quarta-feira, 13 de abril de 2011

Capítulo 11


A Clareira da Árvore Velha





            A noite de Ano Novo passou melhor do que eu podia imaginar.
            Quando acordei na manhã seguinte, dia 1 de Janeiro, deixei-me ficar deitada na cama durante mais uns minutos, a apreciar a doce sensação de ter sido forte o suficiente. Tornei a fechar os olhos e um sorriso desenhou-se nos meus lábios. Kalissa não se tinha soltado. Mesmo com a droga e o álcool a actuarem dentro de mim, eu fora capaz de a manter longe do poder. E essa ideia fazia-me sentir vitoriosa, capaz de tudo para proteger aqueles que amava.
            - Kiara? Bom-dia!
            Niza lançou-se para o meu lado e deitou-se, com aquele seu sorriso radioso de cada manhã.
            - Olá. - Sorri-lhe também.
            - Como te sentes?
            - Muito bem. A sério.
            - Não estás a precisar de… nada? - Perguntou ela, em voz baixa.
            - Não Niza, está descansada. Estou perfeitamente controlada neste momento.
            Ela suspirou de alívio e depois aninhou-se nos lençóis, fechando os olhos.
            - Gostaste da noite de ontem? - Perguntei.
            - Foi fantástica. A sério, ainda conseguiu ser melhor que a noite de Natal. - Respondeu, sem olhar para mim.
            Eu não concordava com esse ponto mas preferi não dizer nada. Para mim, a noite de Natal tinha sido o culminar da minha felicidade, o ponto máximo da minha estadia no colégio, e também a passagem para uma manhã infernal na pele de Kalissa.
            - A Sophie ainda está a dormir?
            - Sim, ela ontem veio do quarto do Ryan por volta das três da manhã, deve estar ferrada que nem uma pedra.
            Abafei as gargalhadas e os olhos verdes cintilantes da minha melhor amiga cravaram-se nos meus, intensamente.
            - A Kalissa está controlada, não está?
            - Sim. Eu prometo que vou fazer os possíveis e os impossíveis para a manter longe. No que depender de mim, ela não voltará assim tão depressa.
            - Óptimo. Eu acredito mesmo que vamos vencê-la.
            - Não sei… ela é forte…
            - Tu és muito mais.
            A veracidade com que Niza disse aquilo, a clareza dos seus olhos e do seu rosto, fez-me acreditar que dizia a verdade nua e crua. Que eu era realmente mais forte que a demónia. E isso fez-me sorrir.
            - Obrigada.
            - Eu não estou a dar graxa. Sei mesmo que se te concentrares a consegues manter à distância. Ela, pelo contrário, não consegue aguentar-te longe do controlo durante tanto tempo quanto tu o fazes a ela.
            - És capaz de ter razão.
            Niza sorriu de modo convencido e eu abafei mais uma gargalhada.
            - Tu só precisas de incentivos.
            - Incentivos?!           
            Aquilo deixou-me espantada. Que tipo de incentivos?
            - Claro. E eu acho que sei quais são os incentivos ideais para ti. O Chris, por exemplo. É o melhor estímulo que podes encontrar.
            - Explica-te melhor.
            - Bem… tens de pensar em protegê-lo em cada segundo dos teus dias. E se te concentrares essencialmente nessa tarefa, consegues manter a Kalissa longe. Mas também podes concentrar-te no Peter ou no Ryan…
            - Ou em ti e na Sophie. - Acrescentei.
            Ela corou imenso e desviou o olhar do meu.
            - Nós também somos incentivos para ti?
            - Claro Niza! Tu és a minha melhor amiga. És um incentivo perfeito.
            Os seus olhos adquiriram um brilho novo que eu adorei.
            - Obrigada. Se houver algo que eu possa fazer… para te ajudar nessa tarefa… diz, que eu faço.
            - Bem… só te peço uma coisa.
            - Sim?
            - Tem calma com a Kalissa. Não a irrites, e tenta que a Sophie também não o faça. A Kalissa vai magoar-vos até ao limite só para me prejudicar.
            Niza apresentou uma expressão mais melancólica no rosto.
            - Eu sei. Ela já fez isso imensas vezes.
