domingo, 13 de fevereiro de 2011

Capítulo 5


Pesadelo







            Ouviu-se o sino do colégio a tocar e eu parei de beijar Chris. Peter e Niza levantaram-se.
            - Vamos? Está na hora do jantar. - Disseram.
            Nós levantámo-nos também e seguimos todos para fora do quarto, dirigindo-nos ao salão de refeições. Eu não sentia fome nenhuma, e até era capaz de perceber porquê, mas tentei não me lembrar da razão. Era demasiado má para eu querer recordar naquele momento.
            Sentámo-nos na mesa do 11º ano. Os Desportistas e as Raparigas da Claque, os grupo aos quais Kalissa pertencia e que em que parecia mandar, já estavam no refeitório e olharam para mim quando me sentei com os meus amigos. Na verdade, eles ficaram muito espantados.
            E de repente, algo dentro de mim me fez compreender que aquela situação era insustentável. Que não podia deixar as coisas assim por mais tempo. As minhas mãos crisparam-se em cima da mesa e Niza notou aquela mudança na expressão do meu rosto.    
            - Kiara? - Perguntou ela, com medo.
            Devia pensar que Kalissa estava prestes a soltar-se. Abanei a cabeça em negação para a consolar mas continuei sem dizer nada. E depois levantei-me bruscamente.
            - Onde vais? - Perguntou Chris, espantado.
            - Tratar deste assunto de uma vez por todas.
            Atravessei o espaço que me separava de Brand e parei junto aos amigos dele, que olhavam atónitos para mim. Os olhos cor de chocolate dele semicerram-se pela desconfiança e pela mágoa.
            - Brand… - Cumprimentei-o com um aceno de cabeça.
            - És tu, Kiara?
            - Sou eu.
            Os outros rapazes e raparigas não estavam a perceber nada daquele nosso estranho diálogo. Brand levantou-se mas permaneceu do outro lado da mesa.
            - O que aconteceu? O que fizeste à Kalissa?
            - Ela desconcentrou-se e eu aproveitei para recuperar o controlo. - Respondi, sentindo a minha voz muito determinada.
            - Mas… ela está bem?
            - Neste momento está sossegadinha no fundo da minha mente e eu não deixarei que ela se solte assim tão depressa.           
            Brand cerrou as mãos em punhos. Ele não tinha gostado nada da minha afirmação.
            - Então… só vieste aqui dizer isso? - Vociferou.
            - Não.
            Ele esperou que eu continuasse. Inspirei fundo para me controlar melhor. Não podia desviar-me do meu objectivo.
            - Uma vez que o meu grupo já sabe a verdade, acho que o teu também devia ficar a conhecê-la.
            Brand olhou para o rapaz sentado ao seu lado e tornou a pousar os olhos ameaçadores nos meus.
            - Isso vai trazer-nos problemas.
            - Não mais do que trará aos meus amigos. - Rosnei-lhe, furiosa.
            Aquela faceta era nova em Brand. Eu nunca imaginara que ele pudesse pensar no bem das outras pessoas.
            - Está bem. Vais contar-lhes agora?
            - Não. - Murmurei. - Conta-lhes tu. Fá-lo à tua maneira. A única coisa que te peço é que sejas honesto. Quando a Kalissa se soltar vai continuar a ter os amiguinhos à volta dela, se souberes explicar bem a situação.
            Brand levantou o queixo com ar petulante e cruzou os braços super musculados.
            - Eu faço isso. Está descansada.
            - Obrigada.
            E virei-me para ir embora, quando me lembrei de algo. Olhei para ele por cima do meu ombro e baixei o tom de voz.
            - E Brand… eu nunca quis que isto fosse assim. Lamento por… tudo o que a Kalissa te está a fazer.
            - És tu o problema, não ela. Eu amo-a.
            - Eu sei disso. - Suspirei. - Mas escolheste mal a namorada.
            - Não preciso dos teus conselhos sobre quem devo escolher.
            Assenti, conformada.
            - Faz bom proveito do veneno da cascavel… quando ela voltar. - Respondi, e depois fui-me mesmo embora.
            Brand não fez nada para me deter e eu soube que ele ia seguir o meu pedido e explicar aos Desportistas e às Raparigas da Claque o que se passava. Por isso fui sentar-me novamente ao lado de Chris e suspirei. Ele estava verdadeiramente preocupado comigo.
            - Estás bem? - Murmurou junto ao meu ouvido.
            - Sim… agora sim.
            Deixei que ele envolvesse os meus ombros com o seu braço e depois apercebi-me que Niza e Sophie estavam a olhar fixamente para mim.
            - O que se passa? - Perguntei.
            - Não tens mais nada a dizer-nos?
            O tom de voz de Niza era provocador e ansioso ao mesmo tempo, porque ela podia tentar o quanto quisesse e nunca seria capaz de imitar a maldade de Kalissa. Suspirei e lembrei-me que ainda havia algo que elas não sabiam.
            No entanto, eu não suportaria relembrar.
            Já tinham passado quase quatro meses mas ainda era muito difícil para mim lembrar todos os pormenores, voltar à cena mais horrível da minha vida. E tal como sabia que seria difícil, soube também que era disso mesmo que Niza e Sophie estavam à espera.
            - Eu sei o que vocês querem que conte.
            Niza sorriu ao ver que eu estava a colaborar com ela.
            - O que se passa? - Quis saber Peter.
            - Ainda há algo que a Kiara não nos contou. Mas vai contar agora. - Respondeu Sophie, confiante.
            Olhei para Chris e arranjei forças para começar a falar.
