domingo, 24 de abril de 2011

Capítulo 13


A Origem do Mal






            Tal como tinha prometido a Chris, eu iria falar com o meu padrinho. Mas já era muito tarde nessa noite e eu não queria ir incomodá-lo. Chris esperou que eu me vestisse e arranjasse e depois levou-me consigo até à Sala de Convívio, onde o nosso grupo estava reunido. Assim que eu passei pelas portas de entrada da grande divisão, avistei os meus amigos.
            Niza e Peter dividiam um dos sofás, enquanto Sophie e Ryan ficavam no outro, e embora estivessem a ver televisão, eu podia entender pelas expressões nas suas caras qual a preocupação que os consumia. Todos eles tentavam enganar-se, parecer calmos, e todos estavam a pensar em mim e nas minhas tendências suicidas. Parei e suspirei, tentando arranjar coragem para os ir enfrentar. Chris parou também, fitando-me inquisitoriamente.
            - Achas que eles… vão zangar-se comigo?
            - Mais ou menos. A Niza e a Sophie não. Mas o Peter vai ralhar-te, claro.
            Só me apetecia dar meia volta e enfiar-me de novo na cama, mas tinha de arranjar coragem para continuar em frente. A minha vida ainda não terminara. Por isso ergui bem a cabeça e caminhei em frente com determinação. Chris sorriu ao ver a nova força que eu ganhara e seguiu atrás de mim.
            Quando me aproximei do local onde eles estavam, os meus amigos viraram-se todos para mim de repente. No início ninguém reagiu, mas depois Sophie saltou dos braços de Ryan e correu até mim, abraçando-me com tanta força que parecia querer esmagar-me.
            - Oh meu deus! Tu estás bem?!
            - Sim, tem calma, estás a esmagar-me.
            - Ups, desculpa…
            Ela afastou-se e cravou o olhar assustado no meu. Sorri-lhe para dar a ideia que podia ficar mais descansada e que eu estava bem. Mas depois Niza veio também abraçar-me, e parecia estar a tremer.
            - Tem calma… eu estou bem.
            - Mas podias não estar! Se o Ryan não tivesse ido buscar o casaco da Sophie tu podias estar…
            E desatou a soluçar. Abracei-a contra mim, tentando acalmá-la. Levei-a comigo para o sofá onde Peter também estava sentado e permaneci abraçada à minha melhor amiga, enquanto o braço de Peter nos rodeava a ambas. Senti-me ensanduichada entre eles mas não era uma sensação má. Eu nem queria sair dali.
            - Podem acalmar-se, todos vocês. Eu não volto a fazer nada daquele género.
            - Espero bem que não! Devias ter juízo! - Resmungou Peter, os olhos a semicerrar-se de fúria misturada com preocupação.
            Dirigi-lhe um sorriso e a raiva dissipou-se instantaneamente do seu rosto. Lá no fundo ele só queria o meu bem, tal como os outros.
            Quando Niza se acalmou, larguei-a e fui sentar-me no outro sofá com Chris. Ele estava a explicar a Ryan e Sophie o meu plano de ir falar com o meu padrinho para descobrir o que realmente acontecera há dezasseis anos atrás. Niza e Peter também entraram na conversa.
            - Acho que é uma óptima ideia. - Concordou Sophie.
            - Mas nós já sabemos a resposta.
            Olhámos todos para Niza e ela encolheu os ombros.
            - Tu és a dona desse corpo. A Kalissa é que é a demónia, a parasita. Não há qualquer dúvida quanto a isso.
            - Eu não tenho a certeza. Por isso é que quero ouvir a versão do John. Ele conheceu os meus tios e os meus pais melhor do que eu. Quero… saber o que ele pensa de tudo isto.
            - Eu apoio a tua decisão. Vais descobrir muitas coisas quando falares com ele. - Apoiou Ryan, pegando na minha mão e apertando-a entre as suas.
            - Vou fazer isso amanhã. Não posso esperar mais tempo.
            - Mas achas que a Kalissa… está prestes a soltar-se?
            - Não. Eu mantenho-a presa. - Sorri provocadoramente.
            Sophie retribuiu-me o sorriso.
            - Vamos lá controlar essa demónia.
            Chris juntou a sua gargalhada à de Peter e depois as atenções do meu grupo voltaram para o filme que estava a passar na televisão. Aninhei-me nos braços de Chris e fechei os olhos.
            O dia seguinte seria decisivo.
            Essa sensação entranhava-se em cada célula do meu corpo. Eu queria ouvir a versão de John para poder tirar as minhas conclusões.
            A uma da manhã chegou demasiado depressa e eu tive de voltar para o meu quarto. Como tinha passado todo o dia a dormir, estava demasiado desperta para o fazer de novo. Por isso deixei que Niza e Sophie adormecessem, esperei até não se ouvir um único som no exterior, e saí do quarto pé ante pé, tentando não fazer barulho.
            Precisava de droga.
            Doía-me muito a cabeça e a visão estava a começar a ficar desfocada. Se não tomasse nada rapidamente ia perder o controlo e Kalissa soltar-se-ia. Além disso, eu estava a melhorar. Já só tomava droga duas vezes por dia, as doses eram menores e eu sentia-me mais forte. Estava a recuperar o meu corpo de antigamente, por isso podia continuar naquele sistema. Dali a poucas semanas eu seria capaz de deixar completamente a droga.
            Cheguei ao quarto de Brand pouco tempo depois. Inspirei fundo antes de bater à porta e depois ele veio abrir, com um ar ensonado, e espantou-se por me ver ali.
            - Kalissa?!
            - Não, ainda sou a Kiara.
            - Ah… o que fazes aqui?
            - Preciso de droga.
            Brand semicerrou os olhos mas acabou por ceder e deixar-me entrar. Drake e Allan estavam a dormir profundamente nas suas camas. Brand fechou a porta e eu sentei-me na sua cama enquanto ele ia buscar os comprimidos para mim.
            - Hoje aguentaste muito tempo sem droga.
            - Eu sei. Sinto-me orgulhosa disso.
            Ele resmungou qualquer coisa que não compreendi e veio sentar-se ao meu lado, dando-me o copo com água e os comprimidos. Depois de os tomar, fiquei a olhar para Brand. As suas sobrancelhas estavam contraídas pela tensão.
            - Brand? - Chamei baixinho.
            Ele hesitou por uns momentos mas acabou por cravar os olhos nos meus, com uma intensidade tão grande que eu me arrepiei. E foi quando os seus olhos, do exacto tom do chocolate de leite, se fixaram nos meus, que eu me lembrei do pesadelo de há poucas horas atrás. Da maneira como ele tinha tocado em mim, me beijado. Abanei a cabeça em negação para afastar esses pensamentos horrorosos.
            - Estás bem?
            - Mais ou menos…
            Ele aproximou-se mais e eu abri os olhos para os fixar novamente nos seus. Eu não ia conseguir esquecer aquela sensação, por muito que tentasse.
            - Eu queria saber… como é que vocês arranjam a droga.
            - Bem, eu tenho uns amigos lá fora que me dão grandes doses durante os fins-de-semana, e assim eu tenho sempre alguns comprimidos de reserva.
            - Hum… tu não vais seguir o meu conselho e parar com isto, pois não?
            - Não é tão fácil quanto julgas.
            - Eu sei o que tu passas por causa da droga. Esqueces-te que também sou viciada nisto?
            Ele não ripostou e eu continuei.
            - Mas se tentares com muita força de vontade, consegues ultrapassar.
            - Eu não sou forte a esse ponto.
            - Então esses músculos todos só servem para o desporto?
            Ele esboçou um meio sorriso sarcástico que me fez sentir que estava a ganhar.
            - Vá lá Brand. A tua vida era melhor antes da droga, tenho a certeza.
            - Por acaso…
            - Era, de certeza. Não te apetece voltar a ser o Brand de antigamente?