            - Porque o plano dela é virar-vos contra mim. Se vos conseguir afastar… sabe que eu fico fraca e consegue manter-me longe durante mais tempo.
            - Achas mesmo que é isso?
            - Tenho a certeza.
            Niza suspirou profundamente.
            - Então ela que se prepare. Não nos vai separar assim tão facilmente.
            Sorri e deixei-me flutuar na agradável sensação de acreditar nas palavras dela. Niza também funcionava bem como talismã, acalmava-me e fazia-me acreditar na realidade em que ela vivia. Quando estava com ela era tudo mais simples. Como se eu fosse transportada para uma dimensão cor-de-rosa.
            - Obrigada. - Murmurei.
            Depois ouvimos Sophie a mexer-se e virei-me para a ver abrir os olhos, estremunhada.
            - Bom-dia! - Sorriu ela.
            - Olá Sophie!
            Niza quase voou da minha cama para fora, lançando-se para perto de Sophie. E enquanto elas conversavam sobre a noite anterior, eu levantei-me e dirigi-me à janela do quarto, afastando os espessos cortinados para poder olhar o exterior. Estava a nevar copiosamente e o manto branco que cobria o castelo engrossava cada vez mais.
            Dentro de mim cresceu a estranha sensação de precisar urgentemente de ir à clareira da árvore velha.
            Com Chris.
            Suspirei e afastei-me da janela.
            - Vou-me arranjar. Acabei de decidir os planos para hoje.
            - A sério? O que vais fazer? - Perguntou Sophie, sempre interessada.
            - Dar um passeio com o Chris.
            - Mas está a nevar tanto! - Ripostou Niza, olhando através da janela.
            - Estejam descansadas, eu não adoeço. - Ri-me.
            Depois segui para a casa de banho para tomar um banho bem quente. Quando fiquei despachada saí, enrolei o corpo numa toalha branca e voltei para o quarto, dirigindo-me ao meu roupeiro para escolher a roupa que usaria nesse dia. Tinha de ser algo quente e de preferência impermeável. Vesti-me e arranjei-me e coloquei as luvas.
            - Bom passeio. - Desejou Sophie.
            - Obrigada.
            Saí do quarto e atravessei o corredor, onde não estava ninguém. No dia seguinte os alunos que tinham ido passar o dia de Ano Novo com as famílias voltariam para o colégio, e as aulas recomeçariam. A rotina ia voltar a ser a mesma de antes.
            Segui até ao quarto do meu namorado e quando lá cheguei bati à porta. Não demorou muito tempo até Ryan vir abrir, ainda com ar ensonado.
            - Bom-dia! - Desejei, pondo-me em bicos de pés para o beijar no rosto.
            - Olá. A que se deve tanta energia logo de manhã?
            - Preciso de falar com o Chris. Ele já acordou?
            - Está a tomar banho. Entra.
            Ryan fechou a porta depois de termos entrado. Peter estava a vestir-se e virou-se quando eu entrei, sorrindo.
            - Olá.
            - Oi. Vocês já têm planos para hoje?
            - Eu vou estar com a Sophie. - Respondeu Ryan, encolhendo os ombros despreocupadamente, como se isso fosse a coisa mais óbvia do mundo.
            - E eu vou ver um filme com a Niza na Sala de Convívio. É de acção. Tem imenso sangue e destruição. Acho que lhe vai fazer bem. - Riu-se Peter.
            Eu e Ryan acompanhámos as gargalhadas dele. Depois fui sentar-me na cama de Chris, enquanto esperava que ele ficasse pronto. Ryan foi escolher a roupa que usaria nesse dia e Peter fez a sua cama depressa, acabando por deixar os lençóis todos amarfanhados. Não tive coragem para lhe dizer que a fizesse de novo. E nesse momento, Chris surgiu vindo da casa de banho, em tronco nu e com uma toalha branca em volta da cintura. Dirigiu-me o meu sorriso preferido e aproximou-se lentamente. Eu saltei da cama e corri até ele, rodeando-o com os meus braços e beijando-o entusiasticamente.
            - Bom-dia. - Desejámos um ao outro em uníssono, para depois nos desatarmos a rir às gargalhadas.
            Esperei que ele se arranjasse e Ryan e Peter saíssem do quarto. Quando fiquei sozinha com Chris, aproximei-me novamente dele.
