quarta-feira, 1 de junho de 2011

Capítulo 16


Porque É Que Não Acreditas Em Mim?!





            Senti-me a acordar. A sensação de calma estava a esvair-se de mim para ser substituída por uma forte dor de cabeça. Voltei-me na cama e acabei por esbarrar contra algo, que se mexeu depois de eu lhe ter tocado. Abri os olhos para tentar perceber o que era e deparei-me com o rosto de Brand a menos de um palmo de distância do meu. Quis gritar mas consegui controlar-me a tempo. Tudo na minha cabeça se processou muito depressa.
            Eu estava a meio de um pesadelo. Sim, só podia ser isso.
            Tentei acalmar as respirações e os batimentos cardíacos, mas sentia-me completamente descontrolada. Brand rolou, deitando-se sobre mim, e a sua testa franziu-se de preocupação.
            - Estás bem? - Perguntou ele, parecendo preocupado.
            Como é que eu podia estar bem quando ele estava ali, deitado em cima de mim, tão prestes a beijar-me que era impossível fugir? Engoli em seco e tentei procurar uma maneira de fugir.
            - Brand… sou a Kiara.
            - Sim, sim, ontem também foste a Kiara todo o dia e depois viu-se a verdade!
            - Mas…
            - Vá lá querida, achas mesmo que me consegues enganar?
            E depois beijou-me. Sim, ele beijou-me realmente. Eu fiquei sem saber como reagir. O meu corpo inteiro paralisou, e Brand continuava a tentar fazer-me corresponder à sua carícia, mas eu não era capaz de reagir. Mesmo que quisesse afastá-lo - e queria muito - não era capaz. Depois ele recuou um pouco e fundiu o olhar cor de chocolate no meu, com uma paixão tão forte que era difícil de negar.
            - Brand, estou a falar a verdade… sou a Kiara. Não sei o que aconteceu mas já troquei com a Kalissa. E agora é a sério.
            Ele demorou uns segundos até entender o que eu queria dizer. Depois pareceu ficar demasiado chocado para fazer o que quer que fosse.
            - Por isso podes, por favor, sair de cima de mim?
            Ele assentiu com a cabeça e rolou de cima de mim. Sentei-me apressadamente na cama, tapando-me com o lençol. Corei imenso ao perceber que estava apenas em roupa interior. Oh meu deus… como é que isto chegou a este ponto?!
            - Brand… que dia é hoje? - Perguntei.
            No meio do emaranhado de perguntas que gritavam dentro da minha cabeça, aquela era a mais urgente de todas. Ele sentou-se também, mantendo-se a uma distância segura de mim.
            - É segunda-feira, 30 de Janeiro.
            O meu queixo descaiu-se de surpresa.
            30 de Janeiro… o aniversário de Sophie tinha sido ontem!
            - Oh não…
            - O que se passa?
            Virei-me para ele, sem saber o que perguntar primeiro. O pânico crescia dentro de mim. A certeza que Kalissa tinha feito alguma asneira no dia anterior entranhava-se em cada célula do meu corpo, mesmo antes de eu receber a confirmação dos meus medos.
            - A Kalissa esteve no controlo ontem, não foi?!
            - Sim… o dia todo.
            - Ai, ai, ai…o que é que ela fez?
            Brand hesitou antes de responder. Engoliu em seco e desviou o olhar do meu. O meu coração falhou uma batida. Tinha sido muito mau. Eu conseguia prever isso. Preparei-me para o choque.
            - Eles passaram o dia bastante bem. Não notei diferença nenhuma. Até julguei que fosses tu quem estava a controlar. Mas quando eram duas da manhã a minha miúda revelou-se.
            - O que é que ela fez? - Murmurei, tão assustada que ele mal me deve ter ouvido.       
            - Eu não sei bem. Mas quando cheguei ao corredor, estavam lá quase todos os alunos do colégio. O Ryan e o Chris estavam a lutar, a Sophie a chorar como uma doida, e tu estavas encostada à parede.
            - O quê?! O Ryan e o Chris lutaram?!
            - Sim. Por tua causa. Mas não sei exactamente porquê.
            Escondi o rosto entre as mãos. Doía-me muito a cabeça e mal conseguia pensar no que estava a acontecer. Mas tinha de descobrir uma maneira de resolver toda aquela embrulhada. Como sempre, Kalissa fazia as asneiras e eu limpava-as.
            - Kiara… há alguma razão para Kalissa ter escolhido logo o dia do aniversário da Sophie para fazer aquilo?
            - Há…
            Só me apetecia chorar. Como é que aquela cabra podia ser assim tão má?! Logo no aniversário da minha amiga… ela era mesmo horrorosa.
            - E qual é?
            - Ela queria vingar-se da Sophie. Tenho a certeza. E soube fazê-lo.
            - Podes crer que sim!
            Semicerrei os olhos de modo ameaçador e cravei-os em Brand, cujo sorriso maldoso desapareceu logo.
            - Desculpa. - Ele encolheu os ombros despreocupadamente.
            - Brand, ela é minha amiga!
            - Neste momento ela odeia-te tanto…
            Revirei os olhos. Ele nunca seria capaz de perceber. Levantei-me antes que me tentasse travar e comecei a andar às voltas pelo quarto, enquanto tentava acalmar-me. Sentia-me tão mal que nem era capaz de pensar em condições.
            - Acalma-te Kiara. - Disse Brand como se aquilo fosse a coisa mais normal do mundo, como se a sua namorada não me tivesse arruinado a vida.
            - Eu vou-me embora. Tenho coisas a tratar. - Respondi por fim.
            Peguei nas minhas calças de ganga, caídas no chão, e vesti-as rapidamente. Brand deixou-se cair para trás na cama, provavelmente para voltar a dormir ao ver que não conseguia fazer mais nada comigo.
            Calcei rapidamente os ténis e enfiei a camisola. Depois olhei uma última vez para Brand. Senti uma vontade enorme de lhe pedir que me explicasse melhor, mas eu sabia quem me daria todas as respostas que eu esperava ouvir. Porque apesar de não ter estado no poder no dia anterior, era capaz de imaginar que eles tinham sido castigados pela confusão que tinham provocado. E o castigo só podia ser aplicado por uma pessoa.
            - Eu volto… se precisar. - Murmurei para Brand.
            Ele levantou-se calmamente e aproximou-se de mim. Era uns três palmos mais alto do que eu, pelo que eu tinha de elevar ligeiramente o rosto para olhar para ele. Os seus lábios carnudos ficaram bem na linha da minha visão e senti o gosto da boca dele na minha, fazendo-me sentir esquisita.
            - Eles odeiam-te. - Disse ele severamente.
            - Eu sei. E tudo graças à tua querida Kalissa.
            - Ninguém a compreende além de mim. Ela odeia-os. E se aquela Sophie não a provocasse tanto não teria sofrido o que sofreu.
            - Ela é uma cabra horrorosa. Toda a gente a odeia, não apenas a Sophie. E eu prometo-te Brand… vou vingar-me do que a Kalissa fez.
            - Como se conseguisses isso…
            - Eu vou conseguir.
            Podia não ter a certeza, mas a energia que me corria nas veias e que me fazia continuar a olhar para ele era a mesma que me incentivava a afirmar aquilo. Custasse o que custasse, eu ia reparar o erro da demónia.
            - Kiara… por que é que não podes apenas esquecê-los?
            Espantei-me por ele pedir aquilo. Brand aproximou-se mais um pouco e baixou o tom de voz.
            - Podias ficar connosco. O Drake e o Allan aceitam-te, a sério. Não haverá problema. Tudo seria muito mais fácil.
            Hesitei por uns momentos. Não que estivesse sequer a pensar na sua sugestão, eu jamais podia considerar uma proposta daquele género. Eu estava sim a pensar na resposta que lhe havia de dar. Gritava primeiro e batia-lhe depois? Ou a violência física devia vir antes da verbal?
            Cerrei as mãos em punhos para me controlar. Não queira gritar com ele. Brand apercebeu-se da minha mudança de humor.
            - Tem calma…
            - Como podes pensar que eu faria isso?! - Rosnei-lhe, furiosa.
            - Eles viraram-te as costas! A Kalissa disse que o Chris nem quer olhar para a tua cara!
            Engoli em seco e senti os olhos a encherem-se de lágrimas. Já esperava que ela não se ficasse por magoar Sophie. Tinha de incluir todo o grupo na maldade.
            - Ele vai entender.
            - Ele odeia-te, assim como o Peter e a Sophie. Até a Niza está furiosa contigo neste momento! O que é que vais fazer para junto deles?!
            - Eles são a minha família.
            Eu não estava a mentir. Uma lágrima desceu pelo meu rosto. Por mais asneiras que Kalissa fizesse, não eliminaria o meu amor e a minha amizade por eles. Por muito que Chris me odiasse naquele momento, eu sabia que ele não era capaz de deixar de me amar. Só uma paixão verdadeira como a nossa superava todos os obstáculos que Kalissa nos punha no caminho. E os meus amigos estavam enervados comigo porque não sabiam a verdade. Mas quando eu lhes contasse o que realmente tinha acontecido, eles voltariam para mim.
            Ryan também. Ryan, que me salvara a vida por duas vezes, que estaria sempre ao meu lado para me apoiar, tal como me prometera.