            Ele suspirou e cerrou as mãos em punhos.
            - Se eu deixar a droga a Kalissa deixa-me.
            Apeteceu-me gritar com ele quando disse aquilo. Como é que ele conseguia colocar a situação naqueles termos?!
            - Brand, a Kalissa não interessa para nada. Ela é uma cabra. Está só a usar-te. Já te disse isto montes de vezes… mas se não queres acreditar, não acredites.
            - Eu amo-a.
            Os seus olhos tornaram-se mais brilhantes nesse momento. O seu rosto aproximou-se do meu enquanto a sua voz baixava de tom.
            - Não me imagino sem ela. Dantes achava que podia arranjar todas as miúdas que queria, elas vinham a correr para os meus braços. Nenhuma delas me dava prazer nem dificuldade de conquistar. Eram apenas… miúdas. Umas atrás das outras. Mas quando eu conheci a Kalissa… ela é diferente, é fantástica, fomos feitos um para o outro.       
            - Ela é má. - Murmurei, com a voz embargada.
            - E achas que eu sou algum príncipe encantado?
            O sarcasmo na sua voz fez-me recuar um pouco, enquanto pensava numa maneira de contornar a questão.
            - Tu não és mau. Gostas de te armar em valentão, de teres a tua reputação bem estável. Mas lá no fundo… até és boa pessoa. E a Kalissa conseguiu despertar esse teu lado sensível. Eu bem vejo a maneira como olhas para ela, como falas e lidas com ela. Não é nem parecida com aquela que utilizavas para a Mariah.
            - A Mariah era gira e popular. Essa era a única razão para eu andar com ela. Ela é… fútil, vazia, sem qualquer interesse.
            - Mas ao menos não era demoníaca. A Kalissa usa as pessoas para seu próprio proveito. Mais tarde ou mais cedo ela vai deixar-te… e o que farás nessa altura?
            Ele não respondeu. Inspirei fundo - o seu perfume fortemente masculino entrou em mim com uma intensidade redobrada - e preparei-me para continuar a batalhar contra as suas vontades. Aquela conversa de madrugada estava a ser esquisita, eu nunca imaginara que me pudesse encontrar no quarto de Brand durante a madrugada a falar sobre droga e sobre Kalissa, com tanta intimidade e tanta profundidade como fazíamos, e ainda assim estávamos ali os dois.
            - Brand… tu és um rapaz fixe. A sério. Eu tenho a certeza que vais encontrar outra rapariga e que vais ser mais feliz com ela. Porque a Kalissa… mais tarde ou mais cedo ela vai magoar-te.
            - Ela ama-me! - Rosnou ele baixinho.
            Desisti. Não havia maneira de o fazer mudar de ideias. Levantei-me e não tornei a olhar para ele enquanto saía do quarto.
            - Vais magoar-te, acredita em mim. - Murmurei, antes de fechar a porta.
            Fiz o caminho de regresso ao meu quarto, sempre a pensar porque é que me preocupava tanto com Brand. Eu não devia importar-me com ele, Brand escolhera Kalissa de livre vontade e eu nada podia fazer para o impedir de se magoar.
            Quando cheguei ao meu quarto, tentei não fazer barulho enquanto entrava para a cama e fechava os olhos. Talvez conseguisse adormecer. Precisava de reunir forças para o dia seguinte.


            Não cheguei a adormecer, mas quando o despertador super irritante de Niza começou a tocar, e ela lhe mandou um murro para o calar, eu soube que estava na hora de me levantar. Saltei da cama e quase corri para a casa de banho. Sentia-me cheia de energia e ansiosa por descobrir a verdade. Tomei banho rapidamente, penteei-me e vesti-me.
            - Estás cheia de pressa hoje. - Riu-se Niza.
            Sorri-lhe e acabei de colocar os brincos.
            - Vou agora falar com o meu padrinho. 
            - Devias vir comer connosco primeiro.
            - Não é preciso, não tenho fome. Mas depois conto-vos como a conversa correu, está bem?
            - Sim, obrigada.
            Saí do quarto e atravessei o corredor a correr, subindo as escadas até aos aposentos do meu padrinho. Sentia-me ansiosa, as minhas mãos tremiam levemente.
            Bati à porta três vezes e ouvi a voz do meu padrinho a dar-me ordem para entrar. Respirei fundo, enchi-me de coragem e abri a porta.
            - Kiara!
            Ele estava espantado por me ver. Levantou-se da sua grande poltrona e veio abraçar-me.
            - Olá John.
            - Estás bem?
            - Sim, sinto-me óptima neste momento.
            - Ainda bem. Entra, senta-te por favor.
            Fechou a porta enquanto eu me encaminhava para a cadeira onde me costumava sentar quando vinha ao seu escritório. Depois ele foi sentar-se novamente na poltrona e ficou a olhar para mim.
            - Então… o que te trouxe cá?
            - Preciso de falar consigo. O assunto é sério.
            - Hum…o que se passa?
            As minhas mãos tremiam mais do que nunca, mas eu era forte e ia conseguir aguentar toda a conversa.
            - Ontem estive… a falar com o Chris e… surgiu um assunto para o qual eu não tenho resposta. Um dos muitos, claro.
            - Sim, e o que queres saber?
            - Bem… eu sei que o assunto é delicado mas… eu gostava que me falasse sobre os meus pais.
            Os olhos de John arregalaram-se de surpresa. Claro que ele não esperava aquilo.
            - Queres que te conte… toda a história?
            - Sim, por favor.
            - Mas os teus tios não te falaram neles?
            - Sim, mas… o meu tio evitava o assunto. Era algo doloroso para ele. E talvez também o seja para si, mas ainda assim eu insisto. Gostava mesmo que me contasse tudo o que sabe sobre eles.
            John uniu as mãos sobre o tampo da sua secretária cheia de papéis e recostou-se na poltrona, como um pai que se prepara para contar uma história muito grande e difícil à sua filha problemática.
            - Então prepara-te. Vou contar-te tudo o que sei, tudo o que aconteceu de que me lembre. Espero que aguentes até ao fim.
            - Eu controlo-me. - Prometi.
            Então John suspirou e começou a contar a sua história.
            - Eu conheci o teu pai quando ficámos na mesma turma, no nono ano de escolaridade. O teu tio era dois anos mais novo que o teu pai, por isso ainda estava no sétimo ano, noutra escola diferente da nossa. Eu estava na idade de socializar com toda a gente e tentar fazer o máximo de amigos que pudesse. E o teu pai era uma pessoa… interessante. Simpático, mas um bocado reservado de mais para a idade, sempre metido nos seus assuntos e nas suas teorias, muito dedicado aos estudos. As suas notas eram as melhores da turma. Mas não um rato de biblioteca completo. Também gostava de jogar futebol e basebol quando o convidávamos para fazer parte da equipa. O teu tio era quase o oposto: estava sempre pronto para participar em todas as actividades e as notas dos testes não eram muito altas, mas ainda assim conseguia safar-se bem. Com o passar do tempo eu fui desenvolvendo uma amizade com os dois irmãos. Estávamos juntos em todos os tempos livres e até competíamos para arranjarmos as namoradas mais giras e populares.
            Sorri. Pareciam três adolescentes absolutamente normais. Os olhos do meu padrinho brilhavam enquanto ele recordava esses tempos dourados da sua vida.
            - O teu pai era o menos fanfarrão do grupo. Claro que sabia apreciar as raparigas e fazia imensos comentários, mas tinha uma verdadeira aversão a envolver-se em compromissos sérios. Ele vivia para os estudos, como já deves ter percebido.
            - Mas isso mudou, certo? Quando ele conheceu a minha mãe.