            Decidi fechar os olhos. Não que precisasse assim tanto de me esforçar para que as imagens voltassem à minha cabeça. Elas ainda estavam demasiado vivas, intensas e esmagadoramente tristes dentro de mim.
            - Os meus pais não estão separados. Na verdade, eu nunca os cheguei a conhecer. O meu pai foi morto antes de eu nascer e a minha mãe também foi, quando eu tinha pouco dias de vida. E eu sempre vivi com os meus tios, desde bebé, por isso eles eram uns verdadeiros pais para mim. Mas… há quase quatro meses atrás, numa noite que parecia igual a tantas outras, dois assassinos entraram pela nossa casa, mataram os meus tios e obrigaram-me a fugir para não ser morta também.
            Abri os olhos e esforcei-me por conter as lágrimas. Ainda era capaz de sentir o terror daquela noite, as imagens da minha tia, caída no chão da cozinha com a garganta cortada a sangrar abundantemente, e do meu tio, morto no tapete da sala, com uma bala a perfurar-lhe a zona do coração… imagens horrorosas que eu nunca seria capaz de esquecer.
            Niza e Sophie pareciam arrependidas de ter tocado no assunto ao verem que eu ficava tão apavorada de falar nisso, mas agora era tarde de mais para tentar mandar as memórias para o fundo da minha mente.
            - Mas… por que é que nunca nos contaste isso? - Perguntou Ryan.
            - Porque… eu não conseguia falar no assunto… era tão doloroso para mim! Ainda é… mas estou a conseguir controlar melhor. Só o John é que sabe o que aconteceu. Ele veio buscar-me ao aeroporto de Auburn, para onde eu fugi assim que consegui escapar-me da casa, e trouxe-me para aqui. Ele também sabe do assunto da Kalissa, desde o início. Tem-me ajudado imenso, perdoado todas as maldades que ela faz, incentivando-me a não perder a calma.
            - Mas quem seria… capaz de matar os teus tios? Porquê?
            Inspirei fundo e a explicação surgiu na minha cabeça com uma claridade arrepiante.
            - Porque também mataram os meus pais.
            Niza tinha os olhos arregalados de espanto, tal como Sophie, e o queixo de Peter estava descaído pela surpresa.
            - Sabes a razão? - Perguntou Chris.
            - Não. Mas sinto que foram as mesmas pessoas. Há algo de errado no meio desta história toda. Eles conheciam-me… sabiam que eu vivia naquela casa, e foi para me apanhar que foram até lá. Mas como apanharam os meus tios pelo caminho, tiveram de se ver livres deles o mais depressa possível.
            As lágrimas desceram pelo meu rosto. Eu não conseguia contê-las. Lembrava-me da altura em que subira as escadas até ao meu quarto e me escondera lá dentro. Recordava a maneira desesperada como subira pelo telhado até chegar à chaminé, como me tinha escondido lá, tentado não ser descoberta. As minhas mãos começaram a tremer tanto como nessa altura.
            - Desculpa… não queríamos que ficasses assim. - Disse Niza.
            - Eu só queria saber se era verdade o que a Kalissa tinha dito.
            Levantei o olhar e cravei-o no dela. O quê? Kalissa tinha-lhes dito aquilo? Porquê? Com que objectivo?    
            Ah, sim: para as virar contra mim.
            - O que foi que ela disse? - Murmurei, com medo de ouvir a resposta.
            - O mesmo que tu, só que… com menos emoção. Ela não sentia nenhuma afinidade pelos teus tios, pois não?
            - Ela odiava-os.
            - Pois… e ela disse que tu tinhas fugido com o dinheiro deles e que tinhas deixado os corpos para trás.
            Chorei mais ainda. Era verdade, mas eu fora obrigada a isso. Ou fugia ou era morta também. Chris abraçou-me mais, ao ver o estado em que eu estava a entrar.
            - Parem com isto, meninas. Não vêem como ela está a ficar? Ainda se descontrola e a Kalissa volta.
            Sophie alcançou a minha mão por cima da mesa e apertou-a entre as suas.
            - Desculpa. A sério. Não devíamos ter tocado no assunto.
            - Não faz mal. A partir de hoje não quero que haja segredos entre nós. A Kalissa vai servir-se deles para vos virar contra mim, e não posso permitir isso.
            - Ela nunca vai conseguir virar-nos contra ti!
            - Não tenho a certeza disso, Peter. Ela é forte.
            - Nós somos mais. Unidos, somos mais fortes e persistentes que ela. E eu… acho que tenho um plano para manter a Kalissa afastada. - Respondeu Ryan, convicto.
            Olhei para ele, surpreendida. Como era possível que ele tivesse descoberto uma maneira, se eu em dezasseis anos não encontrara nenhuma?!
            - Qual é a tua ideia?
            - Bem, ela só se solta quando tu te descontrolas, certo? Quando estás assustada, ou nervosa, ou nesse tipo de situações.
            - Basicamente, eu crio uma espécie de "parede de tijolos" na minha cabeça. - Fiz o sinal de aspas com os dedos e revirei os olhos. - Se eu pensar nela com muita intensidade, a Kalissa não se consegue soltar, não a consegue romper nem ultrapassar. É essa parede invisível que a mantém longe de se apoderar do controlo.
            - Óptimo. Então eu acho que até é simples: só tens de pensar nessa protecção com muita força, não te desconcentrares, e acho que a conseguimos manter longe do controlo. - Disse Ryan.
            - Não é assim tão fácil.
            - Ai não?
            - Não. Quando estou a dormir não consigo pensar nela. Deixo-me apenas cair na inconsciência. E ela normalmente aproveita esses momentos para se apoderar do meu corpo.
            - Pois, não podemos combater a Kalissa enquanto estiveres a dormir. - Disse Niza, preocupada.