            - Eles viraram-te as costas.
            - Eles vão voltar. Eu nunca os deixarei. A Kalissa pode esforçar-se. Pode lutar o quanto quiser para me separar deles. Mas nunca conseguirá.
            Dei meia-volta e saí do quarto, batendo com a porta com força. Contive as lágrimas que queriam soltar-se e corri pelo corredor à minha velocidade máxima. Não conseguia pensar que Brand tivesse dito a verdade.
            Onde é que eu arranjaria forças para fazer com que Chris me perdoasse, outra vez?!
            Quando cheguei à escadaria, quase tropeçava a meio, mas consegui manter o ritmo acelerado. Eu precisava de falar com John, antes de tomar uma decisão, de traçar um plano.
            O caminho para os aposentos do meu padrinho parecia nunca mais terminar. Aqueles corredores todos iguais, medievais e longos de mais, faziam-me desesperar. Eu precisava de encontrar uma solução para o meu problema. Não aguentava lidar com aquilo durante mais tempo.
            Finalmente, a porta que dava acesso ao escritório do meu padrinho surgiu diante de mim. Abrandei o passo e inspirei fundo para arranjar coragem. As minhas mãos tremiam imenso. Bati três vezes na madeira antiga e a voz de John ordenou-me que entrasse.
            Quando eu me aproximei da secretária, os olhos dele semicerraram-se de desconfiança. Senti-me mesmo mal ao ver aquela expressão no seu rosto. Normalmente John olhava-me sempre de modo compreensivo, um ar paternal que o fazia parecer mais novo e mais alegre. Naquele momento, ele parecia profundamente irritado com algo. E eu até sabia com o quê: comigo.
            - Bom-dia John. - Murmurei.
            Ele assentiu com a cabeça e indicou-me que me sentasse na cadeira em frente à secretária. Foi o que fiz, sem desviar os olhos dos seus.
            - Como te sentes Kiara?
            - Mal. E preciso da sua ajuda… não sei o que fazer.
            - Não sabes o que fazer? Eu já te dei as indicações que precisavas. - Respondeu ele, o sarcasmo bem evidente na sua voz.
            - Desculpe?
            Que indicações? E será que ele iria acreditar em mim? Eu precisava disso. Se John não confiasse nas minhas palavras, quem confiaria?
            - Ontem disse-te qual era o teu castigo. Por que é que não te estás a preparar para as aulas?
            - Houve um problema.
            - Outro? - Vociferou ele, a testa a franzir-se de irritação.
            - Sim. É que… ontem… não era eu quem estava no controlo, era a Kalissa.
            - Isso é mentira. Nunca pensei que tivesses descaramento suficiente para me mentir desta maneira!
            - Mas… não… eu não lhe estou a mentir! John, jamais lhe mentiria sobre isto! Era a Kalissa quem estava a falar consigo. Não sei o que aconteceu, acordei ao lado do Brand esta manhã e não faço ideia do porquê do Chris e do Ryan terem lutado! Por favor eu preciso de ajuda…
            O meu padrinho hesitou imenso antes de responder, como se não soubesse se devia acreditar no que eu dizia. Esperei que ele entendesse que eu estava a falar a verdade. Isso demorou demasiado tempo a acontecer e eu estava prestes a recomeçar a implorar quando ele expirou prolongadamente, como se estivesse a render-se.
            - Estás a dizer que a Kalissa se fez passar por ti durante todo o tempo?
            - Sim. É isso mesmo. Juro.
            - Tens de perceber que para mim é difícil de admitir que estás a dizer a verdade. Ela fez-se passar perfeitamente por ti. Ninguém desconfiou, nem mesmo os teus amigos.
            - Pois… o Brand disse-me que eles me odeiam.
            John não negou isso, o que me deixou ainda pior. Baixei o rosto, sentindo-me tão desesperada por ajuda que era capaz de desatar a chorar. Eu só queria apagar o dia anterior, voltar atrás no tempo, para que nada daquilo tivesse acontecido.
            - John… o que é que eu faço?
            - Não sei o que te diga.
            Escondi o rosto entre as mãos e fechei os olhos com força. Tinha de haver uma maneira de corrigir aquilo.
            - Por favor, conte-me o que é que ela fez.
            John respirou fundo e depois recostou-se melhor na poltrona.
            - Durante todo o dia não houve problema. Eu estava descansado. Não pensei que ela estivesse a fingir tão bem. Mas depois à noite, perto das duas da manhã, comecei a ouvir gritos no corredor e fui averiguar o que se passava. Foi aí que vi o Ryan e o Chris a lutar no chão. Estava tudo descontrolado. Consegui separá-los e trouxe-os para aqui, incluindo a Sophie, a Niza e o Peter, para os repreender. E eles estão de castigo.
            - Pois, eu já esperava isso. Posso saber qual é o castigo?
            - Vão ajudar a arrumar os livros da biblioteca em todos os tempos livres que tenham.
            - Hum… OK…
            Inspirei fundo e abri os olhos. Uma sensação de dormência estava a apoderar-se de mim. Aquela dormência que só sentimos quando sabemos que vamos passar por uma situação muito má e só nos apetece enfiar-nos na cama e nunca mais de lá sair. Era assim que eu me sentia. Apetecia-me dormir para sempre. Deixar que os problemas desaparecessem, se esvaíssem como pó. Mas não podia desistir.
            - Eu tenho de ir falar com eles. Não posso adiar isto por mais tempo.
            - Concordo. Mas tem cuidado. Eles estão muito desiludidos contigo.
            - Não fui eu. Não sei o que a Kalissa fez, mas não tenho culpa disso!
            John assentiu com a cabeça e eu levantei-me.
            - Estou tão farta desta vida! Não posso continuar com isto! - Respondi.
            - Eu sei. Mas não há nada que possas fazer.
            Passei a mão pelo cabelo para o tirar do rosto. Eu tremia por todos os lados. Precisava de encontrar uma maneira de travar Kalissa de uma vez por todas e impedir que ela continuasse a destruir-me lentamente.
            - Eu tenho de ir. Desculpe por tudo…
            John desviou o olhar do meu. Senti o meu coração a ficar comprimido. Eu sabia o que ele estava a sentir naquele momento, mesmo que ele não dissesse em voz alta. E a certeza de saber isso fez-me recuar uns passos. Não podia continuar a ver aquela expressão no rosto do meu padrinho. Não aguentava, simplesmente.
            - Perdoe-me.
            Virei-me e desatei a correr para fora do seu escritório. Limpei as lágrimas furiosamente. Enquanto corria, sentia-me cada vez mais ansiosa por ver Chris. Tinha de falar com ele. Só o meu namorado podia eliminar aquela dor doentia no meu peito.
            Quando cheguei ao seu quarto, parei antes de abrir a porta. Eu não estava realmente preparada para a reacção dele. E se não me quisesse ver nem falar comigo? E se me obrigasse a sair do quarto sem sequer ter ouvido a minha explicação? Como é que eu ficaria depois disso?!
            Respirei fundo para arranjar coragem. Não podia desistir já. Ela não ia vencer-me outra vez.
            Abri a porta sem sequer bater. Entrei no quarto com passos determinados, embora me sentisse desolada por dentro.
            Chris era o único que lá estava. Encontrava-se encostado à janela de parapeito largo, a olhar para a floresta lá fora. Tinha um ar tão triste, tão perdido nos seus pensamentos, que ainda pensei em dar meia-volta e deixá-lo em paz. Acho que ele merecia isso. Mas antes que pudesse tomar uma decisão acertada, ele virou o rosto para mim e passados poucos segundos, vi os seus olhos de safira a abrirem-se muito, de espanto. Não disse nada, mas eu sei o que ele pensou. Engoli em seco, contendo as lágrimas ao máximo, e fechei a porta. Depois aproximei-me lentamente dele.
            - Chris… preciso de falar contigo…
            Foi como se, ao ouvir a minha voz, ele mudasse radicalmente. A expressão de espanto no seu rosto foi substituída pela de raiva pura. Eu estaquei no meio do quarto, sem conseguir aproximar-me mais perante aquele olhar assassino.
            - O que fazes aqui? Não quero ver-te e muito menos falar contigo!
            As palavras atingiram-me como uma facada no peito, tão forte e impossível de rejeitar que me senti a desfalecer. Só com muito esforço me consegui manter de pé. A fúria nos seus olhos era tão forte que me fez recuar uns passos.
            - Por favor… tens de me deixar explicar…
            - Explicar o quê?! Queres encontrar uma justificação para me teres traído?! - Gritou ele, cerrando as mãos em punhos.
            O meu queixo descaiu-se de surpresa e eu não fui capaz de dizer mais nada. Traí-lo? Como? Com quem?
            - O quê?! Eu não te traí!
            Chris estava ao ponto de me querer matar. Eu sentia isso. A fúria emanava dele como uma onda poderosíssima, que me fez pensar que seria mais seguro ir embora, para salvar a minha pele do seu ataque eminente.
            - COMO É QUE PODES SER TÃO CABRA, KIARA?!
            Foi de mais. Naquela altura, eu já não conseguia aguentar mais.
            Caí de joelhos no chão, em cima do seu tapete, e baixei a cabeça. Respirava com dificuldade, o meu peito estava comprimido pelo desespero e o nó na minha garganta era tão grande que me dificultava a tarefa de inspirar e expirar.