            - Sim. Os anos passavam e nós acabávamos sempre por ficar na mesma escola. Ele e o teu tio eram verdadeiros irmãos para mim, fazíamos tudo uns pelos outros. Quando havia alguma confusão, tentávamos sempre ajudar-nos mutuamente e safar o outro dos problemas. Quando acabámos o 12º ano, cada um de nós foi para uma Universidade diferente, mas não perdemos o contacto. Falávamos todos os dias e encontrávamo-nos muitas vezes. O teu tio tinha uma namorada nova em cada semestre, e eu e teu pai estávamos sempre a dar-lhe na cabeça por causa disso, e a dizer-lhe que devia assentar de uma vez por todas.
            Aquela era uma faceta que eu desconhecia no meu tio. Que ele era um homem cheio de energia e sempre pronto a divertir-se eu já sabia, mas a fase de mulherengo passara-me completamente ao lado.
            - Passado pouco tempo de ter entrado para a Universidade, a vida do teu pai mudou radicalmente, e tudo porque ele conheceu uma bela rapariga chamada Elleanor Phillips.
            Eu reconheci o nome da minha mãe e esperei-me para a altura em que chegariam as informações que eu realmente desejava.
            - Eles apaixonaram-se. - Afirmei, sem qualquer dúvida.
            - Sim. Eram apaixonados um pelo outro e pela Ciência. Descobriram que partilhavam a maioria dos interesses. O teu pai apresentou-me e ao teu tio a sua namorada e nós ficámos muito espantados por ele ter encontrado alguém que preenchesse na perfeição os seus requisitos. E quando eu vi a tua mãe pela primeira vez… percebi logo o porquê de ele gostar dela.
            - Achava-a assim tão bonita?
            O rosto de John assumiu uma expressão deliciada, com as covinhas a formar-se nas suas bochechas e a fazê-lo parecer vinte anos mais novo.
            - Tal como deves saber, ela era igualzinha a ti. Só os olhos é que são diferentes. Os teus olhos azuis acinzentados são os do teu pai. A tua mãe tinha os seus num leve tom de avelã. De resto, és uma fotocópia dela. Cada vez que olho para ti me lembro dela. Era uma pessoa encantadora. Tão bonita, tão cheia de vida, tão interessada nos estudos quanto o teu pai e ao mesmo tempo, cheia de vontade de se divertir. Foi ela quem despertou no teu pai o interesse pela música, pelo cinema, pelo teatro. Quem os visse juntos teria a certeza que eles eram as almas gémeas um do outro.
            - O meu tio concordava com o namoro deles?
            - Sim, claro. Tens de tentar perceber, Kiara… tanto eu como o teu tio estávamos muito contentes por o teu pai ter encontrado alguém, por se ter apaixonado. Era o nascer de um novo Gregory. E assim que ambos terminaram a Universidade, com notas excelentes claro, foram morar juntos. Casaram-se um ano depois. Foi uma cerimónia muito bonita, claro.
            - Pois. John… daqui para a frente é mais importante. Eu preciso de saber algo em concreto.
            - Ai sim? Então por que é que não disseste logo?
            - Eu gostei de ouvir o resto.
            - Hum… mas então o que queres saber?
            Cheguei-me mais para ele, baixando o tom de voz automaticamente.
            - Eu preciso de saber como foi que… a Kalissa nasceu.
            John ficou em estado de alerta, claro. Ele não esperava aquela pergunta. Hesitou imenso antes de responder.
            - Acho que ninguém sabe ao certo.
            - Mas… eu preciso de saber… entenda, eu quero saber se sou mesmo eu a filha de Gregory e Ellen Williams, se não é a Kalissa.
            Mais uma vez, ele demorou a responder, e isso fez a ansiedade crescer dentro de mim.
            - Kiara, ninguém tem a resposta para isso.
            Engoli em seco. Bem me parecia que assim era. Ninguém me podia dar garantias de ser a verdadeira herdeira dos William.
            - Mas não penses nisso, querida. De certeza que tu és a filha do meu amigo, não há duvidas disso.
            - Eu tenho certas dúvidas. John… a minha tia sempre me disse que eu e a Kalissa fazemos as trocas de personalidade desde bebés. Portanto, como é que eu posso ter a certeza que é ela a parasita e não eu?
            - Por que é que colocas as coisas nesse termo? Para mim, não há uma parasita.
            Tentei entender o ponto de vista dele, mas era uma tarefa complicada.
            - O que quero dizer é que o teu corpo e o dela são os mesmos. Eu sei que não é fácil aceitares o que te vou dizer, mas eu não creio que haja realmente uma parasita. Vocês as duas são filhas do Greg e da Ellen. Mesmo que esta seja uma situação inédita e terrível, é assim mesmo.
            Ele até que tinha razão, e eu conseguia entender isso, mas não podia aceitar. Era uma realidade demasiado má.
            - Mas John… os meus pais devem ter feito alguma coisa para eu nascer assim! Só pode ser!
            O meu padrinho ficou pensativo por momentos mas depois acabou por assentir com a cabeça e fitar-me intensamente.
            - Eu também já tinha pensado nisso.
            - Então entende a minha dúvida? Sabe a resposta?
            - Não. Quer dizer, não tenho a certeza. Mas acho que a minha teoria é forte o suficientemente para se tornar possível.
            - Diga-me o que pensa, por favor.
            - Então, eu acho que tudo se resume aos estudos que os teus pais faziam. Como sabes, eles eram cientistas brilhantes. E eu acho que… a certa altura, as ideias deles se foram tornando tão espectaculares que eles ganharam adversários. Pessoas que não queriam que essas descobertas se tornassem públicas. E eles sabiam que andavam a ser perseguidos.
            - Eles sabiam?! E não fizeram nada para se proteger?
            - Eles tentaram Kiara, mas não é tão fácil quanto pensas. Eles viviam escondidos e passavam a maior parte do tempo no laboratório que tinham em sua casa, a testar esta e aquela fórmula revolucionária.
            - John… eles estudavam sobre o quê exactamente?
            - A tua mãe concentrava-se mais no trabalho da mente humana. O sonho dela era inventar uma poção que permitisse às pessoas verem o futuro. Claro que era um sonho muito impossível, mas os teus pais nunca desistiam de nada. Pelo contrário, o teu pai estudava mais acerca do mundo físico. Ele queria descobrir uma maneira de…
            John interrompeu-se e pareceu ficar em choque. Os seus olhos arregalaram-se de espanto. Eu não sabia o que estava a acontecer.
            - O que se passa?
            Ele nem pareceu ter-me ouvido.
            - John… ele queria descobrir uma maneira de quê?
            Ele voltou a olhar fixamente para mim e quando falou o seu tom de voz assustou-me, deixando-me com pele de galinha.
            - Ele queria descobrir… uma fórmula que permitisse à pessoa que a tomasse trocar de identidade, ser capaz de controlar os seus alter-egos quando os tivesse.
            O meu queixo descaiu-se de surpresa e a voz ficou presa dentro de mim. Era aquela a resposta que eu sempre procurara.
            A razão para eu ser como era.
            Comecei a tremer enquanto a ideia se entranhava em mim, enquanto eu ia tomando noção de tudo o que acontecera.
            - Kiara… tem calma… - Avisou John, ao ver o meu estado.
            Mas eu estava demasiado chocada para conseguir responder-lhe. Levantei-me da cadeira e comecei a andar de um lado para o outro, enquanto dentro de mim um grito de terror se formava, esperando para se escapar por entre os meus lábios fortemente cerrados.
            - Kiara, ele nunca chegou a descobrir um químico que permitisse esse desejo doido. Nem a tua mãe. Eles apenas gostavam de ter descoberto. Não é como na história do Dr. Jekyll e do Mr. Hide.
            - Mas ele descobriu… - Murmurei, com a voz embargada pelo medo.
            Olhei para as minhas mãos e vi-as tremer. O meu pai deixara-me naquele estado. Eu não sabia bem como nem porquê, mas ele tinha feito com que a Kalissa nascesse dentro de mim ou eu dentro dela.