            - Claro. Mas enquanto estiver acordada, só algo muito forte pode abalar a minha concentração ao ponto da parede invisível desmoronar.
            - Algo muito forte como…? - Perguntou Niza, em tom vago.
            - Como, por exemplo, uma má notícia.
            Chris abraçou-me.
            - Nós vamos fazer tudo o que pudermos para te ajudar. Ela não se vai conseguir soltar, acredita em nós.
            - Eu acredito.
            Ele agarrou o meu rosto entre as suas mãos e beijou-me intensamente. Ao fim de uns segundos, eu comecei a deixar de conseguir raciocinar, enquanto me perdia na paixão que sentia por Chris, enquanto os seus lábios se moviam ao mesmo compasso que os meus, enquanto os meus dedos se enrolavam no seu cabelo sedoso e…
            - E, por exemplo… quando tu me beijas. - Respondi, afastando-me e rindo baixinho.
            Chris riu-se também, mas depois pareceu preocupado.
            - Tu desconcentras-te quando me beijas?
            - Pois… imensas vezes…
            - Então é simples: não a podes beijar mais. - Disse Peter, em tom de brincadeira.
            - Não! Isso é que não. Podes beijar-me as vezes que quiseres, eu concentro-me ao máximo para não deixar que ela se solte. - Respondi, sentindo-me a corar tanto que as minhas faces queimavam.
            - Óptimo. Portanto acho que nos vamos conseguir aguentar. E Chris, se faz favor, não a entusiasmes demasiado. - Pediu Sophie, tentando conter o riso.
            - Está bem, está bem. A partir de agora eu e a Kiara entrámos na abstinência.
            As gargalhadas irromperam no grupo e eu partilhei-as. Era bom poder rir novamente.


            Olhei para o fundo do corredor. Tinha ouvido alguém a chamar-me. Mas o espaço à minha volta era escuro e eu não conseguia ver o que me rodeava com muita clareza. Porém, a minha audição não era afectada pela escuridão.
            - Kiara!
            Olhei para a direita e vi algo a mexer-se nas sombras. Depois, lentamente, a figura de Mariah surgiu. Ela olhou para mim naquele jeito amedrontado que só ela tinha. E de repente, as luzes acenderam-se e eu fui capaz de a ver muito melhor. Mariah tinha mudado imenso desde que eu chegara ao colégio. Tinha perdido aquela atitude convencida e irritante. Agora estava feita num farrapo humano.
            Mas quando ela olhou para mim, aqueles olhos baços imploravam por perdão e eu não lho quis dar.
           

            - AH!
            Sentei-me rapidamente na cama, arfando com a falta de ar. Tudo à minha volta era escuro como breu. Sophie tinha fechado a janela e os cortinados e nem o luar entrava no quarto. Eu sentia-me a tremer de ansiedade.
            O que se tinha passado? Que pesadelo fora aquele?
            - Kiara?! Estás bem?
            Senti alguém ao meu lado e quando olhei vi que era Niza. Sentou-se à minha frente na cama, e quando Sophie acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira, eu observei as feições assustadas das minhas amigas.
            - Ainda és tu? Kiara, és tu? - Gaguejou Sophie, atarantada.
            - Sou. - Murmurei.
            Passei a mão pela testa para tirar as gotas de suor que aí se tinham formado. Meu deus… tinha sido só um sonho…
            - O que é que aconteceu? Estavas a gritar…
            - A gritar? Eu?
            - Sim! A gritar a sério… eu assustei-me, pensei que fosse a Kalissa que se estivesse a soltar! - Explicou Niza.
            - Não. Ela não se vai soltar.
            Fechei os olhos para me certificar que a parede de tijolos no interior da minha cabeça estava bem forte e não encontrei qualquer falha nem qualquer ponto onde Kalissa estivesse a tentar rompê-la. Tornei a abrir os olhos.
            - Ela está bem presa.
            - Ainda bem… então, o que é que aconteceu?
            E agora? Contava-lhes do sonho? Para quê? Não era importante. Eu apenas vira Mariah, nada mais. Que estranho… eu nunca antes sonhara com ela… por que é que de repente ela me aparecia em sonhos?
            - Tu prometeste que nunca mais nos esconderias nada. - Sibilou Niza, ameaçadoramente, os seus olhos verdes como trevos a brilharem de irritação genuína.
            Sim, ela tinha razão. Por mais insignificante que fosse o sonho, elas tinham o direito a saber.
            - Eu tive um sonho…ou um pesadelo, não sei bem… com a Mariah.
            - A Mariah?! - Disseram Niza e Sophie em uníssono, espantadas.
            - Sim.
            - Mas porquê?
            - Não sei.
            - E o que é que acontecia? - Perguntou Sophie.
            - Eu estava num corredor e ela aparecia lá ao fundo. Depois chamou-me… e veio ter comigo… não aconteceu mais nada.
            - Isso é esquisito. Afinal por que é que gritaste? Pensei que tivesse sido um pesadelo muito mau e sangrento!
            - Não. E ainda bem que não foi! - Resmunguei.
            - Claro, desculpa…
            - Ouçam, isto não tem nada de importante.
            - Sim, ela tem razão Sophie. Não é nada de grave. Provavelmente a Kiara só se assustou, mais nada.
            - Pois, foi isso.
            - Então volta a dormir, OK? Nós vamos fazer o mesmo. Está tudo bem. - Disse Niza, sorrindo-me maternalmente.
            - Sim. - Respondi, deitando-me novamente.
            Elas voltaram para as suas camas e apagaram a luz do candeeiro. E ao fim de poucos minutos, eu também já estava a dormir outra vez.