            - Eu queria fazer-te um convite. - Murmurei.
            Chris virou-se de frente para mim, surpreendido com as minhas palavras. Rodeou a minha cintura com os seus braços e apertou-me contra si.
            - O que tens em mente?
            - Diz-me tu. - Desafiei-o, com um sorriso diabólico.
            Chris riu-se e depois os seus olhos brilharam de um modo diferente, enquanto eu abria espaço dentro da minha cabeça para o deixar ler as minhas intenções. Permanecemos em silêncio durante todo o processo. Eu também conseguia entrar na cabeça dele, era capaz de entender que ele se estava a esforçar por me entender. Sorri, dando-lhe incentivo para continuar. E passado uns segundos, as suas sobrancelhas ergueram-se de compreensão.
            - Hum… estou a ver… queres estar apenas comigo…
            - Sim… não consegues mais?
            - Kia, eu não sou bruxo, OK? Consigo entender-te mais ou menos, mas não leio realmente os teus pensamentos.
            Sorri e anui com a cabeça.
            - Está bem, eu dou-te a resposta. Quero ir contigo até à clareira da árvore velha.
            Talvez ele não se lembrasse bem do local. A única vez que lá tínhamos estado, sozinhos, fora no dia em que eu acordara e descobrira que Kalissa tinha estado a controlar-me durante três semanas, terminando o meu namoro com Chris. E eu não queria mesmo nada que essa fosse a única ocasião em que eu ia com Chris ao lugar mais mágico do castelo. Quando saísse da Blackstone Private School queria levar boas recordações comigo.
            - Não te lembras do local? - Perguntei.
            - Lembro. - Murmurou ele, com a voz grave e apreensiva.
            Foi a minha vez de suspirar e baixei o olhar para as nossas mãos unidas.
            - Eu quero ir lá contigo… aquele lugar é especial para mim. Quero estar lá contigo hoje. Pretendo ter essa boa recordação dentro de mim.
            - E tem mesmo de ser ali? Essa clareira não me traz boas memórias.
            - Pois. É por isso mesmo. Quero substituir essa má memória por uma de alegria. Vá lá Chris, faz-me a vontade. Quero mesmo ir lá.
            - Pronto, está bem. Deixa-me ir buscar um casaco.
            Sorri de felicidade. Era óptimo quando ele me fazia as vontades. Foi buscar o seu casaco mais quente e depois voltou para junto de mim, trazendo algo nas mãos.
            - Coloca isto. Está a nevar lá fora e não quero que adoeças.
            Era o seu gorro preto, o meu preferido. O sorriso no meu rosto alargou-se e as bochechas pareciam queimar de tão coradas.
            Coloquei o seu gorro e depois segui com ele para fora do quarto. Até sairmos pelas portas principais não dissemos nada, mas assim que chegámos ao exterior, a diferença de temperatura fez-me tremer de frio.
            - Ainda queres ir lá? - Riu-se Chris.
            - Claro! Anda.
            Ele rodeou os meus ombros com o seu braço musculado e abraçou-me para me aquecer, enquanto seguíamos para a clareira da árvore velha. A neve acumulava-se em todas as superfícies, dando ao colégio um ar encantado.
            Atravessámos o atalho ladeado por árvores e caminhámos sem pressas. Tínhamos a manhã toda para estarmos juntos, só nós dois, o que me deixava muito feliz.
            - Gostaste da noite de ontem? - Perguntou ele, passando algum tempo.
            Assenti com a cabeça. Estávamos agora a embrenhar-nos na floresta nevada. A clareira ainda ficava a alguns metros dali, mas o ambiente à nossa volta era tão bonito que até custava continuar em frente.
            - Foi fantástica.       
            - Posso fazer-te uma pergunta… íntima?
            Ri-me.
            - Tu és a pessoa com mais direito a perguntar coisas desse género.
            - Pois, tens razão. Então… qual foi a tua noite preferida desde que entraste para o colégio?
            Não tive de pensar durante muito tempo para lhe responder, e nem precisei de falar. Bastou-me olhar fundo nos seus olhos cor de safira e esperar que a compreensão os atingisse. Depois um sorriso vitorioso rasgou os lábios do meu amor.
