domingo, 13 de fevereiro de 2011

Capítulo 5


Pesadelo







            Ouviu-se o sino do colégio a tocar e eu parei de beijar Chris. Peter e Niza levantaram-se.
            - Vamos? Está na hora do jantar. - Disseram.
            Nós levantámo-nos também e seguimos todos para fora do quarto, dirigindo-nos ao salão de refeições. Eu não sentia fome nenhuma, e até era capaz de perceber porquê, mas tentei não me lembrar da razão. Era demasiado má para eu querer recordar naquele momento.
            Sentámo-nos na mesa do 11º ano. Os Desportistas e as Raparigas da Claque, os grupo aos quais Kalissa pertencia e que em que parecia mandar, já estavam no refeitório e olharam para mim quando me sentei com os meus amigos. Na verdade, eles ficaram muito espantados.
            E de repente, algo dentro de mim me fez compreender que aquela situação era insustentável. Que não podia deixar as coisas assim por mais tempo. As minhas mãos crisparam-se em cima da mesa e Niza notou aquela mudança na expressão do meu rosto.    
            - Kiara? - Perguntou ela, com medo.
            Devia pensar que Kalissa estava prestes a soltar-se. Abanei a cabeça em negação para a consolar mas continuei sem dizer nada. E depois levantei-me bruscamente.
            - Onde vais? - Perguntou Chris, espantado.
            - Tratar deste assunto de uma vez por todas.
            Atravessei o espaço que me separava de Brand e parei junto aos amigos dele, que olhavam atónitos para mim. Os olhos cor de chocolate dele semicerram-se pela desconfiança e pela mágoa.
            - Brand… - Cumprimentei-o com um aceno de cabeça.
            - És tu, Kiara?
            - Sou eu.
            Os outros rapazes e raparigas não estavam a perceber nada daquele nosso estranho diálogo. Brand levantou-se mas permaneceu do outro lado da mesa.
            - O que aconteceu? O que fizeste à Kalissa?
            - Ela desconcentrou-se e eu aproveitei para recuperar o controlo. - Respondi, sentindo a minha voz muito determinada.
            - Mas… ela está bem?
            - Neste momento está sossegadinha no fundo da minha mente e eu não deixarei que ela se solte assim tão depressa.           
            Brand cerrou as mãos em punhos. Ele não tinha gostado nada da minha afirmação.
            - Então… só vieste aqui dizer isso? - Vociferou.
            - Não.
            Ele esperou que eu continuasse. Inspirei fundo para me controlar melhor. Não podia desviar-me do meu objectivo.
            - Uma vez que o meu grupo já sabe a verdade, acho que o teu também devia ficar a conhecê-la.
            Brand olhou para o rapaz sentado ao seu lado e tornou a pousar os olhos ameaçadores nos meus.
            - Isso vai trazer-nos problemas.
            - Não mais do que trará aos meus amigos. - Rosnei-lhe, furiosa.
            Aquela faceta era nova em Brand. Eu nunca imaginara que ele pudesse pensar no bem das outras pessoas.
            - Está bem. Vais contar-lhes agora?
            - Não. - Murmurei. - Conta-lhes tu. Fá-lo à tua maneira. A única coisa que te peço é que sejas honesto. Quando a Kalissa se soltar vai continuar a ter os amiguinhos à volta dela, se souberes explicar bem a situação.
            Brand levantou o queixo com ar petulante e cruzou os braços super musculados.
            - Eu faço isso. Está descansada.
            - Obrigada.
            E virei-me para ir embora, quando me lembrei de algo. Olhei para ele por cima do meu ombro e baixei o tom de voz.
            - E Brand… eu nunca quis que isto fosse assim. Lamento por… tudo o que a Kalissa te está a fazer.
            - És tu o problema, não ela. Eu amo-a.
            - Eu sei disso. - Suspirei. - Mas escolheste mal a namorada.
            - Não preciso dos teus conselhos sobre quem devo escolher.
            Assenti, conformada.
            - Faz bom proveito do veneno da cascavel… quando ela voltar. - Respondi, e depois fui-me mesmo embora.
            Brand não fez nada para me deter e eu soube que ele ia seguir o meu pedido e explicar aos Desportistas e às Raparigas da Claque o que se passava. Por isso fui sentar-me novamente ao lado de Chris e suspirei. Ele estava verdadeiramente preocupado comigo.