            Na manhã seguinte, eu tinha-me esquecido completamente do pesadelo. Mas agora tinha de começar uma nova etapa da minha vida. Pelo que Niza me contou, Kalissa tinha deixado de ir às aulas e a única coisa que lhe interessava a nível da escola era a Claque. E agora que o grupo de Brand já sabia a verdade, era mais fácil livrar-me dos treinos.
            Segui com Niza e Sophie até ao salão de refeições e sentámo-nos nos nossos lugares habituais. Peter, Chris e Ryan chegaram pouco tempo depois e sentaram-se connosco.
            - Então… pronta para regressar às aulas? - Perguntou Peter.
            - Sim… mal posso esperar.
            Mas havia algo que me estava a deixar preocupada. Eu sentia uma dor de cabeça bem forte naquele momento. Dor essa que nada tinha a ver com Kalissa, felizmente. Era uma dor de cabeça normal, humana, como toda a gente tem. Então… por que é que eu a estaria a ter naquele momento?
            - Kiara!           
            Virei-me quando chamaram o meu nome e vi Brand ali de pé, especado a olhar para mim, com um ar preocupado.
            - Sim? - Perguntei.
            - Sentes-te bem?
            Ponderei nas suas palavras por uns momentos. Seria normal que ele soubesse aquilo que eu estava a sentir, que soubesse que eu necessitava de algo para acabar com aquela dor de cabeça infernal?
            - Não. - Respondi.
            Os olhos de Chris, Ryan e Niza pregaram-se em mim, ansiosos.
            - Eu sei do que tu precisas. Parece que terei de te lembrar que a Kalissa tinha… necessidades específicas. - Explicou Brand.
            - Ah, pois… já sei do que estás a falar.
            Aquela situação era desconfortável. Eu não queria mesmo nada ter de me drogar. Mas se isso acabasse com as dores de cabeça, até era capaz de o fazer. Além de que não valia a pena tentar curar-me da dependência da droga: Kalissa continuaria a consumir quando recuperasse o controlo. Suspirei e assenti com a cabeça.
            - Claro. Tens aí… alguma coisa que eu possa tomar?
            - Sim. Toma. Engole-os com água. Por agora deve servir. Daqui a mais ou menos quatro horas vais precisar de mais, entendes? - Continuou ele, tirando uma saqueta transparente do bolso do casaco.
            Tirou dois comprimidos da saqueta e passou-mos para a mão. Fixei o olhar no seu. Era como se a cada dia que passava eu descobrisse um novo Brand, uma pessoa mais racional, mais emotiva, menos… convencida e parva. Brand até conseguia ser carinhoso com Kalissa.
            - OK… obrigada.
            - Então até logo.
            E foi-se embora antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa. Inspirei fundo para me preparar e olhei para os dois comprimidos que tinha na mão. Senti um nó a formar-se na garganta, o que aliado à dor de cabeça, me deixou irritadiça.
            - Vais mesmo tomar isso? - Perguntou Sophie.
            - Tem de ser. Dói-me imenso a cabeça. Pensa nisto como se fossem… aspirinas. - Murmurei.
            Peguei no copo de sumo do pequeno-almoço e meti os dois comprimidos na boca, bebi o sumo todo para os ajudar a descer e depois tornei a pousar o copo vazio, enquanto fechava os olhos.
            - Estás melhor? - Perguntou Niza ao fim de uns segundos.
            - Ainda vai demorar algum tempo a fazer efeito. - Expliquei-lhe.
            - Ah… desculpa…
            - Não faz mal. Agora vamos, deve estar quase na hora da aula.
            Chris levantou-se quando eu o fiz e agarrou-me pelo cotovelo, virando-me de frente para si. Tinha a testa franzida pela apreensão.
            - Sim? - Questionei.
            - Não podes ir para as aulas drogada.     
            Hum… pois… tinha-me esquecido desse pormenor…
            - Talvez fosse melhor falares com o teu padrinho, não achas? Para tentarmos entender o que havemos de fazer contigo.
            - Claro. Vens comigo?
            A ideia de me separar dele por mais tempo do que o estritamente necessário deixava-me deprimida. Chris anuiu e baixou o rosto para me beijar com ternura.
            - Até logo malta. Vamos ao gabinete do director. - Disse ele ao Peter e aos outros.
            Os meus amigos seguiram para as aulas da manhã e eu limitei-me a deixar que Chris me arrastasse consigo pelas escadas e corredores do castelo, até chegarmos aos aposentos do meu padrinho. Bati levemente na porta. Agora sentia a cabeça menos dorida e já conseguia ver com maior precisão, porque a nuvem cinzenta tinha desaparecido da minha visão.
            - Entrem.
            Chris olhou para mim, enquanto arranjávamos coragem, e depois passámos pela porta e nos aproximávamos da secretária do meu padrinho. John levantou-se logo da sua grande poltrona ao ver-me entrar.
            - Kiara!
            Contornou a mesa e veio abraçar-me fortemente.
            - Olá John.
            - És mesmo tu? Já voltaste?!
            - Sim.
            - Ainda bem! Eu estava tão preocupado contigo…
            - Agora está tudo bem. Ou pelo menos… quase tudo. - Murmurei.
            - O que se passa desta vez?
            O meu padrinho olhou para Chris, que aguardava em silêncio, e depois tornou a olhar para mim, confuso.
            - A droga.     
            - Ah…
            A preocupação deu lugar ao desespero no seu belo rosto. Claro que ele odiava aquela situação mais ainda do que eu.
            - Eu não posso ir para as aulas drogada, pois não?
            - Não daria muito jeito, realmente.
            - Mas eu quero continuar a ter aulas, a sério. Não quero desleixar-me nos estudos só porque a Kalissa… faz asneiras atrás de asneiras.