            Chris avançou até ficar mesmo à minha frente, mas não consegui levantar a cabeça para olhar para ele. Não tinha coragem para olhar novamente nos seus olhos.
            - Não fui eu. Foi a Kalissa. - Balbuciei.
            - Não mintas mais! Não és capaz de admitir os teus erros?!
            - Mas não fiz nada! A Kalissa esteve no controlo todo o dia de ontem! - Respondi, levantando a cabeça para olhar para ele.
            - Eu não acredito em ti.
            As lágrimas soltaram-se dos meus olhos. Eu sabia isso. Mesmo que ele não tivesse dito em voz alta eu podia ver nos seus olhos o ódio. Ele jamais acreditaria em mim.
            - Chris, por favor… eu estou a dizer a verdade.
            - Não. Tu és apenas demasiado cobarde para admitires que me traíste com o Ryan! És uma cabra mentirosa!
            Eu não sabia o que dizer. As lágrimas desciam-me pela face sem que eu as conseguisse (ou sequer tentasse) conter. Eu já não tinha forças para mais nada.
            Ryan?!
            - Não… não… não pode ser… - Murmurei, tão baixinho que Chris não pareceu ter-me ouvido.
            Ele virou-me costas e cruzou os braços, talvez para controlar os tremores que assolavam o seu corpo tal como o meu. Tornei a olhar para o chão, sem querer acreditar no que ele dissera.
            Então era por isso que ele e Ryan tinham lutado. Por minha causa.
            Brand estava certo. Eles tinham lutado por mim. Mas em que realidade tão má isso podia ser verdade?! Como é que eu podia ter traído o meu namorado com o meu melhor amigo?!
            - Chris… tens de me ouvir… não fui eu que fiz aquilo, eu juro! A Kalissa apoderou-se do meu corpo na noite de sexta-feira e fez-se passar por mim durante todo o dia!
            - Pára de mentir! - Rugiu ele.
            - Não estou a mentir…
            Estava a falar sozinha. Ele não ouvia nada do que eu dizia. Não valia a pena continuar a implorar. Por isso encontrei as minhas últimas forças e levantei-me, apoiando-me na cama. Quando me consegui pôr de pé, limpei as lágrimas e cravei o olhar desolado no seu.
            - Tu não acreditas em mim. Não confias em mim.
            - Claro que não.
            - Chris eu amo-te! Como é que podes pensar que te trairia, logo com o Ryan?! É impossível!
            - Não, não é. Eu vi-vos aos beijos, tal como a Sophie!
            Tapei a boca com a mão para abafar o grito de terror que queria soltar-se de dentro de mim. Oh não…
            - Eu não beijei o Ryan! Por amor de Deus, acredita em mim!
            - Nunca mais.
            Abanei a cabeça em negação. Tinha de haver uma maneira de o fazer acreditar em mim. Mas como?! Todos os factores estavam contra mim.
            - Achas mesmo que eu te trocaria pelo Ryan?!
            - Não. Tu és estúpida o suficiente para tentar namorar com os dois ao mesmo tempo!
            - Cala-te Chris, não vês o que estás para aí a dizer?! EU E O RYAN?! Então e tu? E a Sophie?
            - Ontem não quiseste saber dela para nada. Conseguiste estragar-lhe o aniversário da pior maneira.
            - Eu não fiz nada, foi a Kalissa! Não vês? Era a oportunidade perfeita para ela! Podia vingar-se de todas as discussões que tivera com a Sophie! Tu viste que elas lutaram no outro dia, na Sala de Convívio! A Kalissa não esquece as coisas, ela queria vingança, e aproveitou a melhor ocasião que encontrou, e logo da pior maneira! - Expliquei, gesticulando para o ar e soluçando tanto que mal conseguia respirar.
            - Pára de inventar desculpas. Por que não vais a correr para os braços do Ryan?! Não sei o que fazes aqui comigo.
            - O meu lugar é ao teu lado!
            - Não. Já não é.
            Recuei um pouco. Não havia mais nenhuma maneira de o convencer. Eu dera tudo por tudo. O meu coração batia apressadamente, como se soubesse que faltava pouco tempo para parar de uma vez por todas. Aquela sensação era muito pior do que a que eu sentira quando me tentara afogar. Morrer por vontade própria é muito mais fácil do que morrer por desgosto. E era isso que Chris estava a fazer: a matar-me, embora não admitisse.
            - Por favor… confia em mim… eu amo-te…
            - Cala-te. Não quero olhar mais para a tua cara. Sai daqui.
            - Mas…
            - SAI!
            Baixei o rosto e mais lágrimas se soltaram dos meus olhos. Tinha chegado o momento.
            Até era natural que Chris reagisse daquela maneira, e que não confiasse em mim. Mesmo que fosse difícil de aceitar, ele tinha a sua razão. Ele já tinha passado por tantos desgostos por minha causa, tinha sofrido tanto com tudo o que Kalissa lhe fazia, que podia já ter atingido o seu topo de compaixão. Ele estava farto de mim, das minhas esquisitices e da demónia que habitava no meu corpo. Limpei novamente as lágrimas. Eu não podia obrigá-lo a ficar novamente do meu lado, a perdoar-me mais uma vez, e lidar com as consequências dos actos da Kalissa. Ainda por cima, com a certeza que ela faria os possíveis e os impossíveis para voltar a magoá-lo. Eu não podia pedir-lhe isso. Chris não merecia tanto mal. E por o amar tanto quanto amava, com todo o meu coração e a minha alma… eu tinha de o deixar em paz. De uma vez por todas.
            Recuei dois passos, e quanto mais me afastava dele, mais o nó na minha garganta crescia e mais o meu coração se apertava de desespero. Mas era a melhor atitude a tomar. Talvez, dali a muito tempo, Chris tivesse recuperado e fosse capaz de me perdoar. Mas naquele momento eu não podia pedir-lhe que o fizesse.
            - Perdoa-me.
            - Não. Vai-te embora. Não voltes a olhar para mim. - Rosnou-me.
            Olhei uma última vez para ele. Os nossos olhos fundiram-se no momento derradeiro e vi os dele inundados de lágrimas. Por muito que lhe custasse o que estava a fazer, ele achava que era a melhor decisão. E eu não podia continuar a lutar contra ela.
            - Amo-te.
            Ele virou-me a cara e eu não consegui aguentar mais tempo. Saí do quarto e fechei a porta. Comecei a percorrer lentamente o corredor, sem pensar no que iria fazer. Não conseguia pensar. A única coisa que me era permitido fazer naquele momento era chorar e morrer aos poucos e poucos, silenciosamente.
            Quando estava quase a chegar ao corredor dos dormitórios femininos, tropecei nos meus próprios pés e caí ao chão. E nem tentei levantar-me. Fiquei ali, caída, e limitei-me a fechar os olhos.
            Estava na hora de eu parar de lutar.
            De que valia continuar a sofrer? Há quase cinco meses que eu lutava todos os dias. As minhas forças tinham chegado ao limite. Chris não ia perdoar-me, Sophie e Niza odiar-me-iam para sempre, Peter e Ryan virar-me-iam as costas.
            Ryan…
            Desatei a chorar ainda mais. O meu melhor amigo estava contra mim. Como é que Chris podia pensar que eu o trocaria por Ryan? Ele era o meu talismã, a única pessoa capaz de me acalmar numa situação daquelas. Eu adorava-o, mas não o amava como ao Chris. O meu coração era todo do rapaz que o tinha destroçado violentamente.
            Enrolei-me numa bola e tapei a cara com as mãos.
            O pensamento que se formou na minha cabeça era muito forte. Demasiado potente. Não havia espaço para pensar em mais nada. E com um último suspiro, eu rendi-me.
            Kalissa, ganhaste. 

domingo, 15 de maio de 2011

Capítulo 15


A Vingança Serve-se Fria






            Na manhã seguinte, quando acordei, um sorriso desenhou-se nos meus lábios. Sentia-me muito melhor. Não tivera mais nenhum problema. Segundos depois, o despertador de Niza começou a tocar e eu estiquei o braço para carregar no botão do silêncio. Depois levantei-me e dirigi-me à casa de banho. Ia começar mais um dia na minha rotina.
            Quando fiquei pronta, esperei que Niza e Sophie se arranjassem e seguimos juntas para o refeitório. Ryan, Peter e Chris já lá estavam. Dirigi ao meu melhor amigo um sorriso rasgado, que ele retribuiu na medida exacta. Fomos sentar-nos com eles, e Chris pôs o braço em volta dos meus ombros, beijando-me docemente.
            - Bom-dia. - Disse-lhe.
            Ele sorriu-me e fundiu o olhar no meu, com uma intensidade tal que eu soube que ele tentava entender-me no mais profundo do meu ser. Deixei que ele tirasse as suas dúvidas e depois Chris tornou a beijar-me, ao ver que estava tudo bem, que eu não estava preocupada com nada.
            Nesse momento, Meredith - a rapariga que andava sempre com Kalissa, como se fosse a sombra dela - aproximou-se de nós. Separei os lábios dos de Chris e olhei para ela, espantada por a ver ali. Sophie crispou as mãos em punhos e semicerrou os olhos com raiva. Ryan teve de segurá-la e impedi-la de começar a gritar com Meredith, que parecia estar a ignorar todos os meus amigos, mantendo o olhar deslavado bem fixo no meu.