            - Eu também amei a noite de Natal.
            - Foi mesmo perfeita. Ou quer dizer… quase perfeita.
            Desviei o olhar do seu ao lembrar-me do que tinha acontecido no dia seguinte. A culpa tinha sido minha. Distraíra-me e deixara que Kalissa assumisse o controlo.
            - Não penses mais nisso.
            - É difícil.
            Olhei para diante e inspirei fundo. O ar frio fazia-me arder a garganta. Aclarei os pensamentos e deixei que o meu corpo me guiasse até à clareira, pois eu nunca conseguira registar o caminho mentalmente. E com efeito, as minhas pernas moveram-se por vontade própria. Chris seguiu comigo em silêncio e em menos de cinco minutos chegámos à pequena clareira, que embora não estando tão bela quanto no Verão, continuava a parecer um local mágico. Sorri, sentindo-me feliz ali.
            - Chegámos. - Murmurou Chris junto ao meu ouvido.
            Aquiesci e aproximei-me do tronco da árvore velha. Chris largou-me para que eu pudesse tocar no tronco húmido. Depois arranjei coragem e virei-me de novo para o meu namorado.
            - Eu também preciso de falar contigo. Não vim aqui apenas para tocar na árvore.
            Ele assentiu. Claro que já esperava isso. Puxei-o para mim e rodeei o seu pescoço com os meus braços, aproximando o meu rosto do seu.
            - Disseste para eu não pensar no que tinha acontecido no dia de Natal. Espero que me dês uma maneira de o fazer.
            - Bem… tenta concentrar-te noutras coisas. As memórias más fazem com que seja mais fácil para a Kalissa soltar-se.
            Franzi o sobrolho, confusa.
            - O que te leva a pensar dessa maneira?
            - É que… eu já reparei que quando estás triste e pensas demasiado nas memórias más… ela ganha força. A Kalissa suga a tua alegria e aproveitasse dela, transforma-a em medo e terror para conseguir possuir o teu corpo.
            Eu estava sem palavras. Nunca me passara pela cabeça que Chris fosse capaz de entender tão bem.
            - Estás completamente certo.
            - Eu sei. Por isso é que te peço… que não penses tanto nas coisas tristes. O que aconteceu já passou. Há que seguir em frente.
            - No meu caso torna-se mais complicado.
            - Talvez.
            Ele encostou a testa à minha e suspirou.
            - Eu devo ser a pessoa que mais tenta controlar-se todos os dias. - Suspirei.
            O seu hálito fresco e doce misturava-se com o meu, deixando-me um pouco aluada e demasiado fixa no seu perfume delicioso.
            - Eu sei que te esforças e não te posso pedir que te sacrifiques mais do que já fazes.
            - Mas eu tenho de sacrificar.
            - Tens mesmo? - Inquiriu baixinho.
            - Claro. Por ti.
            Ele fixou o olhar no meu, inspirando profundamente.
            - Não quero que te sacrifiques por mim.
            - Mas eu quero. Quero tentar manter-te a salvo sempre que possa, em todos os momentos da minha vida.
            - Tu não és a minha guarda-costas, Kia!
            - Pois não. - Suspirei, sentindo um nó a crescer na garganta. - Mas a minha obrigação é manter-te a salvo da Kalissa.
            - Quem foi que te deu essa missão?
            - Eu dei a mim própria.
            Ele abanou a cabeça em negação.
            - Eu sei defender-me sozinho.
            - Não. Dela não sabes nem consegues. Não me contradigas, sabes que é verdade. - Murmurei.
            Durante uns segundos nenhum de nós falou. Ele sabia que eu tinha razão mas não queria dar o braço a torcer. Por fim, deu-se por vencido.
            - Tens razão.
            - Ainda bem que admites.
            - Mas não podes esperar que te deixe fazer todo o trabalho. Se nos unirmos ela não nos conseguirá separar.
            - Ela já conseguiu isso uma vez. - Balbuciei.
            Não sabia bem a razão, mas sentia o nó a engrossar cada vez mais, asfixiando-me, fazendo-me querer chorar. Comecei a tremer e não era de frio. Chris abraçou-me mais contra si e beijou-me os cabelos.
            - Nessa altura eu não sabia a verdade. Agora que sei é tudo menos complicado.