            Ele assentiu.
            - Talvez seja melhor eu explicar a situação aos professores, o que achas?
            - É seguro?
            - Sim, eles não contarão a ninguém.
            - Então acho que é a única solução. - Encolhi os ombros.
            - Realmente é o que parece. Mas tu… estás drogada?
            - Neste momento estou. Tomei dois comprimidos há menos de dez minutos. Teve de ser, doía-me imenso a cabeça pela falta da droga.
            - Claro, não te culpes por isso. - Sorriu ele, tristemente, e pôs-me as mãos nos ombros.
            - Eu preciso da sua ajuda.
            Custava-me estar a pedir mais aquilo. Depois de tudo o que John fizera por mim, e ainda fazia, depois de todas as discussões que ele tivera com Kalissa, da maneira como ela o tratara, o meu padrinho não tinha de fazer mais nada por mim. Mas ainda assim, ele era a única pessoa a quem eu podia recorrer naquele momento.
            - Tudo o que precises. - Respondeu ele.
            - Bem… eu quero deixar a droga, claro. Há alguma maneira de fazer isso? - Chris aproximou-se e rodeou a minha cintura com o seu braço forte.
            - Pois… vai ser complicado…
            - Faço qualquer coisa. Por favor John… olhe o meu estado!
            Eu nem queria olhar para os meus braços esqueléticos, e evitava ao máximo ver o meu reflexo nos espelhos. Era doloroso de mais.
            - Eu acho que consegues deixá-la mas vai ser precisa muita força de vontade. E vocês - Olhou para Chris e semicerrou os olhos. - Têm de estar ao lado dela. Têm de a apoiar com todas as vossas forças porque ela não vai conseguir fazer isto sozinha.
            - Claro. Eu estarei sempre com ela.
            Sorri, sentindo a calma a passar do corpo dele para o meu. O efeito de talismã de Chris estava a resultar na perfeição naquele momento.
            - Mas como é que eu faço para deixar a droga?
            - Para começar, vamos tentar uma desintoxicação drástica. Ou seja, vais deixar de consumir, entendes? Por mais que pareça que não consegues aguentar, tens de te manter sem tomar comprimidos ou algo parecido.
            - OK…
            - Achas que consegues fazer isso?
            Olhei primeiro para John e depois para Chris, sentindo o meu estômago a contrair-se. Eu faria tudo por eles. Não queria desiludi-los, mas e se… eu não fosse suficientemente forte? E se Kalissa estivesse de tal modo dependente que não valia de nada eu tentar deixar a droga? E se Chris achasse que eu era fraca de mais para chegar a tentar?
            Não. Eu não era fraca. Ia conseguir fazer aquilo custasse o que custasse. Por eles. Pelas pessoas que eu amava.
            - Eu faço-o. Por vocês. - Murmurei.
            Chris sorriu-me, deslumbrado e orgulhoso da minha escolha, e beijou-me na testa com carinho.
            - Vai correr tudo bem.
            John sorriu, contente por eu ter tomado aquela decisão. Eu era a única que sentia que aquilo podia não resultar. Eu podia já estar demasiado dependente para ser capaz de a deixar sozinha, sem ter de entrar para uma clínica de desintoxicação. Só de pensar nisso arrepiei-me. Era o último sítio para onde eu queria ir, além de que lá eu nunca estaria segura. Os assassinos dos meus tios podiam apanhar-me lá. E até mesmo Kalissa se soltaria mais facilmente, arruinando os meus planos. Porque, afinal de contas, Kalissa ia sempre querer voltar para a droga.
            Mas daquela vez eu não ia deixar.
Capítulo 4


Poder



         Suspirei e depois virei-me lentamente na cama, acabando por chocar com o braço quente e musculado de Brand. Depois abri os olhos e ali estava ele, a dormir pacificamente ao meu lado. Deixei-me ficar em silêncio a olhar para ele durante mais uns minutos. Era naqueles momentos silenciosos mas tão intensos que eu sentia que ele era a pessoa ideal para mim. Brand preenchia totalmente os meus ideais sobre o namorado perfeito.
         Tinham-se passado dez dias desde que Kiara se apoderara por momentos do controlo do meu corpo e decidira colocar o meu disfarce a descoberto. Mas ao contrário do que ela pensava que conseguiria fazer, as coisas não mudaram minimamente. Eu continuei a drogar-me com o meu grupo e as amigas parvas dela deixaram de se preocupar. Porque já ninguém podia fazer nada para recuperar a parasita. Talvez, só por mera sorte, ela tivesse desistido finalmente de lutar contra mim. Possivelmente ela tivera um momento de iluminação inteligente e compreendera que eu seria sempre mais forte que ela. Coitada, tinha demorado imenso tempo até chegar a essa conclusão.
         Suspirei e levantei-me, mexendo-me devagar para não acordar Brand. Tínhamo-nos deitado tarde na madrugada anterior e eu não queria acordá-lo e aturar o seu mau humor.
         Ao sair da cama quase tropecei em Allan, que estava caído no chão, com a boca meio aberta e um ar tão cómico que tive de me esforçar imenso para não desatar a rir. Passei por cima dele sem fazer o mínimo ruído e fui para a casa de banho tomar duche e arranjar-me para mais um dia.
         Há imenso tempo que eu não ia às aulas. John também deixara de me tentar obrigar a ir. Era óptimo que ele assim agisse, pois caso contrário eu sairia do colégio e ponto final.
         Aquele homem conseguia ser especialmente irritante, mais do que os outros. Por mais tempo que passasse ele não desistia de me querer ali dentro, porque ainda pensava que a sua querida afilhada voltaria. Pois sim… isso não voltaria a acontecer no que dependesse de mim.