            - Kiara… posso falar contigo?
            Engoli em seco, sem saber o que fazer. O que é que ela teria para me dizer que não pudesse esperar?
            - Diz. - Respondi, sentindo-me desconfortável.
            - Hoje temos treino extra da Claque. Já que a Kalissa não está, podias ter a gentileza de vir treinar connosco? - Perguntou ela, com o sarcasmo bem presente na sua voz emproada.
            - Bem… eu acho que não haverá problema… a que horas é o treino?
            - À hora de almoço.
            - Está bem, eu vou.
            - OK. Então até logo.
            Deu meia-volta e foi-se embora. Revirei os olhos e levantei-me, antes que Niza ou Sophie pudessem disparar as acusações - como eu bem podia ver esse desejo nos seus olhos semicerrados.
            - Vou buscar o pequeno-almoço.
            - Eu vou contigo. - Disse Ryan.
            Seguimos até à mesa do buffet e eu peguei num prato, começando a servir-me das minhas panquecas com chocolate quente. Ryan mantinha-se próximo de mim para não ter de falar muito alto.
            - Vais mesmo treinar com elas?
            - Vou.
            - Porquê?
            - Porque não quero arranjar mais problemas com a Kalissa. Ela vai ficar furiosa se eu continuar a cortar-lhe todos os planos. A Claque é muito importante para ela, e se eu não for aos treinos ela é despromovida e arranja uma maneira de vos magoar. Eu até consigo imaginar uma delas.
            Ryan pousou-me a mão no ombro, silenciando-me.
            - Tem calma. Estás a entrar em paranóia.
            - Não, não estou! Achas que me posso dar ao luxo de a irritar? Tu não compreendes…
            - Kiara… eu apenas acho que não tens de ter medo dela.
            - Ai não?
            Às vezes, Ryan parecia não conseguir entender a maldade de Kalissa, a capacidade dela para me prejudicar e às pessoas que eu amava. Baixei o rosto, sentindo-me desesperada.
            - OK. Vai ao treino. Precisas de descarregar energias. Não te pode fazer mal, certo? - Disse ele, encolhendo os ombros.
            - Não.
            Voltámos para a mesa e comecei a comer. Tinha de manter-me calma porque as aulas iam requerer a minha atenção. Ryan embrenhou-se na conversa de Chris e Peter e fingiu que não sabia o que se passava comigo. Nesse momento, Brand passou pelas portas de entrada do salão de refeições, ladeado por Allan e Drake como se eles fossem os seus guarda-costas, e olhou fixamente para mim, levando-me a corar imenso. Desviei o olhar e respirei fundo para me acalmar.
            Ele não facilitava nada as coisas. Se ao menos soubesse tudo o que eu andava a passar por sua causa, deixaria de agir daquela maneira. Só o facto de olhar para mim daquela maneira me fazia rever os pesadelos que tivera com ele, o que não era nada bom.
            - Kiara? Não acabas de comer?
            A voz de Niza despertou-me para a realidade e assenti com a cabeça, levando um bocado de panqueca à boca. Depois de acabar o pequeno-almoço, segui com eles para a aula de Espanhol.
           

            Nessa noite, depois do jantar, sentei-me com o meu grupo na Sala de Convívio, como habitualmente. Estava a passar uma comédia romântica na televisão e claro que Niza e Sophie queriam ver. E embora eu tenha ficado sentada junto a Chris, abraçada a ele durante todo o filme, não consegui prestar atenção ao que decorria no televisor por um só segundo. Ryan cravou o olhar no meu a certa altura, parecendo preocupado.
            - Estou bem. - Murmurei muito baixinho, e só ele me ouviu porque até Peter e Chris tinham os olhos fixos na televisão.
            - De certeza?
            - Sim.
            - Ainda bem… olha, para o caso de ainda não saberes, a Sophie faz anos este Domingo.
            O meu queixo descaiu-se de surpresa, de choque. O quê?!
            - Não posso acreditar…
            - É mesmo. E eu precisava da tua ajuda para escolher a prenda.
            - Ryan, eu nem sei o que lhe vou dar, como é que queres que arranje ideias para o que tu lhe vais dar?! - Sussurrei, aflita.
            - Tem calma, ainda temos algum tempo.
            - Olha Kia, ele vai contar tudo ao inimigo! - Chamou Chris, levando-me a desviar o olhar de Ryan, que também se concentrou no filme.
            Agora eu tinha mais um problema (para juntar à lista que parecia infinita de problemas na minha cabeça): o que dar à Sophie como prenda de aniversário.
            Suspirei e fechei os olhos, desejando poder dormir durante cinco séculos seguidos e só acordar quando todos os equívocos e preocupações tivessem, simplesmente, desaparecido.


            A semana terminou mais depressa do que parecia ser possível. Os relógios pareciam estar a gozar comigo: quanto mais tempo precisava para pensar no presente de Sophie, mais depressa os minutos e as horas passavam. Felizmente, Niza já tinha tudo planeado.
            Na sexta-feira, antes do jantar e quando Sophie estava a tomar banho, Niza reparou que eu estava mais agitada que o habitual.
            - O que é que se passa? - Perguntou.
            - Estou preocupada com a Sophie, ou melhor, com o aniversário dela.
            - Porquê?
            - Não tenho nada para lhe dar! - Revelei, tristemente.
            Niza sorriu de orelha a orelha.
            - E tu tens um plano, claro! - Sorri, sentindo-me muito mais aliviada.
            - Sim! Eu vou amanhã à tarde com o Peter ao centro comercial. Dissemos a toda a gente que vamos ao cinema porque até está lá um filme fixe e tudo. Mas não: nós vamos comprar os presentes da Sophie.
            - Oh boa… ela nem vai desconfiar nem nada!
            - Claro que não. Queres vir connosco?
            - Não me dava muito jeito. Assim ela vai achar estranho, se fôssemos todos sem a levarmos connosco!
            - Pois, tens toda a razão… - Niza ficou pensativa por momentos mas de seguida o seu rosto iluminou-se com uma ideia genial. - OK, então fazemos assim, dás-me o dinheiro e dizes-me o que queres que compre e eu vou lá e trago-te o presente, pode ser?
            - Sim, dava muito jeito!
            - Então está combinado. - Sorriu ela, muito orgulhosa de ter o mérito da ideia que salvaria o dia mais especial da nossa amiga.
            Continuei a vestir-me para o jantar enquanto Niza tagarelava sobre a prenda que lhe ia dar: um conjunto de maquilhagem que ela tinha visto numa montra e tinha adorado.
            - Tu roubas todas as ideias boas! - Respondi.
            - Não tenho culpa de ser uma mente brilhante! - Riu-se ela, encolhendo os ombros e apertando os atacadores dos ténis.
            Passados poucos segundos Sophie entrou no quarto e eu e Niza tivemos de improvisar para ela não desconfiar.
            - Sabes aquele actor do último filme que vimos? Aquele que fazia de vilão? Ele anda com uma loura que nem é famosa! - Inventou Niza.
            Ela era óptima a improvisar. Contive a gargalhada ao ver que Sophie nem se interessara pelo rumor. Acabei de colocar os brincos e Niza piscou-me o olho sorrateiramente.
            - Vou ter com os rapazes. Até já! - Despedi-me delas e saí do quarto.
            Atravessei os corredores e subi as escadas que me separavam dos aposentos do meu padrinho. Ainda queria ir falar com ele antes do jantar e esperava que ele estivesse no escritório. Quando bati à porta, ouvi a voz dele a dar-me ordem de entrada.
            Passei pela porta e dirigi-me a ele. Estava sentado no seu grande cadeirão, a ler um documento qualquer. Sorriu-me quando eu me sentei na cadeira do costume.
            - Olá Kiara!
            - Olá.
            - Estás bem?
            - Estou. Esteja descansado, não vim cá por causa da Kalissa.
            - Ah, ainda bem. Sendo assim, o que te trouxe cá?
            - Eu queria pedir-lhe uma coisa. - Cheguei-me mais para a frente. - Uma vez que os meus bens estão na sua posse eu… precisava de algum dinheiro para comprar o presente de aniversário da minha amiga Sophie. Ela faz anos no Domingo.
            - Hum… estou a ver… importas-te que te dê o dinheiro amanhã? Não o tenho aqui comigo mas prometo que amanhã já estará tudo pronto.
            - Não há problema. Obrigada John…
            - Não te preocupes. Então e… estás a pensar sair do castelo?
            - Não! A Niza é que vai ao centro comercial e aproveita e compra a minha prenda, assim não tenho de sair daqui.
            - É uma óptima ideia. - Sorriu ele, mais descansado.
            - Mais uma vez obrigada. Agora vou andando, estou a morrer de fome.
            - Sim, vai comer. O dia correu bem, certo?
            - Sim. Andei preocupada com o presente da Sophie, mas fora isso correu tudo bem. Hoje só tomei droga uma vez, de manhã, e até agora estou a aguentar-me.
            - Não forces de mais.
            - Sim, eu sei.
            - Ainda bem. Agora vai jantar. Até amanhã.
            - Até amanhã John.