            O meu padrinho levantou-se, contornou a secretária e aproximou-se de mim, preocupado com a minha reacção.
            - Como é que tens a certeza disso?
            - Não se vê logo?! Ele deve ter feito alguma coisa para conseguir que eu e a Kalissa habitássemos dentro do mesmo corpo.
            - O que estás a dizer? Kiara, o teu pai jamais te magoaria a esse ponto, ainda por cima de propósito! - Exclamou John.
            - Eu não estou a dizer que ele me queria magoar. Mas não tenho qualquer dúvida: foi a fórmula qualquer que ele inventou que fez com que eu ficasse assim!
            - E achas que a tua mãe a tomou enquanto estava grávida de ti? Como se fosse uma droga?
            - Sim! Essa é uma boa ideia… deve ter sido isso…
            A sensação que me consumia agora era de repulsa e de medo. Não havia nada que eu pudesse fazer naquele momento. Os meus pais tinham andando a tomar drogas e poções esquisitas e tinham criado a demónia dentro de mim. Escondi o rosto entre as mãos e lutei contra a vontade de me revoltar.
            - Tem calma. De certeza que eles não sabiam que ia terminar desta maneira.
            - Eles não deviam sequer ter tentando! Podiam ter-me matado ainda dentro da barriga da minha mãe. Não quero acreditar que foram eles que me deixaram neste estado… ou à Kalissa.
            - Na verdade Kiara, eu não sei se isto vai ajudar muito, mas na altura em que tu nasceste… e depois de a tua mãe ter morrido… o teu tio fez umas análises ao teu sangue, pois eu tinha-lhe contado a minha teoria e ele queria saber se tu eras mesmo filha do irmão dele.
            - Ele fez bem em pedir as análises. E… sabe os resultados?
            - Sei. Tu és mesmo filha do Gregory e da Ellen.
            Suspirei e baixei o rosto. Aquilo não me deixava a sentir melhor.
            - Mas John, isso não ajuda realmente muito. O meu sangue é igual ao da Kalissa, portanto, ela também é filha dos meus pais.
            - Foi o que eu quis dizer desde o início. Vocês são… apenas o lado bom e o lado mau da minha sobrinha.
            Aquela era uma perspectiva perante a qual eu nunca tinha olhado.
            - Como um anjo e um diabo? - Perguntei.
            - Exactamente. Tu és o lado bom, e ela o lado mau.
            - Eu não sou angelical a esse ponto, John.
            - Mas é a maneira como eu vos vejo. Portanto… acho que não vale a pena continuares a procurar uma maneira de te veres livre dela. Eu gostava apenas que conseguisses controlá-la melhor. - Explicou.
            - Não posso fazer mais do que aquilo que faço agora.
            - Eu sei disso. Mas eu tenho a esperança de que, com o passar do tempo, se torne mais fácil mantê-la à distância.
            - Eu gostava realmente que fosse assim.
            Suspirei. A conversa com John dera-me ainda mais assuntos em que pensar.
            - Bem, eu acho que já tenho as respostas que precisava. - Suspirei.
            - Óptimo. É bom saber que te ajudei nalguma coisa.
            - Sim. Agora vou embora. Eu quero… ir às aulas hoje.
            - Achas que estás preparada para isso?
            - Sim, sinto-me controlada. Quero recuperar a matéria que perdi para ver se ainda consigo passar de ano, o que acho muito difícil.
            John parecia concordar mas não disse nada em voz alta.
            - Vou andando. Obrigada por tudo.
            Abraçou-me uma última vez e depois deixou-me ir. Saí do seu escritório a sentir-me mais confusa que nunca. Se ao menos o meu pai fosse vivo eu podia perguntar-lhe o porquê de ter testado as suas ideias mirabolantes na própria filha.
            Quando cheguei ao meu quarto, apressei-me a colocar dentro da mochila os livros e o restante material escolar que precisaria para esse dia e depois enchi-me de coragem. De certeza que os professores iriam fazer comentários sarcásticos sobre a minha ausência prolongada. Mas ainda assim não desisti. Segui até à sala de aula de Matemática. Aquela quarta-feira ia mudar o rumo da minha vida.
            Bati à porta da sala de aula e passados poucos segundos ouvi a voz do professor a dar-me ordem de entrada. Quando me viu entrar, ficou tão espantado que nem soube o que dizer. O silêncio constrangedor que se instalou na sala fez-me arrepiar. Todos os olhos se cravaram em mim, atónitos face à minha presença inesperada.
            - Menina Williams? - Gaguejou o professor, atarantado.
            - Peço desculpa pelo atraso. Posso entrar? - Pedi, num murmúrio.
            O professor acabou por ceder e eu encaminhei-me para o meu lugar. Fiquei sozinha, uma vez que Niza e Sophie tinham passado a sentar-se juntas desde que eu deixara de ir às aulas. Os olhos de ambas eram os mais arregalados. Estavam estupefactas por eu ter voltado.
            Sentei-me e tirei o livro e o caderno da disciplina de dentro da mochila, peguei na caneta e comecei a passar o que estava escrito no quadro. E a aula recomeçou, com o professor a tentar recuperar a atenção dos seus alunos, mas todos continuavam a olhar para mim. Senti-me a corar cada vez mais, mas tentei mesmo ignorá-los. Concentrei-me na aula e apesar de não perceber grande coisa do que o professor explicava, tentei resolver os exercícios e ele até teve a gentileza de me explicar por alto aquilo que tinham estado a dar na minha ausência.
            Quando essa aula chegou ao fim seguimos para Físico-Química, e enquanto a professora da disciplina entrava e organizava os seus materiais - e se mostrava chocada com a minha presença - Niza olhou para mim e sorriu abertamente.
            - É óptimo ter-te de volta.
            - Obrigada.
            - Como é que te sentes?
            - Bem. Ainda estou a sentir-me bem.
            Ela assentiu e depois a professora ordenou-nos que parássemos de falar e começou a dar a aula, ignorando-me completamente como se eu não tivesse voltado para a sua turma. Até era melhor assim. Eu podia passar mais ou menos despercebida.
            Assim que tocou para a hora de almoço arrumei as minhas coisas e segui com Niza e Sophie até ao nosso quarto, para lá deixar a mochila. De seguida fomos para o salão de refeições e os rapazes já estavam sentados à nossa espera. Fomos buscar a comida e sentámo-nos com eles. O silêncio que se instalou à minha volta era muito forte e propositado. Baixei o olhar para o garfo, sem querer enfrentar os olhares ansiosos dos meus amigos, mas quando o braço musculado de Chris me rodeou a cintura eu suspirei e levantei a cabeça.
            - OK. O que é que querem saber?
            Niza olhava para mim com a pergunta tão visível nos seus olhos verdes cintilantes que nem era preciso falar. Sophie, sentada ao lado de Ryan, tamborilava com as unhas no tampo da mesa, impaciente. Peter inspirou prolongadamente, talvez a tentar manter-se calmo, e a sua testa estava franzida de preocupação.
            Estavam todos à espera da grande revelação.
            - Como é que correu a conversa com o teu padrinho? - Perguntou Chris em voz baixa.
            Pousei o garfo e preparei-me para lhes contar o que tinha descoberto.
            - Correu mais ou menos. Em vez de ficar mais esclarecida ganhei mais preocupações para me tirarem o sono durante a noite.
            Niza mordeu o lábio inferior, apreensiva.
            - Mas pronto, eu conto-vos a conversa toda…
            Suspirei e comecei a fazer o relato pormenorizado. Quando cheguei ao fim, Sophie arregalou os olhos de espanto mas ninguém se atreveu a comentar. Acho que estavam todos tão chocados quanto eu.
            - Mas sendo assim… os teus pais fizeram de ti uma cobaia?! - Gaguejou Ryan, perplexo.
            - De mim… ou da Kalissa. Não sei qual de nós é a filha original.