         Quando fiquei pronta, subi para a cama de Drake e toquei-lhe no braço ao de leve. Ele estava a dormir completamente tapado, só se via o cabelo castanho emaranhado à superfície dos cobertores. Mexeu-se e resmungou qualquer coisa em voz demasiado baixa para eu conseguir perceber, mas acho que estava a mandar-me ficar quieta. Continuei a abaná-lo até que ele suspirou e se destapou, cravando aqueles olhos negros como breu nos meus.
         - O que é que queres?
         Fiz-lhe uma careta de desagrado.
         - Bom-dia para ti também.
         - Hum… desculpa… bom-dia.
         - Estamos melhor assim. - Sorri.
         - Mas vais-me dizer o que queres ou não?
         - Tu sabes o que eu quero. - Murmurei.
         Ele ficou a olhar fixamente para mim durante uns momentos e depois encolheu os ombros e levantou-se com ar cansado. De certeza que ele preferia ter ficado a dormir. Foi até à secretária e tirou uma saqueta transparente de uma das gavetas. Depois arranjou também uma folha de papel limpa e uma lima para as unhas novinha em folha - uma das muitas que Terry e Penny me davam - e voltou para a cama, sentando-se ao meu lado. E começou com a rotina de preparação da minha dose, enquanto eu me recostava e esperava que ele acabasse.
         Eu conseguia preparar a minha droga sozinha, mas era melhor quando Drake o fazia.
         Quando ele acabou passou-me o preparado e eu sorri em jeito de agradecimento. Aproximei a droga do nariz e inalei tudo de uma só vez.
         - Pronto. Já estás contente? - Perguntou ele, com os olhos semicerrados pelo sono.
         - Já estou melhor. Podes voltar a dormir se quiseres.
         - Óptimo.
         Deixou-se cair para trás na cama e nem teve tempo de voltar a tapar-se, porque adormeceu instantaneamente, como se tivesse desmaiado. Contive as gargalhadas e levantei-me, saindo do quarto sem fazer barulho.
         Atravessei o corredor, e ia a caminho da Sala de Convívio quando ouvi chamarem-me lá do fundo. Olhei e apercebi-me que era Mariah quem me chamava. Sorri provocadoramente e ela aproximou-se lentamente, como uma zebra com medo da leoa perigosa.
         Quem quer que tivesse conhecido a Mariah Andrews antes da minha chegada à Blackstone Private School, não a reconheceria agora. Antes, o seu longo cabelo dourado era lindo e eu invejava-o imenso. Agora estava baço, emaranhado e despenteado, como se ela fosse uma selvagem sem um pingo de humanidade. Os seus olhos, que outrora apresentavam um belo tom de azul-bebé, estavam ainda mais baços que o cabelo, amedrontados e olhando para todo o lado como se esperassem ver surgir um monstro assassino das sombras. A própria maneira de andar de Mariah tinha mudado: ela parecia constantemente assustada. Tinha perdido o porte esbanjador de beleza e carisma que tinha antes de eu ocupar o seu lugar.
         - O que queres, Mariah?
         - Bem… eu… vinha pedir-te uma coisa…
         Eu não estava à espera daquilo. O que é que ela queria de mim?
         - Sim? - Perguntei, com impaciência.
         - Eu quero… não, eu preciso mesmo… de voltar para a Claque. - Balbuciou, com ar de quem ia desatar num pranto aflitivo.
         Esperei uns momentos e depois desatei a rir-me à gargalhada.
         - E tu achas mesmo que eu te vou admitir no meu grupo?! Deves estar a gozar! Pois fica sabendo que o meu tempo é demasiado precioso para o perder com estúpidas como tu.
         Ela recuou perante as minhas palavras e começou mesmo a chorar. Dantes ela nunca chorava e gabava-se de ser forte o suficiente para não o fazer, e agora bastava uma simples frase para a tirar do sério, afastá-la do controlo.
         - Eu não estou a gozar contigo. Eu faço tudo o que quiseres… mas por favor, por favor Kiara, deixa-me voltar para a Claque…
         - Não. - Sibilei.
         Ela desatou a soluçar tanto que pensei que fosse ter um ataque de falta de ar. Esperei que o histerismo parasse.
         - Já acabaste?
         - Mas… por que não? Tu podes… continuar a ser a Chefe da Claque… não te vou tirar esse cargo… e eu sou uma boa dançarina, tu sabes isso!
         - Não, Mariah. Tu nunca voltarás à Claque enquanto eu estiver neste colégio.
         Virei-lhe costas e desci as escadas, apagando imediatamente os últimos cinco minutos da minha memória.
         Ela era mesmo parva. Ainda acreditava que eu a readmitiria se ela pedisse. Revirei os olhos. Toda a gente à minha volta era estúpida. Com quem é que eu podia contar afinal?
         Com Brand. Apenas com ele.


         Os dias passavam naquela rotina que eu criara e da qual gostava realmente. Eu tinha aprendido a gostar de viver ali no castelo. Não era tão mau quanto imaginara de início. Desde que pudesse ser eu a dar ordens, tudo corria como deve de ser.
         Até John parecia estar a perder a esperança de que Kiara voltasse. O grupo dela também já se tinha convencido disso. Até mesmo Chris deixara de olhar para mim com ar tão ansioso, como se quisesse ver surgir a sua namorada a qualquer momento.
         E, finalmente, a cereja no topo do bolo: Kiara parecia ter realmente desistido. Durante esse mês todo que passou, ela não fez pressão durante um só momento para se soltar do poço escuro. Manteve-se lá, silenciosa, sem forças para me afastar do poder. Ela sabia que não podia vencer-me. Era mais fácil quando ela cooperava. Por isso eu não tinha nada com que me preocupar. Ou pelo menos era assim que eu pensava.