            - Achas mesmo?
            - Sim. Agora ela não será capaz de te afastar de mim, aconteça o que acontecer.
            Assenti com a cabeça e levantei-me para poder unir os meus lábios aos seus. Eu gostava de poder acreditar nisso. Acreditar que Chris permaneceria ao meu lado apesar de tudo, lutando contra Kalissa e contra todos os obstáculos. Queria aceitar que ele faria isso, pois a ideia deixava-me muito mais calma e feliz. Mas ninguém era tão forte assim, ninguém conseguia lutar tanto. Nem mesmo eu. E Chris não tinha obrigação de lutar.
            - Amo-te. - Sussurrei ao seu ouvido.
            - Também te amo.
            Beijou-me docemente e depois deixou-me ficar abraçada a si durante aquilo que me pareceu uma eternidade. Eu não queria sair dali. Fechei os olhos e deixei-me cair de cabeça no poço na felicidade momentânea, tão plena de energia e tão calmante que eu não era capaz de lhe resistir. Daria tudo para permanecer naquele momento pela eternidade.
            - Kia… eu preciso de te perguntar outra coisa.
            Abri os olhos e fixei-os nos seus, esperando a questão.
            - Mas é uma pergunta delicada e talvez não me queiras responder.
            - Eu respondo, prometo.
            Ele tirou uma madeixa do cabelo da minha testa e colocou-a atrás da orelha, sorrindo em jeito de incentivo.
            - Eu gostava que me falasses… dos teus desejos para quando saíres do colégio.
            Engoli em seco antes de lhe responder.
            - Bem… eu não sei quando poderei sair… mas acho que gostaria de ir para muito longe daqui.
            - Ai sim? Mas porquê?
            - Porque… a única certeza que tenho é que não quero voltar para Aurburn. Tenho de lá ir assim que tiver oportunidade mas depois disso não volto lá.
            - Auburn era onde moravas com os teus tios antes de vires para aqui, não era?
            Assenti. O nó tornava-se cada vez maior, dificultando-me a tarefa de falar. Contive as lágrimas ao recordar os meus tios, a única família de sangue que eu conhecera. Eles tinham morrido por minha causa. Essa ideia jamais abandonaria o meu ser.
            - Se não quiseres falar neles eu compreendo. Eu só queria saber se estavas a pensar sair dos Estados Unidos ou não.
            - Eu consigo falar. É difícil mas acho que… acho que consigo.
            Suspirei, enchi-me de coragem e deixei que as memórias fluíssem através de mim.
            - O que queres saber sobre eles? - Perguntei, mantendo os olhos fechados.
            - Tu nunca falaste muito no assunto. Queria apenas saber como era a tua vida antes de te conhecer.
            Um sorriso aflorou aos meus lábios enquanto as lágrimas rompiam a barreira do controlo e deslizavam pelas minhas faces.
            - Muito diferente do que sou agora.
            - A sério?
            - Sim. Eu mudei imenso quando entrei para este castelo.
            Ele beijou-me na testa e fez-me continuar a falar.
            - Nunca tive amigos. Não sabia o que isso era. Na escola as minhas notas eram aceitáveis mas também não me podia considerar uma aluna exemplar. E não falava com quase ninguém. Saía de casa para a escola e da escola para casa e no dia seguinte fazia o mesmo.
            - Que vida tão monótona.
            - Quando se têm um segredo horroroso como o meu não se pode dar muito nas vistas. - Murmurei.
            Ele limpou as lágrimas que me escorriam pelas faces com ternura.
            - Mas nunca te interessaste por nenhum rapaz?
            - Não. Quer dizer… eu não podia sentir-me atraída por ninguém.
            - Não podias? - Perguntou Chris, surpreendido.
            - Não. E até acho que és capaz de perceber o porquê.
            Ele assentiu com a cabeça segundos depois.
            - Mas deixar que a Kalissa te controle até esse ponto é de mais.
            - Não. Mesmo que eu tentasse ficar apenas amiga de alguém, ela metia-se sempre no meio, virava essa pessoa contra mim e fazia-a odiar-me. Com rapazes, com raparigas, com adultos ou pessoas da minha idade. Eu não podia aproximar-me de ninguém.
            A testa de Chris franziu-se de preocupação.