            Saí do seu escritório e lancei-me a correr pelas escadas abaixo. O meu estômago contorcia-se de fome. Quando passei pelas portas de entrada do refeitório, o cheiro da comida chegou-me ao nariz e fez-me crescer água na boca. Aproximei-me do lugar onde Chris, Ryan e Peter estavam sentados e sorri-lhes alegremente.
            - Está tudo bem? - Perguntei.
            - Sim, claro.
            - Kiara, a Niza falou contigo? Amanhã vamos comprar a prenda da Sophie. - Explicou Peter.
            - Sim, eu já sei. Ela vai levar o meu dinheiro para comprar a minha. Assim não tenho de sair do colégio. O meu padrinho não gosta nada disso, como vocês sabem…
            Ryan assentiu com a cabeça e Chris levantou-se, aproximando-se de mim e beijando-me calorosamente.
            - Vamos comer, estou cheia de fome. - Disse, quando ele separou os lábios dos meus.
            Seguimos até à mesa e eu servi-me do jantar. Depois voltámos para junto de Ryan e Peter e começámos a comer, já que Niza e Sophie nunca mais chegavam. Ryan estava de tal maneira entusiasmado com o aniversário da namorada que não parecia ser capaz de pensar em mais nada.
            E eu esperava que corresse tudo bem. Não queria mais problemas à mistura. As minhas amigas chegaram pouco depois, foram buscar a sua comida e sentaram-se connosco. E o tema do aniversário de Sophie foi completamente encerrado. A ideia de Ryan era levar Sophie a pensar que nos tínhamos esquecido do dia de anos dela, para depois lhe pregarmos uma grande surpresa.
            Sábado passou lentamente. Niza e Peter partiram para "ir ao cinema" logo depois do almoço, e como me cabia a função de manter Sophie distraída para não começar a desconfiar da saída dos dois amigos, passámos o dia todo a estudar. Eu não me lembrei de nada melhor, e Ryan e Chris juntaram-se a nós duas, pelo que ficámos a tarde toda enfiados na Sala de Convívio a estudar e a resolver exercícios.
            Niza e Peter chegaram pouco tempo antes do jantar, mas só vieram ter connosco depois de terem escondido os presentes no quarto dos rapazes, no armário de Chris, onde Sophie não iria coscuvilhar. Depois vieram chamar-nos e fomos comer.
            - Correu bem? - Segredei ao ouvido de Niza, quando Sophie não estava a ouvir.
            - Sim, muito! Arranjámos tudo o que queríamos.
            - Óptimo. Ela não desconfia de nada.
            - Isto vai ser mesmo perfeito!
            E durante o resto do serão, só falámos em coisas normais do dia-a-dia. Quando nos fomos sentar na Sala de Convívio, eu reparei finalmente que Sophie estava a ficar abatida. E apesar de todos sabermos a razão para o seu olhar tristonho, eu fiz-me de inocente e fui sentar-me ao seu lado.
            - O que se passa? - Perguntei.
            - Nada…
            - Pareces triste.
            - Não, é apenas uma dor de cabeça muito grande. Acho que preciso de tomar um comprimido qualquer.
            E depois apercebeu-se do que tinha dito e desatámos as duas a rir à gargalhada. Só mesmo Sophie para dizer as coisas da boca para fora sem pensar minimamente. Mas eu não levei a mal. Enquanto ela se recostava nos braços de Ryan, eu olhei para Niza e pisquei-lhe o olho.
            Sophie achava que nós nos tínhamos esquecido dos anos dela. Fantástico: assim a surpresa ia ser muito maior.
            Fiquei com eles a ver a série que passava na televisão, e pela primeira vez nessa semana, não pensei nos pesadelos nem em Brand nem em nada de mau. Senti-me bem por estar com o meu grupo, a poucas horas de uma festa. Sim, porque festa não é festa sem ter Sophie à mistura!


            Voltei-me na cama, enquanto despertava, e depois abri os olhos. Tive de pestanejar para os adaptar à escuridão que envolvia o quarto. Depois sentei-me melhor na cama, passando a mão pelo cabelo e observando Niza e Sophie a dormir nas suas camas.
         Depois a dor de cabeça atingiu-me em força.
         Voltei a deitar-me para trás, enquanto fechava os olhos e me esforçava por recordar o último dia em que estivera a controlar o meu corpo. Tinha sido dia 2 de Janeiro. E algo dentro de mim me alertava para o facto de ter passado muito tempo. Suspirei e levantei-me sem fazer barulho. Peguei no telemóvel de Kiara, que estava em cima da mesa-de-cabeceira, e vi o horário. Eram dez da manhã e havia um lembrete a piscar no visor "aniversário da Sophie!". Aahh… então era isso…
         Uma ideia formou-se na minha cabeça, tão depressa que me causou algum espanto, e depois tive uma enorme vontade de rir mas consegui controlar-me. Tudo estava a meu favor.
         Tinha chegado a hora de me vingar de Sophie, e eu sabia a maneira ideal para fazer isso.
         Pousei o telemóvel de novo no lugar e levantei-me. Fui à secretária lá do quarto, onde eu sabia estar escondida a caixa com a droga que o padrinho de Kiara lhe tinha arranjado, e tirei-a para fora, pegando em quatro comprimidos e tomando-os com água. Depois olhei para Sophie, a dormir pacificamente na sua cama, como uma criança pequenina. Um sorriso desenhou-se nos meus lábios. Ela podia aproveitar bem as últimas horas de felicidade. Porque quando eu começasse a pôr o meu plano em prática, ela ia sair destroçada. Pousei o copo de água em cima da secretária, inspirei fundo para me preparar e lancei-me para cima da cama dela, gritando "Parabéns!" o mais alto que pude. Sophie gritou também com o susto, mas depois apercebeu-se do que eu estava a fazer e desatou a rir. Ela não desconfiava de nada.
         - Bom-dia! - Desejei-lhe, abraçando-me a ela.
         - Obrigada! Eu pensava que se tinham esquecido!
         Niza juntou-se a mim no abraço apertado que demos à Sophie. Quando nos largámos, ela tinha os olhos marejados de lágrimas. Só que infelizmente eram lágrimas de alegria.
         - Tu achas mesmo que nos esqueceríamos do teu dia de anos, tontinha? - Riu-se Niza.
         - É que não vos vi a preparar nada durante toda a semana…
         - Isso não quer dizer nada, nós já tínhamos tudo planeado! - Menti.
         Ou se calhar até era verdade, eles podiam ter andando a esconder aquilo dela. Mas fosse como fosse, o meu plano ia resultar.
         - Eu vou buscar os presentes! - Disse Niza, levantando-se muito depressa e enfiando os chinelos nos pés antes de desatar a correr para fora do quarto.
         - E têm presentes e tudo! - Sorriu Sophie, corando imenso.
         - Claro, achas que deixávamos passar o dia sem te darmos mimos? Claro que não! - Respondi.
         Ela dirigiu-me um sorriso rasgado. E esforcei-me ao máximo para não deixar cair a máscara. Apetecia-me bater-lhe tanto, partir-lhe aquela boca, arrancar-lhe os cabelos da cabeça.
         - Estás feliz? - Perguntei.
         - Estou, mesmo a sério!
         - E tens sorte em fazer anos num Domingo. Imagina que calhava num dia de semana?! Não ia dar para fazer tudo o que temos planeado.
         - O quê? Ainda há mais?
         - Podes crer que sim!
         - Não era preciso…
         - Sophie, tu também fazes tudo por nós. É justo que retribuamos o favor, não te parece?        
         Ela sorriu e corou mais ainda. Levantou-se e encaminhou-se para o seu roupeiro, abrindo-o e colocando as mãos nas ancas enquanto decidia o que usar nesse dia.
         - Posso dar uma sugestão? - Perguntei.
         - Claro!
         - Usa aquelas calças de ganga, e a camisola preta. Essa, sim.
         Ela tirou a roupa para fora e estava a preparar-se para escolher os brincos que usaria nesse dia quando Niza, Peter, Ryan e Chris entraram pelo quarto nesse instante, a gritar os parabéns bem alto, fazendo com que Sophie ficasse de queixo caído.
         Ryan abraçou-a, rodopiando com ela nos seus braços, e beijou-a entusiasticamente. Eu desviei o olhar, dirigindo-o para Chris. Ele piscou-me o olho e eu decidi que já que tinha de imitar Kiara, mais valia agir como ela.
         Aquela era uma verdadeira prova de fogo. Seria Chris capaz de nos distinguir? Caminhei até ele e tal como eu tinha pensado, ele beijou-me sem hesitar, sem sequer pôr a hipótese de que eu não fosse a sua namorada. Parvo.
         - Vem Sophie, estão aqui os presentes! - Disse Niza, pegando na mão da amiga e puxando-a consigo até à cama, onde estavam os vários embrulhos.
         Sophie só conseguia sorrir como uma maluca enquanto pegava em cada presente e o desembrulhava. Eu não consegui prestar atenção a nada. Precisava de compor todos os factores a meu favor. Precisava de arranjar uma maneira de…
         - Oh Kiara obrigada, são tão lindas! - Gritou Sophie.
         E sem que eu estivesse à espera, ela lançou os braços em volta do meu pescoço e abraçou-me com força. Deitei um breve olhar ao que ela tinha na mão: era um par de botas de camurça. Eu quis rir-me da ironia. Como é que Kiara tivera gosto suficiente para escolher algo assim? Até nem eram muito feias, apesar de eu ter a certeza que nunca as usaria.