         No dia 21 de Dezembro - faltava apenas uma semana para eu completar quatro meses de estadia no colégio - algo aconteceu que veio alterar tudo.
         Eu estava a atravessar o corredor dos dormitórios masculinos. Tinha saído do quarto de Brand e ia à biblioteca deixar lá o livro que tinha fingido que estava a ler. Mas quando estava prestes a chegar à escadaria, senti uma forte pancada na barriga e tive de me curvar para tentar controlar a dor. Era tão forte que eu fui apanhada de surpresa. Deixei-me cair de joelhos no chão, a arfar, enquanto tentava entender o que podia estar a acontecer.
         Eu tinha tomado a minha dose de droga há menos de meia hora. Não era possível que já estivesse com sintomas de necessidade física. Então o que raio se passava comigo?
         Depois a dor de cabeça estalou como uma bala disparada por uma pistola. Agarrei a cabeça com ambas as mãos enquanto tentava conter os gritos de dor que se queriam soltar dos meus lábios. Esforcei-me com todas as forças para manter a cabeça inteira pois esta parecia estar a partir-se ao meio, a rachar-se desde o interior…
         - Kalissa!
         Não podia abrir a boca senão os gritos iam soltar-se. Mas quando Chris chegou ao pé de mim e se acocorou à minha frente, olhando para mim com uma preocupação evidente no olhar, ainda tentei afastá-lo.
         - Pára! O que é que estás a sentir? Explica-me!
         Abanei a cabeça em negação e cravei o olhar furioso no dele. O que é que ele queria? Ver-me sofrer? Estava contente por me ver assim, num momento de fraqueza?
         - Deixa-me ajudar-te…
         - NÃO! - Rugi.
         E depois os berros dolorosos saíram pelos meus lábios abertos. Fechei os olhos pois tudo estava a ficar negro à minha volta. E antes que eu pudesse aperceber-me do que estava a acontecer, os braços fortes de Chris envolveram o meu tronco e apertou-me com todas as suas forças.
         - Kiara! Estás a ouvir-me?! KIARA VOLTA PARA MIM! - Berrou ele junto ao meu ouvido.
         Eu gritei outra vez e tentei afastá-lo, esmurrei-o para o lançar para longe, mas ele aguentou firmemente. Acabou por agarrar o meu queixo violentamente na sua mão e puxou-o para cima. Depois uniu os lábios aos meus e beijou-me furiosamente.
         A dor de cabeça atingiu o seu pico e eu perdi os sentidos.


         Esforcei-me por agarrar aquela corda que me estava a ser lançada. Esforcei-me por fugir do poço escuro, por subir até à luz, agarrar-me ao controlo com todas as forças que tinha andando a acumular durante esse mês. Sentia algo quente à volta do meu corpo e enchi-me de coragem para lutar. Aquele calor era bom, era tentador, e eu corri até ele.
            Já conseguia cheirar e sentir tudo à minha volta, a audição e a visão também estavam a voltar. Assim como o paladar. Aquele sabor na minha boca era inconfundível. Agarrei-me a ele, sem suportar a ideia de o libertar. Os lábios de Chris esmagavam os meus com uma raiva apaixonada, uma intensidade que me deixava aluada. Envolvi o seu pescoço com os meus braços e beijei-o também. Não parei para respirar, o que fez com que, ao fim de poucos segundos, ficasse sem ar nos pulmões. Afastei-me dele apenas o suficiente para conseguir inspirar em condições e Chris abraçou-me com força.
            - Oh meu amor… pensei que nunca mais voltarias…
            Depois as lágrimas soltaram-se dos meus olhos, lágrimas de felicidade. Sim. Eu tinha vencido Kalissa. Tinha conseguido libertar-me do seu controlo e tinha voltado para o meu corpo.
            Encostei a testa à de Chris e suspirei, a tremer por todos os lados.
            - Kiara… Kia, olha para mim… - Implorou Chris.
            Abri os olhos e deparei-me com os seus cravados em mim. Aquele tom azul-claro, a mais bela cor do mundo, deu-me forças para parar de tremer. Aninhei-me mais nos braços dele, sentindo uma vontade louca de me fundir ao corpo dele, esconder-me dentro dele e nunca mais de lá sair.
            - Voltei. - Murmurei.
            Chris apertou-me contra si e soltou uma gargalhada de felicidade genuína, de alívio e de consolo.
            - Finalmente… julguei que não conseguirias libertar-te dela nunca mais…
            Engoli em seco e olhei novamente para Chris.
            - Tu estás… estás mesmo comigo? Não me vais… deixar?
            Ele ponderou nas minhas palavras por uns momentos e depois passou o dedo indicador pelo meu lábio inferior, parecendo muito perdido nos seus pensamentos.
            - Não. Nunca mais.
            Sorri, ao sentir o meu coração acelerar de novo. Tornei a beijar Chris e deixei-me ficar ali com ele, caídos no corredor, durante muito tempo. Tudo o que eu queria era estar com ele. Pensar que ele não voltaria para mim, que me deixaria sozinha para sempre, fizera-me perder as forças e Kalissa apoderara-se de mim. Mas agora isso não voltaria a acontecer.
            Eu ia fazer os possíveis e os impossíveis para ficar com Chris.
            Ao fim desses minutos de reconciliação, ele afastou os lábios dos meus e sorriu.
            - Vamos. A Niza e a Sophie vão ficar contentíssimas quando souberem que voltaste.