            Até me custava usar aquele termo. Deitei a cabeça no ombro de Chris e tentei acalmar-me. Se ao menos pudesse perguntar aos meus pais o porquê de terem feito aquilo… seria tudo muito mais fácil.
            - O teu padrinho acha que tu és a parte boa e que a Kalissa é a parte má. Nisso todos concordamos com ele. - Disse Peter.
            - Mas toda a gente tem um lado bom e um lado mau. Eu também tenho um lado mau e não é só a Kalissa.
            - Isto é tudo muito confuso! - Resfolegou Sophie, passando a mão pelo cabelo e desviando o olhar do meu.
            - Eu sei. Peço desculpa por vos estar a incomodar com esta confusão toda. Vamos continuar a comer, a sério. Não quero pensar mais nisto.
            - Está bem. Até porque temos trabalhos de casa para fazer a seguir. Vens às aulas da tarde, não é?
            - Sim, acho que ainda me aguento até lá.
            Mas não aguentava. E mesmo que não quisesse, que tentasse lutar contra isso, aconteceu tudo muito depressa. Mais depressa até que nas vezes anteriores. Era como se eu estivesse a ser electrocutada. Tentei gritar mas a minha voz desapareceu, e enquanto eu era assolada por tremores violentos, comecei a deixar de ouvir e de ver. Chris agarrou-me antes que eu pudesse cair para trás no banco e eu senti-me a ser sugada para o poço escuro. Lutei para me agarrar à realidade, tentei manter-me à superfície do lago escuro, mas a força que me empurrava para baixo era mil vezes superior à minha. Dei-me por vencida e a parede de tijolos na minha mente explodiu, desfazendo-se em mil pedacinhos. Uma gargalhada maléfica ecoou dentro da minha cabeça antes de eu perder os sentidos.


            Abri os olhos e pestanejei para focar a visão. As manchas escuras foram-se tornando mais nítidas, assim como as cores, e aos poucos e poucos os restantes sentidos vitais voltavam até mim. Abri a boca e inspirei uma longa golfada de ar.
         Ah! Quão saborosa era a vitória!
         - Kia? Estás bem? O que aconteceu? - Gritou Chris, amparando-me pelos ombros.
         Afastei-o com um safanão. Eu estava a recuperar a força no meu corpo. Quando consegui ficar totalmente controlada, ergui as minhas barreiras mentais e prendi Kiara no fundo da minha cabeça, no poço escuro de onde não a deixaria sair assim tão cedo. Depois respirei fundo para acalmar os batimentos cardíacos e olhei para Niza, Sophie, Ryan e Peter, que me observavam estupefactos.
         - Olá, bando de anormais.
         Peter rangeu os dentes ao aperceber-se do que tinha acontecido. Mas não esperei pela reacção dele. Levantei-me, libertando-me dos braços de Chris, que estava atónito a olhar para mim, e passei a mão pelo meu longo cabelo louro, tirando-o da testa e compondo-o para me dar um ar menos desolado. Depois dirigi à minha plateia horrorizada um sorriso mesquinho.
         - A Kiara foi-se.
         Dei meia-volta e saí do salão de refeições. Precisava de saber quanto tempo tinha passado desde dia 31 de Dezembro. Não podia ser assim tanto. Quase desatei a correr até ao dormitório de Brand. Precisava de falar com ele. Odiava realmente despertar do controlo de Kiara e deparar-me logo com Chris.
         Quando cheguei ao quarto do meu namorado, bati à porta insistentemente. Ninguém veio abrir por isso decidi entrar. Não estava lá ninguém. Encolhi os ombros despreocupadamente e tornei a fechar a porta, para depois me dirigir à secretária e abrir a gaveta onde estavam os comprimidos. Tirei dois de ecstasy e fui buscar um copo com água. Depois de tomar a droga aproximei-me da janela e olhei para o exterior.
         A paisagem continuava a mesma desde a última vez que eu estivera no controlo: neve por todo o lado. O céu apresentava um tom de cinzento carregado e podia começar a chover a qualquer momento. Cruzei os braços e respirei fundo.
         Kiara tinha andando a fazer das suas. Não era preciso que ninguém me dissesse isso, eu simplesmente sabia-o.
         Não tive de esperar muito tempo até a porta do quarto se abrir e Brand aparecer, olhando-me com o espanto bem evidente no seu belo rosto. Virei-me para ficar de frente para ele mas não disse nada. Deixei-o habituar-se à realidade e quando ele fechou a porta e se aproximou lentamente de mim, esbocei o sorriso que sabia que ele mais gostava.
         - Olá. - Murmurei.
         Ele sorriu-me também, com os olhos a brilharem de entusiasmo, e abraçou-me fortemente. Rodeei o seu pescoço com os meus braços enquanto ele rodopiava no centro do quarto abraçado a mim. Depois os seus lábios uniram-se aos meus e eu deixei-me levar pelo momento do reencontro. Brand era a única pessoa de quem eu sentia falta quando não podia controlar o meu corpo. Tudo o resto era escumalha, mas o meu namorado fazia-me sentir bem, viva, bonita e poderosa. E eu não me imaginava sem ele.
         - Voltaste! - Gaguejou, tão feliz que parecia ir explodir a qualquer momento.
         - Sim. Quanto tempo é que passou?
         - Hoje é dia 2 de Janeiro.
         Hum… fiz as contas rapidamente e descobri que só estivera ausente durante três dias. Não era assim tanto. Tornei a beijar Brand e quando separei os meus lábios dos seus, preparei-me para começar o interrogatório.
         - Ela fez algo de mal?
         - Não.
         - Ela recuperou o controlo durante a noite, não foi?
         - Sim. Quando eu acordei já não estavas deitada ao meu lado e descobri logo o que tinha acontecido. Ela foi a correr para os braços do Chris, claro.
         - Não te preocupes com isso. Hei-de arranjar maneira de separar aqueles dois.
         - Kali… não te preocupes com isso. Eu estou tão contente por teres voltado! - Sorriu ele.
         Aquilo era estranho. Normalmente ele ficava entusiasmo face a qualquer oportunidade de prejudicar Chris. Por que é que de repente se mostrava tão condescendente?
         - Estás bem? - Perguntei, preocupada.
         - Estou óptimo, agora que voltaste.
         E tornou a beijar-me, dando a conversa por encerrada. E ele tinha razão: eu teria imenso tempo para tratar de Chris. Agora estava na hora de comemorar o meu regresso. Entreguei-me ao beijo e afastei os pensamentos sobre o namorado da minha inimiga.


         Depois de ter matado as saudades de Brand, desci com ele até à Sala de Convívio, onde o nosso grupo estava reunido. Quando me viram chegar fizeram uma grande festa, principalmente as raparigas, que estavam entusiasmadas por terem a sua chefe de claque de volta. Os rapazes também se mostraram satisfeitos com o meu regresso. Afinal de contas, três dias não eram nada e a minha rotina voltaria ao normal. 
         Sentei-me ao lado de Brand num dos sofás e deixei que ele colocasse o seu braço em redor dos meus ombros. Era aquele o meu lugar. Sem mais preocupações.
         - Sabes Kali… a Kiara tem andando com umas ideias novas desde que recuperou o controlo. - Começou Brand, parecendo receoso em tocar no assunto.
         - Ai sim? Que ideias são essas?
         - Ela quer deixar a droga.
         Revirei os olhos e emiti uns estalidos com a língua em sinal de desprezo. Como se ela chegasse a conseguir algo desse género.
         - E tu deste-lhe ouvidos?
         - Claro que não querida! Ela não tem razão nenhuma.
         - Acho bem que penses assim. Não te esqueças que quem manda aqui sou eu.
         Ele sorriu-me apaixonadamente e beijou-me. Meredith, Terry e Penny, que estavam sempre de ouvido nas nossas conversas, apoiaram a minha ideia.