            - Estás bem? - Murmurou junto ao meu ouvido.
            - Sim… agora sim.
            Deixei que ele envolvesse os meus ombros com o seu braço e depois apercebi-me que Niza e Sophie estavam a olhar fixamente para mim.
            - O que se passa? - Perguntei.
            - Não tens mais nada a dizer-nos?
            O tom de voz de Niza era provocador e ansioso ao mesmo tempo, porque ela podia tentar o quanto quisesse e nunca seria capaz de imitar a maldade de Kalissa. Suspirei e lembrei-me que ainda havia algo que elas não sabiam.
            No entanto, eu não suportaria relembrar.
            Já tinham passado quase quatro meses mas ainda era muito difícil para mim lembrar todos os pormenores, voltar à cena mais horrível da minha vida. E tal como sabia que seria difícil, soube também que era disso mesmo que Niza e Sophie estavam à espera.
            - Eu sei o que vocês querem que conte.
            Niza sorriu ao ver que eu estava a colaborar com ela.
            - O que se passa? - Quis saber Peter.
            - Ainda há algo que a Kiara não nos contou. Mas vai contar agora. - Respondeu Sophie, confiante.
            Olhei para Chris e arranjei forças para começar a falar.
            Decidi fechar os olhos. Não que precisasse assim tanto de me esforçar para que as imagens voltassem à minha cabeça. Elas ainda estavam demasiado vivas, intensas e esmagadoramente tristes dentro de mim.
            - Os meus pais não estão separados. Na verdade, eu nunca os cheguei a conhecer. O meu pai foi morto antes de eu nascer e a minha mãe também foi, quando eu tinha pouco dias de vida. E eu sempre vivi com os meus tios, desde bebé, por isso eles eram uns verdadeiros pais para mim. Mas… há quase quatro meses atrás, numa noite que parecia igual a tantas outras, dois assassinos entraram pela nossa casa, mataram os meus tios e obrigaram-me a fugir para não ser morta também.
            Abri os olhos e esforcei-me por conter as lágrimas. Ainda era capaz de sentir o terror daquela noite, as imagens da minha tia, caída no chão da cozinha com a garganta cortada a sangrar abundantemente, e do meu tio, morto no tapete da sala, com uma bala a perfurar-lhe a zona do coração… imagens horrorosas que eu nunca seria capaz de esquecer.
            Niza e Sophie pareciam arrependidas de ter tocado no assunto ao verem que eu ficava tão apavorada de falar nisso, mas agora era tarde de mais para tentar mandar as memórias para o fundo da minha mente.
            - Mas… por que é que nunca nos contaste isso? - Perguntou Ryan.
            - Porque… eu não conseguia falar no assunto… era tão doloroso para mim! Ainda é… mas estou a conseguir controlar melhor. Só o John é que sabe o que aconteceu. Ele veio buscar-me ao aeroporto de Auburn, para onde eu fugi assim que consegui escapar-me da casa, e trouxe-me para aqui. Ele também sabe do assunto da Kalissa, desde o início. Tem-me ajudado imenso, perdoado todas as maldades que ela faz, incentivando-me a não perder a calma.
            - Mas quem seria… capaz de matar os teus tios? Porquê?
            Inspirei fundo e a explicação surgiu na minha cabeça com uma claridade arrepiante.
            - Porque também mataram os meus pais.
            Niza tinha os olhos arregalados de espanto, tal como Sophie, e o queixo de Peter estava descaído pela surpresa.
            - Sabes a razão? - Perguntou Chris.
            - Não. Mas sinto que foram as mesmas pessoas. Há algo de errado no meio desta história toda. Eles conheciam-me… sabiam que eu vivia naquela casa, e foi para me apanhar que foram até lá. Mas como apanharam os meus tios pelo caminho, tiveram de se ver livres deles o mais depressa possível.
            As lágrimas desceram pelo meu rosto. Eu não conseguia contê-las. Lembrava-me da altura em que subira as escadas até ao meu quarto e me escondera lá dentro. Recordava a maneira desesperada como subira pelo telhado até chegar à chaminé, como me tinha escondido lá, tentado não ser descoberta. As minhas mãos começaram a tremer tanto como nessa altura.
            - Desculpa… não queríamos que ficasses assim. - Disse Niza.
            - Eu só queria saber se era verdade o que a Kalissa tinha dito.
            Levantei o olhar e cravei-o no dela. O quê? Kalissa tinha-lhes dito aquilo? Porquê? Com que objectivo?    