            - Deve ter sido difícil para ti estar aqui fechada, rodeada de tanta gente.
            - Foi muito complicado no início. Eu só queria estar sozinha. Mas depois… aos poucos e poucos fui descobrindo que vocês são imprescindíveis para mim.
            - Somos mesmo?
            - Tu ainda tens dúvidas disso? - Resmunguei.
            Ele beijou-me intensamente e eu levei isso como uma resposta negativa. Aninhei-me nos seus braços quentes e suspirei.
            - Partilhar o quarto com duas raparigas da minha idade era algo inédito para mim. Mas também… para onde podia eu ir? Com assassinos loucos à minha procura? Ansiosos por me matar como tinham feito aos meus pais e aos meus tios? John ofereceu-me abrigo aqui dentro e eu não consegui rejeitar a oferta.
            - E ainda bem que não rejeitaste. Se fizesses isso eu nunca te teria conhecido.
            - E eu nunca teria ganho forças nem saberia o que era o amor.
            Beijei-o novamente e depois fiquei a olhar para ele sem dizer nada durante uns longos minutos.
            - Por isso eu não me arrependo de ter vindo para aqui. Ter amigos verdadeiros é tão bom…
            - E olha que são mesmo verdadeiros. A Niza e a Sophie adoram-te e o Ryan e o Peter fazem tudo para te ver feliz.
            Sorri e soube que ele estava a dizer a verdade.
            - E tu completas-me. E fazes-me sentir segura.
            Ele abraçou-me com mais força ainda.
            - E vou continuar a completar e a fazer-te sentir assim durante todo o tempo que possa. Prometo.
            - Não. Não faças promessas que não podes cumprir. Vamos apenas viver o presente e aguardar pelo futuro.
            - Como queiras.
            Tornei a fechar os olhos e inspirei uma longa golfada do seu perfume delicioso que me fazia crescer água na boca.
            - Já agora… o que é que vais fazer a Auburn quando saíres do castelo?
            - Vou ver a campa dos meus tios.
            Chris ficou espantado com a minha resposta.
            - Mas… porquê esse desejo tão forte?
            - Porque eu nem cheguei a assistir ao funeral deles. Vim-me embora e abandonei-os completamente. Agora quero voltar e ir ao cemitério e falar com eles uma última vez. Para que… tudo fique como deve de ser dentro de mim.
            O meu amor assentiu e beijou-me, os seus lábios esmagavam os meus numa força avassaladoramente suave.
            - Achas que posso ir contigo?
            Aquele pedido deixou-me sem fala.
            - Sim. Vamos os dois. Eu convenço o teu padrinho. Já sei que ele não gosta muito que saias do colégio sem a sua protecção.
            - Mas…
            - E eu não aguento separar-me de ti, por isso não vejo outra solução. - Cortou-me a palavra com um sorriso.
            Suspirei e encostei a cabeça ao seu peito musculado.
            - Está bem. Vamos os dois.
            - Óptimo. Quando quiseres ir… avisa.
            - Férias de verão, muito provavelmente.
            - Está bem.
            Deixei-me ficar em silêncio por mais uns tempos. Chris fazia-me festinhas no cabelo em silêncio. Por fim, eu lembrei-me de algo que também lhe queria perguntar.
            - Tu nunca chegaste a dizer-me o que tinha acontecido aos teus pais.
            - Os meus pais divorciaram-se quando eu tinha três anos. Eu fiquei a viver com a minha mãe aqui e o meu pai mora em Los Angeles. Quando a minha mãe morreu eu pedi ao meu pai para vir para aqui porque não me queria mudar para Los Angeles. Tanto insisti no assunto que ele acabou por ceder.
            - Pois, eu até sou capaz de compreender.
            - Nós falamos de vez em quando mas não temos uma relação muito profunda. Até é melhor assim. Quando eu fizer os dezoito anos saiu daqui e vou para uma Universidade qualquer e não tenho de voltar a estar com o meu pai. Nós nunca nos demos assim tão bem.
            Sorri quando uma ideia maravilhosa surgiu na minha cabeça. Ela queria entranhar-se nas minhas memórias mais felizes, para nunca mais sair de dentro de mim. Uma ideia tão bela, tão natural e necessária, que eu me agarrei a ela com todas as forças, abraçando-me mais ao meu amor.