         - O padrinho dela está a ajudá-la. Anda a dificultar-nos a vida e não nos quer deixar sair do colégio para irmos buscar droga. - Alertou Brand.
         - Esse também deve ter-se esquecido do nosso acordo. - Vociferei.
         Por amor de deus, eu era afastada durante três simples dias e aquela víbora já começava a magicar planos para me estragar a vida, e claro, o padrinho e os amiguinhos estúpidos apoiavam-na. Mas ela que não pensasse que ia conseguir o que queria.
         - Eu vou falar com o John e relembrá-lo das condições que lhe impus, não te preocupes. - Sussurrei.
         - Está bem meu amor. É tão bom ter-te de volta.
         Sorri. Ele sabia sempre o que dizer para me fazer sentir melhor.
         Nesse momento, Sophie apareceu ao meu lado, com cara de poucos amigos, e Brand pareceu ficar irritado com a presença dela.
         - Posso falar contigo, Kalissa?
         - Já estás a falar. - Respondi, sem sequer a olhar directamente.
         - A sós.
         Suspirei dramaticamente.
         - E o que é que te leva a crer que tens o direito de falar comigo?
         - Isso não és tu quem decide.
         Olhei para ela, apetecendo-me desfazê-la. Aquela Sophie já sabia que não devia enervar-me, mas ainda assim estava sempre a provocar-me. O que é que ela queria afinal? Que eu me lançasse a ela?
         - Não fales assim com ela! - Rosnou-lhe Brand, numa atitude defensiva.
         - Não falei contigo. - Rugiu Sophie, cruzando os braços e elevando o queixo numa atitude convencida. - Eu e a Niza queremos falar com a Kalissa a sós. É importante.
         - Não me apetece ir falar convosco. - Sorri, sentindo o doce sabor de estar a tocar no ponto fraco dela, de estar a conseguir irritá-la.
         - Kalissa, aconselho-te a vir. Está muita coisa em jogo neste momento. E tenho a certeza que o que temos para falar contigo é do teu interesse. - Vociferou Sophie, semicerrando os olhos.
         Revirei os meus mas acabei por ceder. Eu tinha todo o tempo do mundo para estar com Brand e com o meu grupo, podia prescindir de alguns minutinhos e ainda ganhava a oportunidade de ver Niza a choramingar como uma criança mimada. Levantei-me e quando Brand se preparava para vir comigo, fiz-lhe sinal que tornasse a sentar-se.
         - Eu sei defender-me sozinha. Já volto.
         Sophie pareceu ficar satisfeita com a minha decisão em acompanhá-la. Deu meia-volta e dirigiu-se aos sofás onde Ryan, Peter, Chris e Niza estavam sentados, do outro lado da grande Sala de Convívio. Segui atrás dela e quando nos aproximámos o suficiente, Sophie sentou-se na única poltrona do conjunto e cruzou as pernas. Eu preferi ficar de pé, apesar de Chris me ter oferecido o lugar ao seu lado.
         - Nem penses que me vou sentar ao teu lado, verme reles.
         Niza crispou as mãos no braço do sofá e lançou-me um olhar assassino, que eu ignorei logo de seguida.
         - Despachem-se. O que têm para me dizer? Não tenho a tarde toda.
         Sophie e Ryan entreolharam-se por momentos e depois voltaram a cravar os olhares irados em mim.
         - Como o teu queridinho namorado já te deve ter informado, a Kiara está a tentar deixar a droga.
         - Ah sim, eu já soube dessa ideia mirabolante.
         - Não é mirabolante! É a decisão mais acertada a tomar neste momento! - Rosnou Niza, parecendo com vontade de me esfolar o pescoço.
         - Não me interessa. Ela não vai conseguir.
         - Por que é que tens de continuar com isto, Kalissa? Tu não precisas da droga, então por que é que continuas a consumir? - Atirou-me Ryan, levantando-se bruscamente.
         - Isso não é da vossa conta.
         - Por acaso até é. Esse corpo é o da minha namorada e não vou permitir que continues a estragá-lo como fazes. - Vociferou Chris, levantando-se também.
         Ele podia tentar parecer alto e forte como Brand, mas não lhe chegava aos calcanhares. Ri-me das figuras tristes deles.
         - Ouçam lá, quem é que vos convenceu que têm algum poder sobre mim?
         - Nós não queremos ter poder sobre ti.
         Olhei para Niza e fiquei espantada com as suas palavras. A raiva parecia ter-se dissipado do seu rosto, sendo substituída por uma expressão de pesar e desolação, e parecia mesmo estar a falar verdade quando disse aquilo.
         - Então por que é que estão só a dar-me ordens e a julgar a maneira como eu sou e aquilo que faço?!
         - Porque nós queremos o bem da Kiara. Ela é a minha melhor amiga. É natural que eu tente protegê-la de ti, não achas?
         - Não vale a pena esforçares-te tanto, sua santinha enjoativa. Ninguém vai conseguir protegê-la de mim.
         Niza desviou o olhar do meu e parecia à beira das lágrimas. Boa. A minha tarde estava a ficar cada vez melhor.
         - Kalissa, por que é que não podes simplesmente resignar-te quanto à ideia de teres a Kiara dentro de ti? Por que é que não podem tentar dar-se bem e partilhar os interesses?! - Ryan estava quase tão desesperado como a amiga.
         - Isso é impossível. Eu jamais concordaria com alguma ideia daquela estúpida. A Kiara só existe para me atrapalhar a vida.
         - Ela pensa o mesmo de ti. - Murmurou Sophie rispidamente.
         - Pois, tenho imensa pena.
         - Mas tu podias deixar a droga. Não vês o mal que ela te faz?
         - E dar-vos esse prazer? Nem pensar.
         - Tu vives pelas aparências, pelas opiniões das outras pessoas. Se nós te pedíssemos que te continuasses a drogar para sempre, tu farias exactamente o contrário e deixavas imediatamente a droga. Parece que a tua única missão de vida é infernizar as pessoas à tua volta! - Vociferou Niza, os olhos marejados de lágrimas.
         - Que brilhante conclusão a que tu chegaste! Demoraste imenso tempo, não foi? Ah, esqueci-me: a tua inteligência não chega para mais.
         Sophie não aguentou mais tempo e lançou-se para cima de mim, agarrando-me os cabelos. A dor fez-me entrar em estado de alerta. Arreganhei os dentes e cravei-lhe as unhas nos braços. Ela rugiu de dor enquanto me deitava abaixo e rebolámos no chão e eu tentava tirá-la de cima de mim.
         - VAIS ARREPENDER-TE DE TODAS AS COISAS QUE DIZES! - Rugiu ela, tentando arranhar-me a cara.
         Preguei-lhe um estalo, fiz força nas pernas e consegui virar-me, ficando por cima dela. Finquei-lhe o joelho na barriga e ela gemeu de dores, enquanto eu lhe batia com a cabeça no chão. Estava na hora daquela cabra aprender a meter-se com gente da sua laia. Imediatamente Ryan, Peter e Chris saltaram sobre nós, tentando separar-nos, mas eu tinha o cabelo de Sophie bem preso entre os meus dedos, e enquanto ela gritava de dores eu tentava abocanhar-lhe um dos braços. Queria fazê-la sofrer para que percebesse de uma vez por todas que não tinha o direito de me falar daquela maneira.
         O som ensurdecedor dos berros de Sophie e dos rugidos dos amigos dela, que tentavam separar-nos, deixava-me desorientada. Havia braços por todo o lado, mãos que me puxavam para trás e para ambos os lados, e o meu cabelo a tentar ser arrancado da cabeça. De repente um dos braços que se dirigia ao meu pescoço, tentando envolvê-lo para me arrastar de cima de Sophie, começou a asfixiar-me e eu mordi-o com todas as minhas forças. Chris gritou de dores e largou-me imediatamente. Entretanto, Peter passara o braço em volta da minha cintura e puxou-me para trás. Eu arranhei-o em todos os locais onde tive acesso e Sophie conseguiu levantar-se. Deitou-me abaixo e ficou por cima de mim, gritando como uma louca, tentando arranhar-me e bater-me. Chris tinha-se afastado e eu tive um breve vislumbre da zona vermelha no seu braço, onde os meus dentes se tinham ferrado na carne dele. Mas não havia tempo para pensar nisso: Sophie continuava em cima de mim. Apelei a todas as minhas forças para a afastar. Ela ia pagá-las, mais tarde ou mais cedo.