            Ah, sim: para as virar contra mim.
            - O que foi que ela disse? - Murmurei, com medo de ouvir a resposta.
            - O mesmo que tu, só que… com menos emoção. Ela não sentia nenhuma afinidade pelos teus tios, pois não?
            - Ela odiava-os.
            - Pois… e ela disse que tu tinhas fugido com o dinheiro deles e que tinhas deixado os corpos para trás.
            Chorei mais ainda. Era verdade, mas eu fora obrigada a isso. Ou fugia ou era morta também. Chris abraçou-me mais, ao ver o estado em que eu estava a entrar.
            - Parem com isto, meninas. Não vêem como ela está a ficar? Ainda se descontrola e a Kalissa volta.
            Sophie alcançou a minha mão por cima da mesa e apertou-a entre as suas.
            - Desculpa. A sério. Não devíamos ter tocado no assunto.
            - Não faz mal. A partir de hoje não quero que haja segredos entre nós. A Kalissa vai servir-se deles para vos virar contra mim, e não posso permitir isso.
            - Ela nunca vai conseguir virar-nos contra ti!
            - Não tenho a certeza disso, Peter. Ela é forte.
            - Nós somos mais. Unidos, somos mais fortes e persistentes que ela. E eu… acho que tenho um plano para manter a Kalissa afastada. - Respondeu Ryan, convicto.
            Olhei para ele, surpreendida. Como era possível que ele tivesse descoberto uma maneira, se eu em dezasseis anos não encontrara nenhuma?!
            - Qual é a tua ideia?
            - Bem, ela só se solta quando tu te descontrolas, certo? Quando estás assustada, ou nervosa, ou nesse tipo de situações.
            - Basicamente, eu crio uma espécie de "parede de tijolos" na minha cabeça. - Fiz o sinal de aspas com os dedos e revirei os olhos. - Se eu pensar nela com muita intensidade, a Kalissa não se consegue soltar, não a consegue romper nem ultrapassar. É essa parede invisível que a mantém longe de se apoderar do controlo.
            - Óptimo. Então eu acho que até é simples: só tens de pensar nessa protecção com muita força, não te desconcentrares, e acho que a conseguimos manter longe do controlo. - Disse Ryan.
            - Não é assim tão fácil.
            - Ai não?
            - Não. Quando estou a dormir não consigo pensar nela. Deixo-me apenas cair na inconsciência. E ela normalmente aproveita esses momentos para se apoderar do meu corpo.
            - Pois, não podemos combater a Kalissa enquanto estiveres a dormir. - Disse Niza, preocupada.
            - Claro. Mas enquanto estiver acordada, só algo muito forte pode abalar a minha concentração ao ponto da parede invisível desmoronar.
            - Algo muito forte como…? - Perguntou Niza, em tom vago.
            - Como, por exemplo, uma má notícia.
            Chris abraçou-me.
            - Nós vamos fazer tudo o que pudermos para te ajudar. Ela não se vai conseguir soltar, acredita em nós.
            - Eu acredito.
            Ele agarrou o meu rosto entre as suas mãos e beijou-me intensamente. Ao fim de uns segundos, eu comecei a deixar de conseguir raciocinar, enquanto me perdia na paixão que sentia por Chris, enquanto os seus lábios se moviam ao mesmo compasso que os meus, enquanto os meus dedos se enrolavam no seu cabelo sedoso e…
            - E, por exemplo… quando tu me beijas. - Respondi, afastando-me e rindo baixinho.
            Chris riu-se também, mas depois pareceu preocupado.
            - Tu desconcentras-te quando me beijas?
            - Pois… imensas vezes…
            - Então é simples: não a podes beijar mais. - Disse Peter, em tom de brincadeira.
            - Não! Isso é que não. Podes beijar-me as vezes que quiseres, eu concentro-me ao máximo para não deixar que ela se solte. - Respondi, sentindo-me a corar tanto que as minhas faces queimavam.
            - Óptimo. Portanto acho que nos vamos conseguir aguentar. E Chris, se faz favor, não a entusiasmes demasiado. - Pediu Sophie, tentando conter o riso.
            - Está bem, está bem. A partir de agora eu e a Kiara entrámos na abstinência.
            As gargalhadas irromperam no grupo e eu partilhei-as. Era bom poder rir novamente.