         - Mas quando é que compraram os presentes? Estiveram sempre comigo! - Disse Sophie, desconfiada.
         - A Niza e o Peter levaram o dinheiro de todos e foram comprar as prendas ontem. Pensaste que eles tinham ido ao cinema, não era?
         - Sim! Vocês até foram capazes de me descrever o filme e tudo! - Os olhos dela arregalaram-se de espanto.
         Ao menos aquele bando de escumalha conseguia arranjar um plano de jeito e tinham sido capazes de fazer tudo às escondidas de Sophie. Claro que os planos deles nunca se comparariam aos meus, mas eu tinha de confessar que daquela vez tinham estado bem.
         Sophie continuou a abrir os presentes e no fim apertou-nos a todos num abraço muito estreitado - eu sempre odiei estes abraços de grupo, são tão… infantis - e depois recuou, a rir à gargalhada com tanta alegria que me causava uma raiva tremenda.
         - Vamos Chris, Peter, Ryan, saiam do quarto, ela tem de se vestir! - Disse Niza, puxando Peter pelo braço.
         Depois de os rapazes terem saído, Sophie trocou de roupa e calçou as botas que eu lhe tinha comprado. Até lhe ficavam bem.
         Eu e Niza também trocámos de roupa, enquanto Sophie desfilava diante do espelho, observando as botas novas de todos os ângulos possíveis. Quando ficámos prontas seguimos para o refeitório. Elas não paravam de tagarelar sobre os presentes. Assim que passámos pelas portas do salão de refeições, eu percorri a divisão com o olhar e deparei-me com os olhos de Brand cravados em mim. Tive uma enorme vontade de correr para os braços dele, mas consegui controlar-me. Nesse momento eu tinha de ficar concentrada em Kiara. Ela não estava nada fraca, eu é que esperava há muito pelo momento ideal para atacar. Agora tinha de me esforçar para que ela não me afastasse do poder. Manter a minha inimiga encurralada no poço escuro era a minha missão principal. Missão número 2: acabar com Sophie.
         Brand desviou o olhar do meu, como se não suportasse fitar-me e não poder vir ter comigo. Cerrei as mãos em punhos. Se não tivesse de manter aquela farsa, já teria ido ter com ele.
         - Kiara, vens buscar a comida ou não? - Perguntou Ryan.
         Sorri e assenti com a cabeça, seguindo com ele até à mesa do buffet e afastando os olhos do local onde os Desportistas e o meu namorado estavam sentados. Servi-me do mesmo pequeno-almoço de sempre e voltei com o grupo dos pacóvios para a mesa.
         Durante toda a refeição, Sophie esteve sempre demasiado sorridente. E eu tinha de prestar atenção à conversa deles para me conseguir manter a par de alguma novidade.
         - Kiara, tu vais buscar as bebidas ao escritório do teu padrinho logo à noite, não é? - Disse Peter.
         - Sim, está descansado.
         - Nós pedimos-lhe que as guardasse ontem. - Respondeu Niza orgulhosamente.
         - Vocês lembram-se de tudo e mais alguma coisa, realmente… são perfeitamente capazes de organizar uma festa destas sem mim! - Disse Sophie, sorridente em exagero.
         - Não. É muito complicado mantermos tudo em ordem sem os teus conselhos. - Respondeu Ryan, beijando-a longo de seguida.
         Apoiei o queixo na mão e baixei o olhar. Se ao menos eu pudesse sair dali… o dia ia ser um inferno, eu já sabia.
         E realmente foi.
         Durante toda a manha estivemos a ver televisão, a ouvir música e a fazer um torneiro de cartas na Sala de Convívio. E se há algo que eu odeio, é perder. Por isso nem me preocupei se Kiara sabia realmente jogar às cartas ou não. Jogámos raparigas contra rapazes.
         - Bem Kiara, hoje estás mesmo inspirada! - Riu-se Peter.
         Realmente, já tínhamos ganho dois jogos graças a mim e estávamos empatadas com os rapazes. E só não conseguíamos ganhar mais porque aquelas duas parvas não sabiam jogar nada e eu tinha de fazer o trabalho todo sozinha. Chris olhava embevecido para mim, tão babado por me ver a jogar bem que não conseguia desviar o olhar de mim. E por mais que eu quisesse pregar-lhe um estalo, continuei a sorrir e a fingir que também gostava muito dele.
         Fizemos um intervalo no torneiro para o almoço, que se prolongou durante muito tempo. Houve direito a brinde e tudo. Eu ainda pensei em despejar a Coca-Cola pela cabeça de Sophie abaixo, e iria rir à gargalhada caso pudesse fazer isso, mas depois pensei que daria muito nas vistas por isso mantive-me quieta.
         Não é meu hábito preocupar-me tanto com o que as outras pessoas pensam. Mas eu tinha de compor bem o meu disfarce. E se para isso tivesse de fingir todo o dia e aguentar aquelas parvoíces sem pés nem cabeça, então eu faria isso.
         Porque nessa noite tudo ia mudar e a verdadeira Kalissa ia entrar em acção.
         A seguir ao almoço fomos novamente jogar às cartas e vimos um filme que passava na televisão. E às quatro horas da tarde houve jogo entre as turmas do 11º e 12º ano no pavilhão coberto do colégio, pelo que fomos todos ver. O jogo durou até pouco antes do jantar, e por escassas horas pude ver-me livre da fachada de "alegria histérica" e ver o meu Brand a jogar. Ele era da equipa adversária de Chris, Peter e Ryan, felizmente. Drake e Allan também estavam na equipa de Brand, por isso eu tinha todos os meus amigos a jogar com o meu namorado, apesar de ele ser quem mais brilhava em campo. Brand tem uma força, uma velocidade e uma destreza sem igual. Move-se por entre os inimigos tão depressa que eles nem se apercebem do que está a acontecer.
         Sophie e Niza não se calaram um só minuto. Gritavam e batiam palmas sem parar, sentadas ao meu lado nas bancadas. Eu queria estar junto de Meredith, Terry e Penny, a dançar na Claque, mas de certeza que Kiara ficaria ali com as amigas, pelo que não pude ir fazer o meu papel preferido: de líder.
         O jogo acabou tal como eu queria: Desportistas - 12; Escumalha - 4. E nem deviam ter marcado aqueles quatro golos - ainda por cima Ryan marcou um e pôs-se a acenar para Sophie e a dedicar-lhe o golo, deixando-a toda babada - mas não houve como os evitar.
         Depois de o jogo acabar os rapazes foram trocar de roupa e seguiram connosco de volta ao castelo. Fomos todos tomar banho e trocar de roupa e de seguida fomos jantar. Eu já me sentia mais entusiasmada. Estava quase na hora da minha doce vingança.
         O jantar passou rápido e depois eu fui aos aposentos de John buscar as bebidas, tal como Niza me disse que fizesse. Suspirei de alívio quando eles saíram do meu campo de visão. Aquele tinha sido um dos piores dias da minha vida. Não insultara nem magoara ninguém. Meu deus, que tédio.
         Bati à porta do escritório do padrinho de Kiara e ele deu-me ordem para entrar.
         - Ah Kiara, as bebidas estão aqui… não façam barulho depois da uma da manhã, já sabem as regras.
         - Claro John, não haverá problema. - Respondi, pegando na caixa que ele me estendia.
         Ele sorriu-me e depois deixou-me ir. Voltei para o quarto de Sophie, onde decorreria a festa. Quando entrei, a música já estava ligada e eles iam-se organizando. Pousei a caixa no chão, junto ao armário de Niza, e abri-a. Lá dentro estavam várias garrafas.
         - Malta, vamos lá começar com isto!
         Cada um tirou a sua cerveja e depois de brindarmos, bebemos tudo de uma só vez. Entretanto, chegou a uma música que Sophie conhecia e puxou Ryan para o centro do quarto, começando a dançar com ele. E sem saber bem como, também me vi presa nos braços de Chris, que começou a rodopiar comigo, sem deixar desaparecer aquele sorriso idiota da sua cara. Esforcei-me por retribuir o sorriso e comecei a dançar melhor com ele.
         Alheei-me de tudo o resto e concentrei-me em manter a parede de tijolos, dentro da minha cabeça, muito sólida. Não podia haver a mínima hipótese de Kiara se soltar nessa noite.
         - Gostaste do dia? - Perguntou Chris baixinho junto ao meu ouvido.
         - Sim, foi fantástico! - Menti.
         - Ainda bem.
         Depois pegou no meu queixo e levantou-o gentilmente, para me poder beijar. Eu quis afastá-lo mas consegui conter o impulso a tempo. Arranjei coragem e enrolei os braços em volta do pescoço dele, enquanto continuávamos a dançar. Eu não podia dar nas vistas.
         E descobri que beijar Chris nem era assim tão mau quanto isso. Ele podia não saber beijar tão bem quanto Brand, mas ainda assim não era uma má sensação. Relaxei-me nos seus braços e fechei os olhos. OK… Brand não se ia passar da cabeça comigo, porque supostamente era Kiara quem estava a beijar Chris. Ele enlaçou-me pela cintura e a sua língua roçou na minha.