         Mas algo estava a acontecer. A minha cabeça parecia ir explodir de dores. E não era apenas por Ryan me continuar a puxar os cabelos nem por Sophie me bater com a cabeça no chão por diversas vezes. A dor vinha dos confins da minha mente e parecia ir dilacerar-me. Tudo à minha volta se transformou num borrão de tinta negra enquanto eu perdia o controlo no meu corpo. Mas ainda assim, continuei a tentar debater-me e ainda consegui esbofetear Sophie uma última vez.
         Depois tudo se dissipou numa nuvem cinzenta.


         Havia dor por todo o lado, gritos ensurdecedores, e à medida que eu ia recuperando o controlo no meu corpo, tentei afastar o peso que se encontrava sobre mim. Usei as mãos, os braços, as pernas, mas havia demasiadas coisas a prender-me ao chão e a atacar-me. O que estava a acontecer? O que tinha Kalissa feito daquela vez? Ainda me doía muito a cabeça mas a visão estava a ficar mais nítida. Alguém me rodeou o pescoço com ambas as mãos e o apertou demasiado. Eu comecei a não conseguir respirar. Tossi para tentar aclarar a garganta mas não conseguia. Cravei as unhas nas mãos de quem me atacava e tentei afastá-las do meu pescoço. Estava a ficar zonza pela falta de oxigénio. Abri os olhos e deparei-me com um par deles, da cor do caramelo, furiosos e assassinos, muito próximos dos meus. O cabelo da minha inimiga era castanho e ondulado, da cor do chocolate. E eu reconheci aqueles olhos. A expressão neles deixou-me tão aterrorizada que comecei a gritar.
            - Sophie, pára! - Rugiu Peter.
            - ELA VAI ARREPENDER-SE DO QUE DISSE! - Vociferou Sophie.
            - A KIARA ESTÁ DE VOLTA! ESTÁS A ATACAR A TUA AMIGA! - Gritou Chris, assustado.
            Mas Sophie não parou. A raiva que consumia a minha amiga era muito forte e ela continuou a tentar asfixiar-me. Eu apelei a todas as minhas forças para tentar falar.
            - Sophie… sou eu… a Kiara… pára por favor…
            E foi então que o aperto dela afrouxou. Eu inspirei uma longa golfada de ar e Ryan afastou Sophie de cima de mim, puxando-a para trás. Eu não tinha forças para me levantar, pelo que me mantive no chão, a arfar para conseguir recuperar o bater normal do coração e para parar de tremer. Chris aproximou-se com ar de quem não tinha a certeza se eu teria voltado mesmo ou não.
            Por que é que Sophie estava a tentar matar-me?!
            Aquela ideia era horrorosa. Paralisou-me no chão e não me deixou mexer. Não conseguia gritar nem chorar sequer. Estava demasiado chocada para isso. Olhei para a minha esquerda e vi Niza a chorar, de joelhos no chão e com um ar desolado. Inspirei fundo para arranjar coragem e massajei a zona do pescoço dorido onde os dedos finos de Sophie o tinham apertado demasiado e onde as suas unhas afiadas se tinham cravado na minha carne.
            - Kiara? És mesmo tu? - Perguntou Peter, confuso.
            - Sou… - Balbuciei.
            Chris suspirou de alívio e ajudou-me a sentar no chão. Tossi para aclarar a voz e isso fez-me doer mais ainda a garganta. Depois olhei para Sophie e vi os seus olhos arregalados de terror. Durante uns segundos nenhuma de nós falou, mas depois ela rastejou até mim e abraçou-me delicadamente.
            - Desculpa…
            - O que é que te passou pela cabeça?! - Gaguejei, sentindo a minha a latejar imenso e a voz fraca.
            - Ela estava a lutar com a Kalissa. Não sabíamos que já tinhas trocado com ela. - Explicou Chris.
            Sophie recuou e fixou os olhos assustados nos meus.
            - Eu não queria magoar-te, juro… perdoa-me…
            - OK, OK, já percebi! Mas Sophie… estavas a lutar contra a Kalissa?! O que é que aconteceu?
            A minha voz soava histérica, tal como eu estava naquele momento. A ideia de Sophie a lutar contra aquela demónia terrível fez com que um arrepio me subisse pela espinha. Chris acariciou-me os cabelos.
            - Ela insultou a Niza. Eu não me controlei. Ela tinha de aprender uma lição, de uma vez por todas!
            - Oh Sophie… ela estava apenas a tentar tirar-te do sério! Não devias ter cedido!
            Puxei-a de novo para os meus braços e apertei-a contra mim, sentindo um medo enorme que Kalissa a pudesse ter ferido. E foi então que descobri um arranhão profundo na maçã do rosto de Sophie, vermelho e a sangrar. Os meus olhos arregalaram-se ao entender que ela tinha a face oposta toda vermelha, com a marca da mão de Kalissa bem expressa. A marca da minha mão…
            - Oh Sophie… lamento tanto!
            Abracei-a outra vez. Niza tinha parado de chorar e aproximou-se.
            - Nós tentámos separar-vos, mas ela é tão forte…
            Sophie recuou e eu sentei-me melhor. Observei os meus braços. Eles doíam-me imenso e descobri um arranhão idêntico ao de Sophie, mas no lado esquerdo do maxilar. Suspirei. Como é que eu deixara que a situação chegasse àquele ponto?!
            - KALI?!
            Olhei para trás quando chamaram o nome dela. Era Brand. Debruçou-se junto a mim, com o rosto contorcido numa máscara de preocupação.
            - Sou a Kiara. - Murmurei.
            Ele ficou sem saber como reagir. Eu via nos seus olhos que ele queria perguntar-me como eu estava, mas com os meus protectores em volta de mim soaria demasiado mal. Por isso levantou-se e adoptou a pior atitude que podia ter tomado: semicerrou os olhos de fúria e ergueu o queixo em ar triunfante.
            - Quando a Kalissa voltar, que venha ter comigo.
            Deu meia-volta e foi-se embora. Mas antes que eu pudesse ter tempo para reclamar com ele, os braços de Chris rodearam-me pela cintura e ele ajudou-me a levantar. O meu padrinho entrou na sala nesse momento.
            - O que é que se passou aqui?! - Rugiu ele.
            Olhei à minha volta. A maioria dos alunos do colégio devia estar ali reunida, num círculo à minha volta, com ar desorientado e assustado. Suspirei. Como na maioria das vezes, eu era o centro das atenções. Olhei para Chris e implorei em silêncio que me tirasse dali.
            - Mr. Clarckson, ela precisa de sair daqui. - Disse ele em voz baixa.
            John assentiu e estendeu-me a mão. Dirigi-me até ela e deixei que o meu padrinho me amparasse.
            - Vocês os quatro, venham comigo. - Disse ele para os meus amigos e o meu namorado.
            Seguimos todos com ele até aos seus aposentos.
            Durante o percurso nenhum de nós falou. John parecia enervadíssimo, mas eu sabia que ele ficaria mais calmo assim que soubesse o motivo da gritaria que se tinha instalado na Sala de Convívio. Olhei por cima do ombro para Sophie e ela corou imenso quando os nossos olhares de cruzaram. Eu sabia o que ela estava a sentir. Culpar-se-ia pelas minhas feridas durante imenso tempo. Mas não me doía parte nenhuma no corpo, além da cabeça e do coração. Esse batia tão depressa que parecia ir sair-me do peito.