            Olhei para o fundo do corredor. Tinha ouvido alguém a chamar-me. Mas o espaço à minha volta era escuro e eu não conseguia ver o que me rodeava com muita clareza. Porém, a minha audição não era afectada pela escuridão.
            - Kiara!
            Olhei para a direita e vi algo a mexer-se nas sombras. Depois, lentamente, a figura de Mariah surgiu. Ela olhou para mim naquele jeito amedrontado que só ela tinha. E de repente, as luzes acenderam-se e eu fui capaz de a ver muito melhor. Mariah tinha mudado imenso desde que eu chegara ao colégio. Tinha perdido aquela atitude convencida e irritante. Agora estava feita num farrapo humano.
            Mas quando ela olhou para mim, aqueles olhos baços imploravam por perdão e eu não lho quis dar.
           

            - AH!
            Sentei-me rapidamente na cama, arfando com a falta de ar. Tudo à minha volta era escuro como breu. Sophie tinha fechado a janela e os cortinados e nem o luar entrava no quarto. Eu sentia-me a tremer de ansiedade.
            O que se tinha passado? Que pesadelo fora aquele?
            - Kiara?! Estás bem?
            Senti alguém ao meu lado e quando olhei vi que era Niza. Sentou-se à minha frente na cama, e quando Sophie acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira, eu observei as feições assustadas das minhas amigas.
            - Ainda és tu? Kiara, és tu? - Gaguejou Sophie, atarantada.
            - Sou. - Murmurei.
            Passei a mão pela testa para tirar as gotas de suor que aí se tinham formado. Meu deus… tinha sido só um sonho…
            - O que é que aconteceu? Estavas a gritar…
            - A gritar? Eu?
            - Sim! A gritar a sério… eu assustei-me, pensei que fosse a Kalissa que se estivesse a soltar! - Explicou Niza.
            - Não. Ela não se vai soltar.
            Fechei os olhos para me certificar que a parede de tijolos no interior da minha cabeça estava bem forte e não encontrei qualquer falha nem qualquer ponto onde Kalissa estivesse a tentar rompê-la. Tornei a abrir os olhos.
            - Ela está bem presa.
            - Ainda bem… então, o que é que aconteceu?
            E agora? Contava-lhes do sonho? Para quê? Não era importante. Eu apenas vira Mariah, nada mais. Que estranho… eu nunca antes sonhara com ela… por que é que de repente ela me aparecia em sonhos?
            - Tu prometeste que nunca mais nos esconderias nada. - Sibilou Niza, ameaçadoramente, os seus olhos verdes como trevos a brilharem de irritação genuína.
            Sim, ela tinha razão. Por mais insignificante que fosse o sonho, elas tinham o direito a saber.
            - Eu tive um sonho…ou um pesadelo, não sei bem… com a Mariah.
            - A Mariah?! - Disseram Niza e Sophie em uníssono, espantadas.
            - Sim.
            - Mas porquê?
            - Não sei.
            - E o que é que acontecia? - Perguntou Sophie.
            - Eu estava num corredor e ela aparecia lá ao fundo. Depois chamou-me… e veio ter comigo… não aconteceu mais nada.
            - Isso é esquisito. Afinal por que é que gritaste? Pensei que tivesse sido um pesadelo muito mau e sangrento!
            - Não. E ainda bem que não foi! - Resmunguei.
            - Claro, desculpa…
            - Ouçam, isto não tem nada de importante.
            - Sim, ela tem razão Sophie. Não é nada de grave. Provavelmente a Kiara só se assustou, mais nada.
            - Pois, foi isso.
            - Então volta a dormir, OK? Nós vamos fazer o mesmo. Está tudo bem. - Disse Niza, sorrindo-me maternalmente.
            - Sim. - Respondi, deitando-me novamente.
            Elas voltaram para as suas camas e apagaram a luz do candeeiro. E ao fim de poucos minutos, eu também já estava a dormir outra vez.
            Na manhã seguinte, eu tinha-me esquecido completamente do pesadelo. Mas agora tinha de começar uma nova etapa da minha vida. Pelo que Niza me contou, Kalissa tinha deixado de ir às aulas e a única coisa que lhe interessava a nível da escola era a Claque. E agora que o grupo de Brand já sabia a verdade, era mais fácil livrar-me dos treinos.
            Segui com Niza e Sophie até ao salão de refeições e sentámo-nos nos nossos lugares habituais. Peter, Chris e Ryan chegaram pouco tempo depois e sentaram-se connosco.