         Depois a música mudou radicalmente e trocámos de pares. Fiquei a dançar com Peter. Hum… a sensação era diferente. Ele não era tão bom dançarino como Chris. Mas não importava. O que realmente me interessava era vingar-me de Sophie e eu sabia como fazer isso.
         A noite avançava lentamente. Dancei com todos eles, bebi mais de seis cervejas - sem ficar bêbeda, apesar de Sophie, Niza, Ryan, Peter e Chris estarem completamente pedrados - e consegui manter toda a gente alegre até perto das duas da manhã.
         Perto dessa altura, eu cansei-me de esperar. Pronto. Sophie já festejara mais do que devia. Separei-me de Peter e fingi estar meio tonta. Ryan, que estava a dançar com Niza nesse momento, olhou para mim.
         - Acho que… preciso de apanhar um pouco de ar fresco… - Murmurei, olhando fixamente para Ryan.  
         Ele assentiu com a cabeça e eu saí do quarto e fechei a porta sem fazer barulho. Avancei até meio do corredor e esperei na escuridão. Sentei-me no chão, com as costas junto à parede e as pernas encolhidas para as poder rodear com os braços, e esperei pacientemente que Ryan chegasse. Eu sabia que ele viria.
         Tal como eu previ, ele apareceu momentos depois. Avistou-me e aproximou-se de mim, acocorando-se à minha frente.
         - Estás bem? - Perguntou, parecendo preocupado.
         - Mais ou menos…
         OK, estava na hora de improvisar. O que é que Kiara podia ter passado durante essas últimas semanas que constituísse uma fonte de preocupação? Ah, claro. Havia uma muito fácil: eu.
         - Estou tão farta da Kalissa… já não a aguento mais…
         Fingi ir desatar a chorar e tal como eu esperava, Ryan abraçou-me. Enterrei a cara no seu peito e choraminguei baixinho.
         - Tem calma. O que é que aconteceu?
         - Ela tentou soltar-se agora mesmo… eu não posso permitir que ela estrague a festa da Sophie! - Balbuciei.
         Eu tinha o condão de chorar quando queria, por isso os meus olhos encheram-se de lágrimas. Ao vê-las, Ryan não pensou nem duas vezes que eu estivesse a mentir.
         - Ela não vai conseguir. Acalma-te e vais ver como conseguimos controlá-la.
         - Obrigada… e desculpa por te estar a preocupar com isto…
         - Eu já te disse que não quero que me escondas nada. Quero estar aqui para te apoiar sempre que precises de mim.
         - Obrigada. Às vezes se não fosse tu… eu sentia-me tão sozinha…
         Cravei o meu olhar no seu o mais intensamente que consegui. Vi os olhos dele arregalarem-se de espanto e a sua boca entreabriu-se como se fosse falar, mas não chegou a dizer nada.
         - Eu não posso falar destas coisas com o Chris. Não quero assustá-lo. Mas tu, Ryan… és tão forte… consegues sempre apoiar-me…
         - E vou continuar a fazer isso sempre que precises de mim.
         - Eu preciso de ti neste momento.
         Agarrei o seu rosto entre as minhas mãos e beijei-o calorosamente. Durante os primeiros segundos Ryan não reagiu, demasiado chocado com a minha acção para me afastar, mas depois, e para minha surpresa, abraçou-me e beijou-me mais. Uau, ele estava a colaborar comigo e tudo! Enrolei as pernas em volta da cintura dele enquanto Ryan me beijava intensamente. Ele devia estar mesmo muito bêbedo para fazer aquilo. Aguentei algum tempo, enquanto esperava que Sophie ou Chris viessem procurar-nos. Enquanto isso, Ryan não parecia nada preocupado com o facto de estar a beijar a melhor amiga.
         Passados menos de cinco minutos, a porta do meu quarto abriu-se e Sophie saiu. O entusiasmo crescia dentro de mim. Entrelacei os dedos no cabelo de Ryan e puxei o seu rosto mais para o meu. E nesse instante, a namorada dele chegou junto a nós. Eu olhei para ela e vi como os seus olhos se arregalavam de horror. Ela começou a recuar, enquanto abanava a cabeça em negação, parecendo ir gritar a qualquer instante. Ryan largou-me nesse instante e olhou para Sophie. Ficámos em silêncio, entreolhando-nos mutuamente, e depois ela desatou num pranto aflitivo. Ryan e e eu levantámo-nos, enquanto ele se ia apercebendo do que tinha feito e eu me controlava para não desatar a rir. Ainda tinha de fingir que era a Kiara e que estava muito envergonhada por Sophie nos ter apanhado. Sophie, que naquele momento parecia ir explodir de terror.
         - Sophie… não é isso… eu posso explicar… - Gaguejou Ryan, que se aproximava lentamente dela.
         - Larga-me! Não me toques! - Gritou ela, enervada e a chorar sem parar.
         Recuei até à parede e deixei-me ficar lá, enquanto observava a cena deliciosa que se desenrolava diante dos meus olhos. Se fôssemos apanhados e se ela fosse castigada eu ainda ficaria mais feliz.
         - Sophie, por favor, tens de me ouvir…
         - Como é que me pudeste fazer isto?! COMO?!
         Ryan avançava para ela enquanto Sophie recuava sem parar, a soluçar tanto que parecia ir asfixiar a qualquer instante. Isso seria a cereja no topo do bolo mas não chegou a acontecer. Chris, Peter e Niza chegaram até nós nesse instante e ficaram muito admirados com o que viram.
         - O que é que se passa aqui?! - Perguntou Chris, chocado.
         - PERGUNTA À TUA NAMORADINHA! - Berrou Sophie, olhando-me furiosamente.
         Eu adorei ver a fúria nos seus olhos. O meu plano estava a correr na perfeição. Se ela se lançasse para cima de mim era o melhor que podia acontecer. Aí eu podia bater-lhe mais uma vez. Nada me deixaria tão feliz. Mas ainda assim, abanei a cabeça em desacordo, imitando um ar muito ofendido e ansioso. Chris olhou para mim, sem perceber nada do que estava a acontecer, e Niza abraçou Sophie, que chorava como uma criança desolada.
         - O que é que lhe fizeste? - Perguntou Peter, sem querer acreditar que aquilo estivesse a acontecer.
         - Não… eu não fiz de propósito… diz-lhes Ryan! - Implorei.
         Mas Ryan estava demasiado atónito para falar. Olhou para mim, e de novo para Sophie, e não disse mais nada.
         - Eles beijaram-se! Eu cheguei aqui e vi-os enrolados! - Acusou Sophie, limpando furiosamente as lágrimas que não paravam de correr pelas suas faces.
         - Eles o quê?! - Perguntaram Chris e Niza em uníssono.
         Chris olhou novamente para mim, sem saber como reagir, e eu desviei o olhar, imitando um ar muito constrangido.
         - Não pode ser! - Gaguejou Niza, perplexa.
         - Mas foi! Eu vi-os… - Chorava Sophie.
         Chris foi ganhando, aos poucos e poucos, um olhar mais raivoso. Eu avancei lentamente até ele, tentando fazê-lo acreditar que estava arrependida, mas ele afastou-se de mim como se eu fosse uma pessoa com uma doença contagiosa e mortal.
         - Afasta-te de mim… - Disse ele, a voz dura e rouca.
         - Por favor… não é o que todos estão a pensar!
         - Sim, nós descontrolámo-nos, eu amo-te Sophie! - Exclamou Ryan.
         E nesse momento, Chris não conseguiu aguentar mais. Pregou um murro no queixo de Ryan, deitando-o ao chão. Eu quis saltitar de alegria e bater palmas, mas tinha de concentrar-me mais que nunca em manter Kiara presa na minha mente. Se ela sentisse que os seus protegidos estavam em perigo seria capaz de se soltar, como já tinha acontecido outras vezes. Sophie chorava sem parar e Niza e Peter tentavam separar Chris e Ryan, que rebolavam pelo chão, esmurrando-se e lutando como dois leões enfurecidos.
         - Parem com isso!
         - CHRIS PÁRA! - Berrou Peter, tentando meter-se entre eles.
         Mas antes que eles pudessem causar demasiados danos um no outro, as luzes do corredor acenderam-se e a maioria dos alunos veio para fora dos quartos, ver o que estava a acontecer. Mas nem isso fez com que Ryan e Chris parassem. Já havia gotas de sangue no chão e tudo. John e os seus guardas chegaram nesse instante.
         - PAREM IMEDIATAMENTE COM ISTO! - Bradou John.
         Mas foi preciso que os guardas entrevissem para separar Ryan e Chris, ambos com os lábios rachados e um ar desvairado. 
         Olhei para Sophie mas ela recuou perante o meu olhar. Niza abanou a cabeça em negação uma vez mais. Ela nem queria pensar que eu pudesse ter traído a amiga daquela maneira, e logo no seu aniversário.
         Pois é: o meu plano é perfeito.
         - Vocês vêm comigo. - Rugiu John, furioso.
         Virou-se e eu segui obedientemente atrás dele. Niza, Sophie, Peter, Ryan e Chris vieram connosco, ladeados pelos guardas do castelo, não fossem lutar outra vez.
         Encaminhámo-nos para o escritório de John sem dizermos nada. Quando entrámos, os guardas fecharam a porta e o padrinho de Kiara virou-se de frente para nós, parecendo tão furioso que podia expulsar-nos a todos em qualquer altura.
