite.
            - E fez-se passar por ti durante todo o dia? Dizendo exactamente aquilo que tu dirias se lá estivesses, agindo da maneira que ages normalmente? - Acusou Chris, levantando-se também.
            - Claro. Ela é uma óptima actriz. Só dessa maneira conseguiria que vocês se virassem contra mim. Parece que conseguiu aquilo que queria.
            Sophie recuou um pouco e cruzou os braços, mantendo um ar furioso. Niza pousou a mão no meu ombro e sorriu-me compreensivamente.
            - Eu estou do teu lado.
            - Eu sei. Obrigada.
            - Já conseguiste levá-la na tua conversa, não foi? - Rosnou Chris.
            - Não é conversa nenhuma. Eu acredito na Kiara. Sei que ela está a dizer a verdade. E tu não devias estar a falar dessa maneira com ela. É a tua namorada Chris. A rapariga que tu amas.
            Chris ia começar a argumentar quando eu fixei o meu olhar no seu. Queria vê-lo negar a afirmação de Niza. Queria ouvi-lo dizer que não me amava. E se isso acontecesse, então eu nunca mais me meteria no seu caminho. Os seus olhos azuis-claros fundiram-se com os meus, e aos poucos e poucos o gelo foi começando a derreter. Ele tremia por todos os lados. A sua boca entreabriu-se como se ele fosse começar a gritar mas nenhum som chegou a sair. Eu continuei a olhar bem fixamente para ele, apesar de me apetecer desatar a chorar. Ele odiava-me, mas não deixaria de me amar por isso.
            Sim. Amor e ódio andam de mãos dadas.
            - Por isso podem parar de continuar a atacá-la. A Kiara está em muito piores lençóis que nós. - Continuou Niza, que ainda me defendia dos olhares acusadores de Sophie.
            A teimosa dela era quase inabalável. Podíamos ficar ali duas semanas seguidas a tentar explicar-lhe a situação e mesmo assim ela não a quereria ver. Suspirei e olhei para Ryan.
            - Tu também me detestas?
            Após uns segundos de hesitação ele aproximou-se de mim e pegou na minha outra mão livre, sorrindo-me compreensivamente.
            - Não. Nunca te detestaria. E desculpa por te ter beijado.
            - À Kalissa. - Corrigi rapidamente.
            - Eu pensei que fosses tu. Não quero beijar essa estúpida. Mas… mesmo assim… eu sei que errei. É a minha vez de pedir desculpa.
            - OK. Desculpas aceites.
            Sophie silvou como uma cobra atiçada e aproximou-se de Chris.
            - Vocês podem ficar os dois juntos se quiserem. Agora podes beijá-la as vezes que te apetecerem Ryan. - Rosnou Sophie, furiosa.
            - Não! Será que tu não percebes?! Eu amo-te mesmo! - Respondeu ele.
            Sophie desviou o olhar dele para o chão e vi-a tentar conter as lágrimas. Apertei a mão de Ryan para lhe dar sinal que continuasse. Ele era a pessoa mais indicada para quebrar a parede de gelo que revestia o coração de Sophie naquele momento. Ele era o único que a podia fazer mudar de ideias.
            - Bonequinha… por favor… dá-me outra oportunidade. Eu só quero saber de ti. Por favor.
            Ele ultrapassou o espaço que os separava e agarrou o rosto dela nas suas mãos, elevando-o até ao nível do seu. Os olhos de Sophie estavam marejados de lágrimas.
            - Amo-te. - Sussurrou Ryan.
            Depois beijou-a. E Sophie não tentou afastá-lo por um único segundo. Apesar de não ter correspondido logo ao seu beijo, foi cedendo lentamente e no fim acabou por o abraçar fortemente. Apetecia-me sorrir, bater palmas e até gritar de alegria. Era estranho que me sentisse assim, mas eu não suportava ver aqueles dois chateados. Era algo que me deixava desesperada. Porque na minha cabeça, Ryan e Sophie pertenciam um ao outro. Eu nunca seria capaz de os imaginar com outros companheiros. Quando eles se afastaram, Sophie olhou para mim e suspirou longamente.
            - Kiara… eu perdoo-te. Tu não tens culpa de ter essa cabra dentro de ti. Mas podes ter a certeza que da próxima vez que ela voltar lhe vou chegar a roupa ao pêlo.
            As gargalhadas irromperam no grupo. Eu ri-me com gosto. Sophie era forte o suficiente para lidar com Kalissa. E eu nem me atreveria a cortar-lhe o entusiasmo de poder bater na inimiga. Havia apenas um contra nessa situação.
            - Hum… estás a esquecer-te de uma coisa…
            - O quê? - Perguntou Sophie, espantada.
            - Vais estar a magoar o meu corpo também. Vê lá se não me deixas cheia de nódoas negras, OK?
            Ela riu-se outra vez e assentiu com a cabeça. Depois veio para junto de mim e abraçou-me com tanta força como se me quisesse esmagar. Mas o aperto soube-me bem. Abracei-a também, apreciando a sensação de a ter de volta a mim. Era como se uma parte importante do meu ser se estivesse a reunir às outras. Sophie já fazia parte da minha família e eu não aguentaria ficar sem lhe falar por muito tempo.
            - Desculpa pela maneira como te falei. - Segredou ela ao meu ouvido.
            - Eu sei. E desculpa pela Kalissa te ter estragado o aniversário.
            - Até nem correu muito mal, só mesmo de madrugada é que ela decidiu revelar-se. Mas o importante é que tu estás de volta.
            Afastou-se e nesse instante eu olhei para Chris. Estava à espera que ele também já tivesse cedido e me perdoasse, mas encontrei o mesmo olhar enervado e duro como gelo.
            - Chris…
            - Esquece-me Kiara.
            Deu meia-volta e foi-se embora, sem dizer mais nada. Mordi o lábio inferior para me controlar. Sophie rodeou os meus ombros com o seu braço enquanto Niza passava o dela em volta da minha cintura. Abraçaram-me ao mesmo tempo, e embora eu quisesse aproveitar o abraço delas, não conseguia parar de pensar em Chris.
            Era inacreditável, quando eu pensava que ele não conseguia magoar-me mais, era exactamente o que ele fazia: destruir mais um bocado do meu coração, um dos muitos que ainda pulsava por ele.
            - Vai correr tudo bem. No fim, ele vai voltar para ti. - Disse Niza, sorrindo-me de modo encorajador.
            - Como é que tens tanta certeza disso? - Balbuciei, ao ponto de começar a chorar a qualquer momento.
            - Não sei… é um pressentimento. Um pressentimento muito forte.

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