            - Então… pronta para regressar às aulas? - Perguntou Peter.
            - Sim… mal posso esperar.
            Mas havia algo que me estava a deixar preocupada. Eu sentia uma dor de cabeça bem forte naquele momento. Dor essa que nada tinha a ver com Kalissa, felizmente. Era uma dor de cabeça normal, humana, como toda a gente tem. Então… por que é que eu a estaria a ter naquele momento?
            - Kiara!           
            Virei-me quando chamaram o meu nome e vi Brand ali de pé, especado a olhar para mim, com um ar preocupado.
            - Sim? - Perguntei.
            - Sentes-te bem?
            Ponderei nas suas palavras por uns momentos. Seria normal que ele soubesse aquilo que eu estava a sentir, que soubesse que eu necessitava de algo para acabar com aquela dor de cabeça infernal?
            - Não. - Respondi.
            Os olhos de Chris, Ryan e Niza pregaram-se em mim, ansiosos.
            - Eu sei do que tu precisas. Parece que terei de te lembrar que a Kalissa tinha… necessidades específicas. - Explicou Brand.
            - Ah, pois… já sei do que estás a falar.
            Aquela situação era desconfortável. Eu não queria mesmo nada ter de me drogar. Mas se isso acabasse com as dores de cabeça, até era capaz de o fazer. Além de que não valia a pena tentar curar-me da dependência da droga: Kalissa continuaria a consumir quando recuperasse o controlo. Suspirei e assenti com a cabeça.
            - Claro. Tens aí… alguma coisa que eu possa tomar?
            - Sim. Toma. Engole-os com água. Por agora deve servir. Daqui a mais ou menos quatro horas vais precisar de mais, entendes? - Continuou ele, tirando uma saqueta transparente do bolso do casaco.
            Tirou dois comprimidos da saqueta e passou-mos para a mão. Fixei o olhar no seu. Era como se a cada dia que passava eu descobrisse um novo Brand, uma pessoa mais racional, mais emotiva, menos… convencida e parva. Brand até conseguia ser carinhoso com Kalissa.
            - OK… obrigada.
            - Então até logo.
            E foi-se embora antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa. Inspirei fundo para me preparar e olhei para os dois comprimidos que tinha na mão. Senti um nó a formar-se na garganta, o que aliado à dor de cabeça, me deixou irritadiça.
            - Vais mesmo tomar isso? - Perguntou Sophie.
            - Tem de ser. Dói-me imenso a cabeça. Pensa nisto como se fossem… aspirinas. - Murmurei.
            Peguei no copo de sumo do pequeno-almoço e meti os dois comprimidos na boca, bebi o sumo todo para os ajudar a descer e depois tornei a pousar o copo vazio, enquanto fechava os olhos.
            - Estás melhor? - Perguntou Niza ao fim de uns segundos.
            - Ainda vai demorar algum tempo a fazer efeito. - Expliquei-lhe.
            - Ah… desculpa…
            - Não faz mal. Agora vamos, deve estar quase na hora da aula.
            Chris levantou-se quando eu o fiz e agarrou-me pelo cotovelo, virando-me de frente para si. Tinha a testa franzida pela apreensão.
            - Sim? - Questionei.
            - Não podes ir para as aulas drogada.     
            Hum… pois… tinha-me esquecido desse pormenor…
            - Talvez fosse melhor falares com o teu padrinho, não achas? Para tentarmos entender o que havemos de fazer contigo.
            - Claro. Vens comigo?
            A ideia de me separar dele por mais tempo do que o estritamente necessário deixava-me deprimida. Chris anuiu e baixou o rosto para me beijar com ternura.
            - Até logo malta. Vamos ao gabinete do director. - Disse ele ao Peter e aos outros.
            Os meus amigos seguiram para as aulas da manhã e eu limitei-me a deixar que Chris me arrastasse consigo pelas escadas e corredores do castelo, até chegarmos aos aposentos do meu padrinho. Bati levemente na porta. Agora sentia a cabeça menos dorida e já conseguia ver com maior precisão, porque a nuvem cinzenta tinha desaparecido da minha visão.
            - Entrem.
            Chris olhou para mim, enquanto arranjávamos coragem, e depois passámos pela porta e nos aproximávamos da secretária do meu padrinho. John levantou-se logo da sua grande poltrona ao ver-me entrar.
            - Kiara!
            Contornou a mesa e veio abraçar-me fortemente.