            - Em que estás a pensar? - Perguntou ele, em voz baixa.
            - Em coisas impossíveis de concretizar. - Segredei, e quando disse aquilo mais lágrimas rolaram pelas minhas faces, pois eu sabia que era completamente impossível de se tornar verdade.
            - No quê?
            Ele limpou as minhas lágrimas e quando eu arranjei coragem suficiente, fixei o olhar no seu e expliquei-lhe a imagem fantástica que estava cada vez mais forte dentro da minha cabeça, preenchendo cada pensamento meu.
            - Eu… estava a pensar… uma vez que tu vais viver sozinho e eu… também vou fazer isso quando puder sair do colégio… eu estava a pensar se tu gostarias de…
            Mas ele interrompeu-me com um beijo avassalador, enlaçando-me pela cintura e apertando-me contra si com tanta força que eu perdi a linha de raciocínio. Ele já tinha entendido o que eu queria dizer. Enrolei os braços em volta do seu pescoço e os dedos no seu cabelo sedoso e correspondi ao beijo. Chris rodopiou comigo nos seus braços, sem nunca deixar de me segurar carinhosamente, e depois deixou-me colocar de novo os pés no chão.
            - Claro… - Ofegou, recuperando a respiração depois do longo beijo. - Eu adoraria ir viver contigo. Kia… eu quero mesmo isso…
            - Era só uma ideia, não tens de o fazer se não quiseres.
            - Dá-me uma só razão para eu não querer ir viver contigo.
            Os seus olhos, assemelhando-se mais do que nunca a pedras preciosas, cravaram-se nos meus com uma ansiedade louca, desejosa de respostas.
            - A Kalissa. - Sussurrei, falando tão baixinho que nem tenho a certeza se ele ouviu ou não.
            Mas Chris podia nem ter ouvido a minha voz e mesmo assim tinha percebido as minhas intenções. A sua testa franziu-se de preocupação.
            - Ela seria um enorme problema. Iria magoar-te e fazer-te sofrer. Não nos daria um único segundo de descanso. Eu sei disso. - Garanti-lhe.
            Chris suspirou e beijou-me na testa com ternura.
            - Eu sei. Mas podíamos tentar vencê-la, mantê-la à distância, não é tão difícil quanto ambos pensamos.
            - É muito mais difícil. Chris… a ideia de viver só contigo é boa de mais para ser verdade. Resta-me aproveitar aquilo que tenho agora, estar contigo sempre que posso e tentar ser feliz. Não posso pedir mais nada.
            Ele afagou-me as maçãs do rosto e eu vi a dor nos seus olhos.
            - Temos de arranjar uma solução para isto. Não é apenas por nós dois… mas também pela Niza, a Sophie, o Ryan e o Peter. Temos de vencer a Kalissa para que todos fiquemos bem.
            Assenti e mais lágrimas se soltaram dos meus olhos.
            - Não sei se consigo fazer isso.
            - Vamos esforçar-nos, todos juntos, vamos conseguir controlá-la, vais ver. - A clareza com que ele dizia aquilo fazia-me acreditar que era mesmo fácil, mas eu sabia que não o era na verdade.
            - E como é que pensas conseguir vencê-la?
            Durante uns momentos, Chris ficou pensativo, magicando numa maneira de destruir a demónia que habitava no meu corpo. Finalmente, os seus olhos ganharam um brilho entusiasmado e eu soube que ele tinha encontrado um caminho.
            - Eu acho que primeiro temos de saber como é que tudo começou.
            Eu não estava a perceber o que ele queria dizer.
            - Como assim?
            - Temos de descobrir como foi que ela entrou no teu corpo, a origem da Kalissa. Tu fazes alguma ideia de como ela… nasceu?
            Eu não sabia muito sobre esse facto. A minha tia dissera-me que nós já trocávamos de personalidades desde pequenas. E eu nunca quisera descobrir a verdade porque… algo no meu interior me alertava para o facto de não querer descobrir como tudo tinha acontecido.
            - Não. Nós já fazemos as trocas de personalidade desde que ambas nascemos, acho eu.
            - Isso é complicado.