            Levantou-se e estendeu-me a mão para me ajudar a fazer o mesmo. Ergui-me mas permaneci abraçada a ele. Não conseguia formar na minha cabeça a mera hipótese de o largar, como se estivesse a viver um sonho que pudesse dissolver-se em pó a qualquer momento. Assim que o meu corpo se descolasse do seu, Chris deixaria de ser real e eu voltaria a ficar sozinha no poço da solidão. Por isso, o meu namorado teve de me arrastar consigo pelas escadas abaixo, e depois subir as outras, até chegarmos ao meu antigo quarto. Parámos lá e ele bateu levemente à porta.
            - Podemos entrar? - Perguntou.
            Niza veio abrir a porta. Quando a vi, senti outro baque no meu coração. Ela também era real. Também estava ali. Desatei a chorar enquanto largava Chris e me lançava nos braços da minha melhor amiga. Apertei-a contra mim com tanta energia que acho que a teria esmagado se ela não me abraçasse ainda mais fortemente.
            - Oh meu deus! És mesmo tu?! - Guinchou ela.
            Olhei para ela e vi que também estava a chorar. E um segundo depois, Sophie estava ao meu lado e também me abraçava, espantada por me ver ali.
            - Sim, sou eu. - Gaguejei, devido aos soluços provocados pelo choro.
            Chris aguardava, atrás de nós, que eu matasse as saudades que tinha delas. Niza abraçou-me durante imenso tempo e depois acabou por se afastar e olhar para mim, deslumbrada, com um sorriso do tamanho do mundo.
            - Nem consigo acreditar que a venceste…
            - Quanto tempo passou desta vez? - Perguntei, confusa.
            Sabia que tinha passado muito tempo. Demasiado, talvez. Mas precisava de ter a certeza, de saber quantos dias ao certo tinham passado, para me poder situar no tempo.
            - Já é dia 21 de Dezembro. - Respondeu Sophie.
            Oh não… tanto tempo…
            Olhei para Chris por cima do ombro e vi a dor nos seus belos olhos. Durante aquelas semanas, Kalissa devia ter andando a massacrá-los tanto… daí eles estarem a reagir daquela maneira.
            - Perdoem-me. - Balbuciei.
            - Claro que perdoamos. Tu não tens culpa da maldade daquela víbora. - Disse Sophie, colocando uma madeixa de cabelo atrás da minha orelha.
            Sorri e deixei que elas me arrastassem para dentro do quarto, enquanto Chris dizia que ia buscar Ryan e Peter. E por muito que me custasse a ideia de me separar dele, sabia que era necessário.
            Nisa fez-me sentar na minha cama e sentou-se à minha frente.
            - Como é que te sentes? - Perguntou.
            - Mais ou menos… mas estou melhor a cada segundo que passa.
            - Isso é óptimo! Nós vamos arranjar uma maneira de te ajudar, o mais importante agora é não deixares que ela se solte.
            Eu não queria dizer-lhe a verdade, aquilo que realmente pensava: que Kalissa estava suficientemente forte para se apoderar do controlo a qualquer momento. Mas depois lembrei-me que já lhes tinha mentido demasiadas vezes. Que para conquistar a confiança delas, tinha de começar do mais profundo dos inícios.
            - Eu acho que ela se vai soltar. - Revelei.
            Os olhos de Niza e Sophie desceram sobre os meus.
            - Quando?
            - Como?
            - Porquê?      
            - Tenham calma! Não sei quando vai ser, nem como, mas… ela é muito forte, tal como vocês puderam ver. Ela conseguiu manter-me afastada durante todo este tempo. Nunca subestimem o poder dela. Eu já deixei de fazer isso.
            Niza assentiu com a cabeça.
            - Mas tu… és capaz de nos avisar quando sentires que ela se está a soltar? Consegues pressentir isso?
            - Sim. Mas às vezes ela é demasiado rápida, posso não ter tempo para vos alertar, entendem?
            - Claro. Mas tenta, por favor.
            - Vou fazer isso.
            O sorriso de agradecimento de Sophie fez-me entender que era mesmo necessário esforçar-me. Desta vez, mais do que nunca, tinha de manter Kalissa afastada custasse o que custasse.
            Ryan, Peter e Chris entraram no quarto nesse momento. Levantei-me da cama num salto e corri para os braços abertos do meu melhor amigo. Ryan soltou uma exclamação de espanto ao ver-me fazer aquilo.
            - É esta a surpresa. - Respondeu Chris, orgulhosamente.
            Peter também estava muito espantado quando eu o abracei.
            - Tive tantas saudades vossas… - Murmurei.
            Depois fiquei de frente para os três, sorrindo, e sentindo que o cenário estava finalmente completo. Era a eles que eu pertencia. E por muito mal que Kalissa fizesse, jamais me poderia afastar completamente deles.
            - Como é que ela se soltou? - Perguntou Ryan, abismado.
            - Não foi fácil. Eu já estava à espera há muito tempo. A tentar encontrar uma falha na… protecção que ela criou. Mas hoje ela distraiu-se, apesar de eu não saber bem o que a levou a fazer isso. E foi o suficiente para eu me conseguir soltar. - Expliquei.
            Peter abraçou-me outra vez, como se estivesse a tentar certificar-se que eu era real, que estava mesmo ali à sua frente.
            - Bem… isto é uma óptima notícia! - Disse ele, alegremente. - A Kiara está de volta!
            Sorri. Sim. E agora, mais forte que antes.
            Chris deu-me a mão e deixou-me encostar a cabeça ao seu ombro.
            - Vais ficar comigo? - Perguntei com ansiedade.
            - Para sempre.
            Beijou-me docemente e os nossos amigos irromperam em gargalhadas felizes. Finalmente, estava tudo como devia ser.