            - Olá John.
            - És mesmo tu? Já voltaste?!
            - Sim.
            - Ainda bem! Eu estava tão preocupado contigo…
            - Agora está tudo bem. Ou pelo menos… quase tudo. - Murmurei.
            - O que se passa desta vez?
            O meu padrinho olhou para Chris, que aguardava em silêncio, e depois tornou a olhar para mim, confuso.
            - A droga.     
            - Ah…
            A preocupação deu lugar ao desespero no seu belo rosto. Claro que ele odiava aquela situação mais ainda do que eu.
            - Eu não posso ir para as aulas drogada, pois não?
            - Não daria muito jeito, realmente.
            - Mas eu quero continuar a ter aulas, a sério. Não quero desleixar-me nos estudos só porque a Kalissa… faz asneiras atrás de asneiras.
            Ele assentiu.
            - Talvez seja melhor eu explicar a situação aos professores, o que achas?
            - É seguro?
            - Sim, eles não contarão a ninguém.
            - Então acho que é a única solução. - Encolhi os ombros.
            - Realmente é o que parece. Mas tu… estás drogada?
            - Neste momento estou. Tomei dois comprimidos há menos de dez minutos. Teve de ser, doía-me imenso a cabeça pela falta da droga.
            - Claro, não te culpes por isso. - Sorriu ele, tristemente, e pôs-me as mãos nos ombros.
            - Eu preciso da sua ajuda.
            Custava-me estar a pedir mais aquilo. Depois de tudo o que John fizera por mim, e ainda fazia, depois de todas as discussões que ele tivera com Kalissa, da maneira como ela o tratara, o meu padrinho não tinha de fazer mais nada por mim. Mas ainda assim, ele era a única pessoa a quem eu podia recorrer naquele momento.
            - Tudo o que precises. - Respondeu ele.
            - Bem… eu quero deixar a droga, claro. Há alguma maneira de fazer isso? - Chris aproximou-se e rodeou a minha cintura com o seu braço forte.
            - Pois… vai ser complicado…
            - Faço qualquer coisa. Por favor John… olhe o meu estado!
            Eu nem queria olhar para os meus braços esqueléticos, e evitava ao máximo ver o meu reflexo nos espelhos. Era doloroso de mais.
            - Eu acho que consegues deixá-la mas vai ser precisa muita força de vontade. E vocês - Olhou para Chris e semicerrou os olhos. - Têm de estar ao lado dela. Têm de a apoiar com todas as vossas forças porque ela não vai conseguir fazer isto sozinha.
            - Claro. Eu estarei sempre com ela.
            Sorri, sentindo a calma a passar do corpo dele para o meu. O efeito de talismã de Chris estava a resultar na perfeição naquele momento.
            - Mas como é que eu faço para deixar a droga?
            - Para começar, vamos tentar uma desintoxicação drástica. Ou seja, vais deixar de consumir, entendes? Por mais que pareça que não consegues aguentar, tens de te manter sem tomar comprimidos ou algo parecido.
            - OK…
            - Achas que consegues fazer isso?
            Olhei primeiro para John e depois para Chris, sentindo o meu estômago a contrair-se. Eu faria tudo por eles. Não queria desiludi-los, mas e se… eu não fosse suficientemente forte? E se Kalissa estivesse de tal modo dependente que não valia de nada eu tentar deixar a droga? E se Chris achasse que eu era fraca de mais para chegar a tentar?
            Não. Eu não era fraca. Ia conseguir fazer aquilo custasse o que custasse. Por eles. Pelas pessoas que eu amava.
            - Eu faço-o. Por vocês. - Murmurei.
            Chris sorriu-me, deslumbrado e orgulhoso da minha escolha, e beijou-me na testa com carinho.
            - Vai correr tudo bem.
            John sorriu, contente por eu ter tomado aquela decisão. Eu era a única que sentia que aquilo podia não resultar. Eu podia já estar demasiado dependente para ser capaz de a deixar sozinha, sem ter de entrar para uma clínica de desintoxicação. Só de pensar nisso arrepiei-me. Era o último sítio para onde eu queria ir, além de que lá eu nunca estaria segura. Os assassinos dos meus tios podiam apanhar-me lá. E até mesmo Kalissa se soltaria mais facilmente, arruinando os meus planos. Porque, afinal de contas, Kalissa ia sempre querer voltar para a droga.
            Mas daquela vez eu não ia deixar.

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