            - Entrem. - Vociferou o meu padrinho.
            O seu guarda abriu-lhe a porta para o escritório e eu entrei ao seu lado, seguida por Chris e Ryan, Peter, Niza e Sophie. Os guardas tornaram a fechar a porta e o meu padrinho largou-me, encaminhando-se para a sua grande poltrona. Sentou-se lá e suspirou dramaticamente, fixando o olhar furioso no meu.
            - Muito bem, podem começar a explicar o que se passou lá fora.
            Chris avançou até ficar ao meu lado e entrelaçou os dedos da sua mão nos meus. Inspirei fundo e senti a calma a invadir-me. Dirigi um sorriso tímido de agradecimento ao meu namorado por estar a usar os seus dotes naquele momento. Depois tornei a olhar para o meu padrinho.
            - John… a Kalissa e a Sophie discutiram e ao que parece estavam a lutar quando eu recuperei o controlo do meu corpo. Juro que não fazia ideia do que estava a acontecer.
            - Hum… Sophie Lennox, aproxima-te. - Resmungou John, mais calmo que antes. Tal como eu previra, quando ele soubesse que Kalissa estava no meio daquela história, ficaria mais sereno.
            Sophie aproximou-se até ficar do meu outro lado, oposto ao de Chris, e olhou para John, com ar de gatinha amedrontada que desejava estar em qualquer lugar menos em frente do director do colégio, que naquela altura tinha um ar muito ameaçador.
            - Por que é que discutiste com a Kalissa?
            - Bem… eu fui chamá-la para falar com ela. A Niza, o Chris, o Ryan e o Peter concordaram comigo em como devíamos explicar-lhe a situação e pedir-lhe que deixasse a droga. Ainda pensámos que ela pudesse dar-nos ouvidos. Mas ela ainda gozou mais com a nossa cara, e insultou a Niza. Eu não admito que ela fale com a minha amiga naquele tom.
            John assentiu com a cabeça e olhou para Niza, que ainda parecia ir desatar a soluçar a qualquer momento.
            - Niza Portman, confirmas a história da Sophie?
            - Sim, senhor director.
            - Esta situação não é nada do meu agrado.
            - John, eu peço desculpa. Tudo isto é culpa minha. - Respondi.
            Ignorei os olhares chocados de Chris e Peter. Tudo o que me interessava era que John acreditasse em mim. E os olhos astutos do meu padrinho cravaram-se nos meus.
            - Eu não devia ter deixado que a Kalissa se soltasse. Peço desculpa.
            - Kiara, todos sabemos que tu não tens…
            - Não. - Interrompi-o bruscamente e elevei a voz. - A culpa é minha e prometo que vou fazer a Kalissa pagar por todo o mal que tem andando a fazer. Não permitirei que ela torne a magoar um dos meus amigos.
            Olhei para o meu grupo, e todos estavam espantados com as minhas palavras, mas ninguém se atreveu a contradizer-me. Tornei a olhar para o meu padrinho e inspirei fundo.
            - Por favor não castigue a Sophie. É fácil passarmo-nos da cabeça quando lidamos com a Kalissa. - Murmurei.
            John olhou de soslaio para a minha amiga e expirou pausadamente, como se não soubesse que decisão tomar, mas no fim acabou por agitar a mão no ar como se nos mandasse sair.
            - É claro que não a vou castigar. Também tenho vontade de bater na Kalissa quando ela se arma em esperta comigo.
            Sophie sorriu mas corou imenso.
            - Obrigada John. - Sorri-lhe.
            - Não faço isto apenas por ti, mas para ser justo. Agora podem ir se quiserem. Acalmem os vossos colegas e… Kiara, como está a correr a desabituação da droga?
            - Bem. Ainda não tomei nenhuma dose hoje. - Respondi.
            - Isso é muito bom. Mas por via das dúvidas, arranjei-te isto. Acho que vai ajudar imenso.
            Abriu uma das gavetas da sua secretária e tirou de lá uma caixa rectangular de cartão, toda preta. Passou-ma para as mãos. Eu fiquei curiosa. O que estaria ali dentro? Chris e Ryan aproximaram-se, observando a entrega por cima dos meus ombros, ambos tão curiosos quanto eu.
            - Abre. - Ordenou o meu padrinho.
            Tirei a tampa da caixa e os meus olhos arregalaram-se de espanto.
            Dentro da caixa estavam mais de vinte saquetas transparentes, cheias de pó branco, assim como outras tantas cheias de comprimidos. Tornei a olhar para John sem saber o que dizer, e o sorriso apaziguador dele fez-me sentir melhor.
            - Obrigada. Nem sei como lhe posso agradecer.
            - Eu sei uma óptima maneira de fazeres isso: cura-te da droga.
            Assenti com a cabeça e depois tornei a fechar a caixa.
            - Essa droga tem um efeito menos radical que o haxixe, a heroína, a cocaína ou o ecstasy, por isso talvez tenhas de tomar mais que dois comprimidos de cada vez, mas tenta sempre reduzir as doses, OK?
            - Sim, compreendi tudo.
            - Óptimo. Agora vão, tenho muito que fazer hoje.
            Chris rodeou a minha cintura com o seu braço musculado e levou-me consigo para fora dos aposentos de John. Niza, Sophie, Peter e Ryan seguiram-nos pelo corredor fora sem dizerem nada até nos afastarmos cerca de vinte metros do escritório do meu padrinho. Depois Sophie olhou fixamente para mim.
            - Kiara, mais uma vez…
            - Pára. - Sorri-lhe, não a deixando terminar a frase. - Já sei o que vais dizer. Mas não tens culpa do que aconteceu. Eu compreendo que te tenhas passado da cabeça com as palavras daquela cabra. A sério. Não estou chateada contigo.
            - Mas eu ia-te estrangulando!
            - Eu estou bem. E tu? Dói-te alguma coisa?
            - A cabeça. - Riu-se ela.
            - Pois, então já somos duas.
            E depois irrompemos em gargalhadas alegres. Sophie abraçou-me e seguimos assim até ao nosso dormitório. Estava quase na hora da aula de Biologia e Geologia. Os rapazes despediram-se de nós para irem ao quarto deles buscar as mochilas, enquanto eu, Niza e Sophie íamos ao dormitório buscar as nossas coisas para as aulas.
            Eu sentia-me cansada, dorida, mas melhor que antes.
            Tinha falado com John e ele concordara em não castigar Sophie, e até me tinha arranjado a "droga de ajuda" que me prometera.
            E o melhor de tudo era que, apesar de Sophie ter lutado com Kalissa, não estava realmente magoada. Eu não me perdoaria se aquela demónia ferisse irremediavelmente a minha Sophie.
            - Kiara? Vamos? Está quase na hora da aula.
            A voz de Niza despertou-me dos pensamentos e eu assenti com a cabeça, aproximando-me da secretária.
            - Acho melhor tomar um ou dois comprimidos, para me aguentar durante a tarde.
            - Concordo. Não vai fazer-te mal. - Respondeu Sophie, escovando o seu longo e bonito cabelo cor de chocolate.
            Abri a caixa e peguei numa das saquetas de comprimidos, tirando dois deles. Fui à casa de banho encher um copo com água e tomei a droga. Depois olhei-me ao espelho antes de sair.
            OK… o meu olho esquerdo estava a ficar arroxeado na zona onde se formavam as olheiras quando eu não dormia bem de noite. E o meu lábio superior estava rachado e inchado. E o meu maxilar estava esfolado e arranhado pelas unhas de Sophie. Mas ainda assim, eu estava apresentável. Suspirei e só me apeteceu esganar Kalissa.
            Depois saí da casa de banho, e passando pela secretária, peguei na minha mochila e segui com Niza e Sophie para fora do quarto.
            Agora havia uma tarde inteira de aulas para aguentar.