         - O que é que se passou ali fora?
         Ninguém lhe respondeu.
         - NÃO ME OUVIRAM?! O QUE É QUE VOS PASSOU PELA CABEÇA PARA LUTAREM A MEIO DA NOITE?!
         - Eles estavam apenas a… resolver uns assuntos. - Murmurei.
         Todos os olhares se cravaram nos meus, até o de John, bastante surpreendido por eu ter falado naquilo.
         - Ai sim? Mas neste colégio há regras! Não podem fazer barulho depois da uma da manhã!
         - Nós sabemos. Pedimos desculpa. - Dirigi-lhe um leve aceno de cabeça, dando a impressão de estar muito arrependida.
         Chris resmungou qualquer coisa que ninguém percebeu e John olhou para ele colericamente, assim como para Ryan.
         - Vocês vão ser severamente castigados por isto. - Bradou ele.        
         Chris olhou de soslaio para mim e eu soube o que ele achava naquele momento: que a culpa de tudo o que estava a acontecer era exclusivamente minha. Felizmente, ele tinha razão.
         - A partir de amanhã vão ficar na biblioteca a ajudar a senhora Norberts a arrumar os livros. - Determinou John.
         - Durante quanto tempo?
         - Depois de almoçar vão para lá, e depois do jantar vão até às onze da noite. Sei perfeitamente que se aguentam acordados até essa hora por isso não haverá discussão.
         - Mas… - Começou Ryan, pronto para reclamar.
         - Mas nada, senhor Ryan Adams. Aqui quem manda sou eu.
         Quis corrigi-lo e dizer que na verdade quem mandava era eu, mas pronto, decidi ficar calada. Ryan baixou o olhar, e John cruzou os braços.
         - Vocês desiludiram-me imenso. A vossa função é dar o exemplo para os alunos mais novos do colégio mas são sempre vocês que estão metidos nas confusões!
         - Pedimos muitas desculpas. - Choramingou Niza, que odiava ser repreendida.
         - Isso não me interessa agora. Vão embora. Amanhã começam com o castigo.
         Chris foi o primeiro a sair do escritório, sem sequer olhar para mim. Apetecia-me dançar de alegria naquele momento, mas consegui manter o ar abatido. Aliás… ninguém olhou para mim. Niza ainda era a única que de vez em quando me deitava um olhar de esguelha, como se quisesse certificar-se que eu ainda ali estava, mas os restantes ignoraram-me completamente. Quando chegámos ao fundo do corredor, eu estaquei de frente para eles, obrigando-os a parar.
         - Vocês vão continuar sem me falar?
         Chris olhou para mim como quem não quer olhar. Eu pus as mãos na cintura e lancei-lhe e à Sophie um olhar ameaçador.
         - OK, nós errámos, mas toda a gente erra! Além de que estamos todos… bêbedos de mais!
         - Tu não estás bêbeda, Kiara. - Murmurou Chris.
         A voz dele era tão dura, tão desapaixonada que me fez pensar que ele não gostava realmente dela. Ao mais pequeno rumor, ele tratava-a logo daquela maneira. Que rico namorado que ela tinha arranjado.
         - Não interessa. Eu acho que mereço uma segunda oportunidade. Ryan… fá-los ver a verdade!
          - Ela está certa. Eu fui ver como ela estava e… descontrolámo-nos… foi só isso…
         - Só!? Cala-te Ryan! Eu não quero falar mais contigo! - Rosnou-lhe Sophie.
         Depois seguiu pelo corredor fora, seguida por Niza, deixando-me diante dos rapazes. Chris e Peter não ousaram olhar para mim outra vez e eu decidi que já sabia o que fazer.
         - Muito bem… vão todos deixar-me sozinha quando mais preciso de vocês, não é? Então está bem. - Resmunguei.
         E segui atrás de Niza e Sophie, para conseguir chegar às escadas e prosseguir o meu caminho. Quando estava prestes a desaparecer na escuridão, ouvi Ryan chamar-me.
         - Kiara espera! Onde vais?
         - Para onde me queiram. - Respondi.
         E depois desatei a correr pelas escadas abaixo. O sorriso que eu tentara conter durante toda a noite aflorou aos meus lábios. O meu plano tinha corrido lindamente. E agora faltava uma pequena parte apenas, para tornar tudo mais perfeito ainda.
         Quando cheguei à porta do quarto dele, bati levemente e foi Drake quem veio abrir. Ficou espantado por me ver ali.
         - Kiara?
         - Sim… posso entrar? - Balbuciei, fazendo um ar muito triste.
         Ele hesitou por uns momentos mas depois acabou por encolher os ombros e deixar-me passar. Brand levantou-se imediatamente da cama ao ver-me entrar, os seus olhos arregalaram-se de espanto.
         - O que fazes aqui?
         - Eu…
         Não me contive mais. Curvei-me sobre mim própria, abraçando o meu corpo, e desatei-me a rir à gargalhada. Caí de joelhos no chão e levantei a cabeça, rindo a bom rir. Drake, Allan e Brand olhavam estupefactos para mim. Quando consegui controlar-me o suficiente para parar de rir apoiei-me na cama para me pôr de pé e abri bem os braços como se conseguisse albergá-los a todos.
         - Sou eu rapazes! A Kalissa!
         Brand e Drake entreolharam-se como se eu tivesse dito algo numa língua estranha. Suspirei, enquanto os deixava adaptar à novidade.
         - Como é que temos a certeza? Ainda há dez minutos atrás eras a Kiara!
         - Não. Juro que não sou. E aliás, passar o dia de aniversário daquela cabra, a Sophie, com eles foi uma tortura enorme. Quem me dera poder ter vindo para aqui mais cedo! Mas pronto. Eu já fiz o que tinha a fazer. E já acabei com a felicidade daquele grupo de pacóvios, portanto agora sou toda vossa.
         Brand sorriu-me entusiasticamente e avançou até mim.
         - Esta é que é a minha Kali.
         Beijou-me intensamente e eu entreguei-me ao beijo, esquecendo-me por segundos que Drake e Allan estavam ali no quarto. Quando Brand se separou de mim, os seus olhos cintilavam de felicidade e eu soube que eram apenas o reflexo do brilho nos meus.
         - Então estiveste a fingir o dia todo? - Perguntou Drake, espantado.
         - Sim. Não foi fácil mas acho que me safei bem.
         - Podes crer que safaste! Eu estive lá fora a ver a luta e tu parecias mesmo a Kiara. - Disse Brand.
         - Estás a insultar-me!
         - Não. Estou a dizer que és uma actriz fantástica.
         E beijou-me outra vez.
         - Posso ficar aqui convosco? Consegui fazer com que a Sophie e a Niza odiassem a Kiara, e o Chris nem a quer ver à frente.
         Brand piscou-me o olho de modo provocador.
         - És mesmo a melhor, minha Kali.
         - Obrigada. Mas deixam-me ficar aqui?
         - Por mim sim. - Disseram Drake e Allan em uníssono.
         - Com todo o prazer. - Murmurou Brand.
         Eu sorri-lhes.
         - Obrigada malta.
         Drake e Allan sorriram-me também e depois voltaram às suas actividades anteriores: injectar-se e inalar a droga. E eu pensei que podia dar-me ao luxo de participar com eles, só daquela vez. Sentei-me ao lado de Brand na cama dele e estendi a mão para Drake.
         - Posso usar a tua seringa?
         - Claro. Mas vais injectar-te outra vez?
         - Há muito tempo que não faço isto, está-me a apetecer.
         Ele encolheu os ombros despreocupadamente e passou-me a seringa. Pisquei o olho a Brand, que me puxou gentilmente a manga da camisola para cima, até ao cotovelo. Coloquei o braço numa posição favorável e cravei lá a seringa. Mordi o lábio inferior para combater a pequena dor que surgiu no momento em que a seringa perfurou a minha pele. Mas assim que a droga entrou no meu corpo, senti-me logo melhor.
         - Obrigada.
         Olhei para os meus dois amigos e para Brand e senti-me muito bem ali. Por mais que Kiara se gabasse de ter amigos verdadeiros, eles tinham-lhes virado as costas quando ela mais precisava deles. Ao contrário do que Drake e Allan faziam comigo. Mesmo que eu estivesse longe deles durante muito tempo, quando voltava tinha-os sempre do meu lado. Assim como ao Brand. Ele deitou-se e eu deitei-me melhor ao seu lado, aninhando-me no seu peito e nos seus braços musculados, e fechei os olhos.
         - Amo-te. - Disse ele baixinho.
         Sorri e assenti com a cabeça.
         - Eu sei. Também te amo.
         E pela primeira vez, era mesmo verdade. Foi nessa noite que eu finalmente percebi que o meu lugar era mesmo ao lado de Brand. Que acontecesse o que acontecesse, eu ia querer sempre estar com ele. Eu era toda de Brand. Atraí a sua boca para a minha e uni os meus lábios aos seus docemente.
         - Vai correr tudo bem.
         Ele assentiu e beijou-me novamente. E eu tive a certeza que essa noite ia recompensar tudo o que o dia me tivesse feito aguentar. Apenas e só porque estava nos braços do meu namorado. Kiara, nunca me vais ganhar. Eu sou e serei sempre mais forte que tu.