            - Pois é. Os meus tios nunca conseguiram controlar a Kalissa…
            Contive as lágrimas ao lembrar-me de todas as coisas terríveis que ela lhes fazia, de todas as vezes que eu encontrava a minha tia a chorar pelo que Kalissa lhe dizia.
            - Ela era muito má para eles? - Perguntou Chris, ao ver a expressão no meu rosto.
            - Muito mesmo. Nem te passa pela cabeça todas as coisas terríveis que ela fazia.
            - Lamento o que lhes aconteceu. Mas a culpa não foi tua Kia, e não podes continuar a culpar-te pelo sucedido.
            - Ai não? Chris, aqueles homens foram à casa dos meus tios para me matarem, e como eu fugi eles mataram-nos! A culpa é toda minha!
            Agora eu estava a chorar a sério, sem conseguir conter os soluços.
            - Tu fizeste bem em fugir. A esta hora podias também já estar morta se não te tivesses escondido.
            - Mas eu não podia permitir que eles fossem mortos por minha causa…
            - Não havia nada que pudesses fazer contra eles. A tua atitude foi perfeitamente justificável.
            - Mesmo assim eu continuo a não me sentir bem com a situação.
            - Já não há nada a fazer. E agora temos de nos concentrar em descobrir a origem da Kalissa. - Respondeu.
            - Achas mesmo que se descobrirmos isso… conseguimos vencê-la?
            - Sim. É uma questão de começarmos a procurar o porquê de ela estar dentro de ti.
            E nesse instante, eu lembrei-me de algo que me deixou realmente assustada, tanto que comecei a tremer mais.
            - Chris… ela alguma vez vos falou da sua origem? Da maneira como tinha nascido?
            - Sim, algumas vezes, a Niza contou-me que a Kalissa tinha discutido com ela e com a Sophie, dizendo que esse corpo era dela e que tu eras a parasita.
            Suspirei e revirei os olhos. Mesmo típico dela.
            - Mas uma vez que tu não sabes como ela entrou dentro de ti… temos aqui um grande problema. Afinal de contas… qual de vocês é que é a dona legítima do corpo?
            A pergunta assustada de Chris fez-me arrepiar de alto a baixo. Ele tinha razão. Se eu não arranjasse a resposta nunca chegaria a descobrir o que tinha acontecido.
            De repente, isso tornou-se nalgo prioritário. Eu tinha de descobrir. Tinha de arranjar uma maneira lógica de saber qual de nós era a filha de Gregory e Ellen Williams. E eu só desejava ser eu.
            - Não fiques assim. Vou ajudar-te em tudo o que puder. - Disse Chris, acariciando-me os cabelos.
            - Eu sei, mas não deixo de me sentir… ansiosa. E se for ela? E se este corpo for mesmo da Kalissa e eu não passar de uma parasita?
            Aquela ideia asfixiava-me de terror. Aquele corpo era meu. Eu sentia isso. O meu corpo, a minha casa… eu não era uma parasita. Mas talvez essa ideia fosse apenas motivada pelo medo que eu sentia. Talvez fosse mentira.
            - Kia, eu tenho quase a certeza que tu és a verdadeira, que esse corpo te pertence por direito. A Kalissa é que é a parasita. Confia em mim.
            Assenti com a cabeça e deixei que ele me beijasse com paixão, desejosa de fugir aos pensamentos conflituosos e à vontade de chorar. Tudo o que Chris dizia era melhor do que a realidade e eu preferia mil vezes confiar nele do que em mim mesma.
            - Sim. Eu confio em ti.
            - Óptimo. Agora acalma-te. Vai correr tudo bem.
            - OK. Eu vou tentar.
            Ele rodeou a minha cintura fina com os seus braços e beijou-me.
            - Desde que esteja junto a ti vai correr tudo bem. - Corrigi, e depois envolvi-me no beijo e tentei esquecer tudo o resto.
           




2 comentários:

  1. Oi Jess, é só para dizer
    que estou a amar este livro e o outro também!!!
    Vc é uma escritora maravilhosa, e tem todo o meu apoio!!!
    Muitooo ansiosa pelos proximos capitulos!!!
    Beijãoooo Damiga xD

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  2. Jess parabéns seu livro está cada vez melhor, vc é muito talentosa, estou amando o livro..bjos

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